Por Umberto Martins, no sítio Vermelho:
Durante visita ao Brasil na semana passada, a diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde, concedeu entrevista ao Globo News Painel, na qual, entre outras coisas, previu uma “década perdida” para a Europa, se os impasses na solução da crise perdurar, e procurou justificar os reiterados fracassos e equívocos da instituição que dirige nos diagnósticos, previsões e receitas para os países altamente endividados.
O programa foi conduzido pelo jornalista William Waack (um amigo canino dos EUA e anticomunista empedernido que parecia extasiado diante da francesa de feição aristocrática) e contou com uma seleta plateia de convidados. Entre esses, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, que interpelou Lagard sobre a notória e recorrente incompetência do FMI nas previsões sobre o desempenho das economias, revelada agora na crise europeia.
Erramos sim
A francesa não se deu por vencida. Admitiu o erro (“nós, assim como muitos outros, falhamos em reconhecer a crise precocemente. Não vimos a crise que estava se formando”, afirmou) e procurou transformar a autocrítica em virtude absoluta que tudo justifica e perdoa, assegurando que a “beleza” do Fundo consiste precisamente nesta capacidade de reconhecer humildemente os desacertos. Também desafiou aqueles “que têm tendência a criticar” a apontar os equívocos e sugerir correções. Pode parecer convincente e até comovente, mas não é uma boa resposta.
Afinal, não é a primeira vez que a famigerada entidade, que se apresenta como multilateral embora represente exclusivamente os interesses das grandes potências capitalistas e do sistema financeiro, erra em suas previsões, diagnósticos e receitas. A história é prenhe de exemplos a este respeito.
Um passado que condena
Na crise da dívida que se abateu sobre o Brasil e outros países da América Latina e África nos anos 1980, provocada pela política monetária dos EUA (a alta espetacular dos juros realizada por Paul Vocker), o FMI entrou em campo com empréstimos para evitar solução de continuidade no pagamento dos juros e receitas para ajustar a economia aos interesses da banca: arrocho fiscal, maxidesvalorização, liberalização indiscriminada e privatizações.
O resultado é conhecido. A taxa de crescimento declinou da média de 7% ao ano verificada desde o pós guerra até o final dos anos 1970 para cerca de 2,5%, o que significou a estagnação da renda per capita, desemprego em alta e pelo menos duas décadas perdidas em matéria de desenvolvimento. Aqueles tempos bicudos (no plano econômico) foram temperados com hiperinflação, que também devemos aos remédios ministrados pelos gênios da instituição criada nos acordos de Breton Woods. Mas a dívida foi religiosamente paga e a banca saiu no lucro.
Os brasileiros não foram suas únicas vítimas. Na chamada crise asiática, que irrompeu no segundo semestre de 1997, “ficou claro que as políticas do FMI não apenas agravaram as quedas [dos PIBs] como também foram responsáveis, em parte, pelo ocorrido: uma liberalização de capital muito rápida provavelmente foi a causa mais importante da crise”, conforme notou o economista Joseph E. Stiglitz (ex-presidente do Banco Mundial) em seu livro “Os malefícios da globalização”. A reputação do órgão desceu bem abaixo de zero na região.
Rebeldia premiada
Tivemos também a tragédia da Argentina em 2001, com direito a rebeliões, queda de governos e bancarrota no momento em que o país, altamente endividado e sob o tacão de governos neoliberais, aplicava as amargas receitas do FMI destinadas, como sempre, a assegurar os gordos lucros dos credores. Nosso vizinho e parceiro do Mercosul só saiu da lama quando deu um pontapé no traseiro do Fundo e decretou soberanamente, para irritação e desespero da banca internacional, a moratória da dívida externa.
A rebeldia argentina foi premiada pela história, já que depois da moratória (apesar das ameaças imperialistas e das pragas rogadas pelos banqueiros, que cortaram o crédito internacional para o país) a Argentina voltou a crescer impetuosamente reduzindo substancialmente os índices de desemprego e pobreza. Nestor Kirchner, que morreu em 2010, é por lá considerado com razão um herói nacional por ter tido a coragem política e intelectual de peitar a o poderoso, muito embora decadente, sistema financeiro mundial.
O problema de fundo do FMI é sua completa subordinação aos interesses das potências capitalistas (EUA e Europa, que controlam mais de 50% das cotas e do poder dentro da instituição) e da banca. O dinheiro que empresta não se destina a estimular o desenvolvimento dos países. Flui, de forma direta ou indireta, para o bolso dos credores, garantindo o pagamento das dívidas e contornando a necessidade da moratória.
Ciência e interesses de classe
Não faltam aqueles que argumentam que o mundo está mudando e o FMI também se recicla. Já não seria, por exemplo, tão fundamentalista e sectário na receita neoliberal, admitindo hoje iniciativas de governos que impõem limites ao fluxo de capitais especulativos. Todavia, basta voltar os olhos para o que está ocorrendo na Europa para perceber que os pacotes impostos aos países em dificuldade têm a mesma orientação e objetivos dos planos aplicados na América Latina em passado recente: garantir a continuidade do fluxo de lucros para os banqueiros através de ajustes ficais que se traduzem em arrocho dos salários, demissões em massa e o impiedoso desmantelamento do Estado de Bem Estar Social.
É provável que o velho continente esteja a caminho de uma década perdida, concretizando o vaticínio da tecnocrata francesa. A responsabilidade do FMI e da “troika”, que compõe ao lado do BCE e da cúpula da UE, não será pequena na determinação deste drama. Já é visível na Grécia (há quatro anos em recessão), Portugal , Irlanda e outros países submetidos a pacotes de resgate que preservam os interesses da banca ao preço de um retrocesso social provavelmente sem paralelo na história.
A economia política não é uma ciência neutra, seus postulados teóricos, prognósticos e receitas são fortemente influenciados pelos interesses de classe. Por esta razão Karl Marx já falava em economia política burguesa em oposição à economia política da classe trabalhadora. O que orienta a ação do FMI, como observou Stiglitz, não é a ciência econômica. São os interesses decadentes e antissociais da oligarquia financeira, hostis ao desenvolvimento da economia. Isto está no DNA da instituição criada em Breton Woods, é mal que vem do berço e não parece sujeito a reformas.
Durante visita ao Brasil na semana passada, a diretora-gerente do FMI, Christine Lagarde, concedeu entrevista ao Globo News Painel, na qual, entre outras coisas, previu uma “década perdida” para a Europa, se os impasses na solução da crise perdurar, e procurou justificar os reiterados fracassos e equívocos da instituição que dirige nos diagnósticos, previsões e receitas para os países altamente endividados.
O programa foi conduzido pelo jornalista William Waack (um amigo canino dos EUA e anticomunista empedernido que parecia extasiado diante da francesa de feição aristocrática) e contou com uma seleta plateia de convidados. Entre esses, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, que interpelou Lagard sobre a notória e recorrente incompetência do FMI nas previsões sobre o desempenho das economias, revelada agora na crise europeia.
Erramos sim
A francesa não se deu por vencida. Admitiu o erro (“nós, assim como muitos outros, falhamos em reconhecer a crise precocemente. Não vimos a crise que estava se formando”, afirmou) e procurou transformar a autocrítica em virtude absoluta que tudo justifica e perdoa, assegurando que a “beleza” do Fundo consiste precisamente nesta capacidade de reconhecer humildemente os desacertos. Também desafiou aqueles “que têm tendência a criticar” a apontar os equívocos e sugerir correções. Pode parecer convincente e até comovente, mas não é uma boa resposta.
Afinal, não é a primeira vez que a famigerada entidade, que se apresenta como multilateral embora represente exclusivamente os interesses das grandes potências capitalistas e do sistema financeiro, erra em suas previsões, diagnósticos e receitas. A história é prenhe de exemplos a este respeito.
Um passado que condena
Na crise da dívida que se abateu sobre o Brasil e outros países da América Latina e África nos anos 1980, provocada pela política monetária dos EUA (a alta espetacular dos juros realizada por Paul Vocker), o FMI entrou em campo com empréstimos para evitar solução de continuidade no pagamento dos juros e receitas para ajustar a economia aos interesses da banca: arrocho fiscal, maxidesvalorização, liberalização indiscriminada e privatizações.
O resultado é conhecido. A taxa de crescimento declinou da média de 7% ao ano verificada desde o pós guerra até o final dos anos 1970 para cerca de 2,5%, o que significou a estagnação da renda per capita, desemprego em alta e pelo menos duas décadas perdidas em matéria de desenvolvimento. Aqueles tempos bicudos (no plano econômico) foram temperados com hiperinflação, que também devemos aos remédios ministrados pelos gênios da instituição criada nos acordos de Breton Woods. Mas a dívida foi religiosamente paga e a banca saiu no lucro.
Os brasileiros não foram suas únicas vítimas. Na chamada crise asiática, que irrompeu no segundo semestre de 1997, “ficou claro que as políticas do FMI não apenas agravaram as quedas [dos PIBs] como também foram responsáveis, em parte, pelo ocorrido: uma liberalização de capital muito rápida provavelmente foi a causa mais importante da crise”, conforme notou o economista Joseph E. Stiglitz (ex-presidente do Banco Mundial) em seu livro “Os malefícios da globalização”. A reputação do órgão desceu bem abaixo de zero na região.
Rebeldia premiada
Tivemos também a tragédia da Argentina em 2001, com direito a rebeliões, queda de governos e bancarrota no momento em que o país, altamente endividado e sob o tacão de governos neoliberais, aplicava as amargas receitas do FMI destinadas, como sempre, a assegurar os gordos lucros dos credores. Nosso vizinho e parceiro do Mercosul só saiu da lama quando deu um pontapé no traseiro do Fundo e decretou soberanamente, para irritação e desespero da banca internacional, a moratória da dívida externa.
A rebeldia argentina foi premiada pela história, já que depois da moratória (apesar das ameaças imperialistas e das pragas rogadas pelos banqueiros, que cortaram o crédito internacional para o país) a Argentina voltou a crescer impetuosamente reduzindo substancialmente os índices de desemprego e pobreza. Nestor Kirchner, que morreu em 2010, é por lá considerado com razão um herói nacional por ter tido a coragem política e intelectual de peitar a o poderoso, muito embora decadente, sistema financeiro mundial.
O problema de fundo do FMI é sua completa subordinação aos interesses das potências capitalistas (EUA e Europa, que controlam mais de 50% das cotas e do poder dentro da instituição) e da banca. O dinheiro que empresta não se destina a estimular o desenvolvimento dos países. Flui, de forma direta ou indireta, para o bolso dos credores, garantindo o pagamento das dívidas e contornando a necessidade da moratória.
Ciência e interesses de classe
Não faltam aqueles que argumentam que o mundo está mudando e o FMI também se recicla. Já não seria, por exemplo, tão fundamentalista e sectário na receita neoliberal, admitindo hoje iniciativas de governos que impõem limites ao fluxo de capitais especulativos. Todavia, basta voltar os olhos para o que está ocorrendo na Europa para perceber que os pacotes impostos aos países em dificuldade têm a mesma orientação e objetivos dos planos aplicados na América Latina em passado recente: garantir a continuidade do fluxo de lucros para os banqueiros através de ajustes ficais que se traduzem em arrocho dos salários, demissões em massa e o impiedoso desmantelamento do Estado de Bem Estar Social.
É provável que o velho continente esteja a caminho de uma década perdida, concretizando o vaticínio da tecnocrata francesa. A responsabilidade do FMI e da “troika”, que compõe ao lado do BCE e da cúpula da UE, não será pequena na determinação deste drama. Já é visível na Grécia (há quatro anos em recessão), Portugal , Irlanda e outros países submetidos a pacotes de resgate que preservam os interesses da banca ao preço de um retrocesso social provavelmente sem paralelo na história.
A economia política não é uma ciência neutra, seus postulados teóricos, prognósticos e receitas são fortemente influenciados pelos interesses de classe. Por esta razão Karl Marx já falava em economia política burguesa em oposição à economia política da classe trabalhadora. O que orienta a ação do FMI, como observou Stiglitz, não é a ciência econômica. São os interesses decadentes e antissociais da oligarquia financeira, hostis ao desenvolvimento da economia. Isto está no DNA da instituição criada em Breton Woods, é mal que vem do berço e não parece sujeito a reformas.
2 comentários:
Na minha opinião, não há crise alguma. Os ricaços estão se reajeitando pra ganhar mais, só isso. Agora, a Dilma que se ligue e rápido, por que a mídia e todo o embrulho pendurado vão dar o golpe fatal.
Nota mil para este post. É hora de lutarmos pela democratização da mídia para que artigos como esse cheguem mais facilmente ao grande público.
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