Por Gustavo Noronha, no site Brasil Debate:
“Numa época de mentiras universais, dizer a verdade é um ato revolucionário”. (George Orwell)
“Todo mundo mente”. Muitas pessoas lembram-se da série televisiva House ao ouvir esta assertiva. Na verdade, a mentira nos acompanha desde a infância, e aqui não nos referimos aos personagens dos contos de fadas e lendas. Quase todas as pessoas aprendem quando criança que se fizerem xixi na piscina a água muda de cor e todos vão saber. Uma vez, quando eu tinha uns oito ou nove anos, perguntei à minha mãe o que era um motel e sua resposta foi “é um hotel onde se estaciona o carro”. Demorei anos para descobrir que isso não era verdade.
A discussão sobre a mentira remonta à antiguidade grega. Sófocles apresenta-nos os seguintes versos: “Não é bom dizer mentiras; / mas quando a verdade puder trazer uma terrível ruína, / então dizer o que não é bom também é perdoável”. Não se pretende neste texto fazer qualquer discussão sobre o valor moral ou não da mentira, até porque é um tema que já entrou na seara de discussão de Shakespeare, Rousseau, Kant, Nietzsche, Wittgenstein, Heidegger, entre outros.
Na filosofia, é comum dois conceitos disputarem o conceito de verdade. Na religião, a disputa pela suposta verdade divina revelada talvez seja uma das maiores causa mortis da humanidade. A verdade, de fato, é algo impossível de se estabelecer, até porque sempre analisamos as coisas sob nossas próprias perspectivas e certamente nossa mente não é capaz de compreender todos os fatos.
Thomas Kuhn, um dos mais influentes pensadores da filosofia da ciência no século XX, apresenta uma ruptura com as ideias positivistas e traz a discussão da filosofia da ciência para um campo mais próximo da história da ciência. Anteriormente a Kuhn, era prevalente a ideia de que a ciência evoluía a partir do acréscimo de novas verdades ao estoque de verdades mais antigas. Kuhn trabalhou a ideia de que o desenvolvimento da ciência ocorria em períodos normais e períodos revolucionários.
A ciência normal, segundo ele, era como a solução de um quebra-cabeças dentro de determinado paradigma, de verdades estabelecidas. A ciência revolucionária rompe com os paradigmas preexistentes e estabelece novos, ou seja, envolve a revisão de toda a crença e prática científica anteriores. A quebra de paradigmas, segundo Kuhn, tende a ocorrer quando os paradigmas preexistentes começam a falhar na resolução de problemas. Desta forma, para ser adotado o novo paradigma, deveria ser capaz de melhor resolver a maior parte dos quebra-cabeças existentes.
Deste modo, é importante destacar que, para Kuhn, as crenças são parte indissociável na construção dos paradigmas. Assim, elas determinam como serão compreendidos e desenvolvidos os diversos objetos de estudo. Percebem-se, assim, as crenças como algo externo à ciência em si, mas que fazem parte da construção do raciocínio elaborado pelo cientista e acabam incorporadas ao modelo científico desenvolvido. O que Brecht sintetizou de forma precisa num par de versos: “pergunta a cada ideia: / serves a quem?”.
Temos hoje uma determinada verdade estabelecida no debate econômico brasileiro, não tanto pelo consenso entre as mais diversas escolas de economia do país, mas pela força política de seus defensores que lhes garante voz única nos noticiários dos principais grupos de mídia. Tentam nos convencer de que uma economia nacional de uma nação emissora de sua própria moeda, com território continental, deve-se ater às mesmas curvas de restrição orçamentária de uma família ou de uma firma.
Até a crise de 2008, todos aqueles que criticavam as verdades estabelecidas no paradigma dominante na macroeconomia eram vistos com bastante desconfiança. Desde então sucessivas autocríticas têm sido feitas por economistas do chamado mainstream econômico.
É recomendável neste sentido a leitura do texto de Paul Romer The Trouble With Macroeconomics[i]. Nele, o autor argumenta que a falta de espírito científico dos economistas fez com que um macroeconomista médio de hoje saiba menos que seu equivalente de trinta anos atrás.
Romer coloca neste texto algumas questões que deveriam nos fazer refletir. O problema não seria o fato de os macroeconomistas dizerem coisas inconsistentes com os fatos. O verdadeiro problema seria que outros economistas não se importariam de os macroeconomistas não se preocuparem com os fatos. Nas palavras de Romer, em tradução livre: “uma tolerância indiferente ao erro óbvio é ainda mais corrosiva para a ciência do que a defesa comprometida do erro”.
Ele prossegue afirmando que a ciência e o espírito da iluminação são as realizações humanas mais importantes e que importam mais do que os sentimentos de qualquer um de nós. Romer coloca, mais uma vez em tradução livre:
“Você não pode compartilhar meu compromisso com a ciência, mas pergunte a si mesmo: Você quer que seu filho seja tratado por um médico mais comprometido com seu amigo antivacinação e seu outro amigo homeopata do que com a ciência médica? Se não, por que você deve esperar que as pessoas que querem respostas continuem prestando atenção aos economistas depois de aprenderem que estamos mais comprometidos com os amigos do que com os fatos?”
O que Romer não aborda é justamente a questão ideológica por trás da defesa de determinados conceitos teóricos. Talvez, o posicionamento que ele critica em diversos de seus amigos e que estes não veem em outros amigos seja porque estão contaminados por certas crenças. Dos resultados da gestão de política econômica sempre há ganhadores e perdedores, a grande mentira que nos contam é que seria uma decisão técnica, não é, é política.
Nos anos 40, quando havia certo consenso de que a intervenção estatal através de uma política fiscal ativa poderia garantir o pleno emprego, Kalecki proferiu uma palestra, depois publicada como texto, cujo título era “Aspectos políticos do pleno emprego”[ii].
Neste texto, Kalecki argumenta que a oposição a estas ideias vinha de “proeminentes e autointitulados ‘especialistas econômicos’ estreitamente ligados à banca e à indústria” – o que sugeriria objeções de natureza política na oposição à doutrina do pleno emprego, ainda que se apresentem argumentos econômicos. Isso não significaria, segundo Kalecki, “que as pessoas que desenvolvem essas teorias não acreditam em sua economia, por mais lamentável que isso seja. Mas a ignorância obstinada geralmente é uma manifestação de motivações políticas subjacentes”.
Deste modo, enquanto economista, recomendo: desconfie sempre dos economistas. Muitos de nós mentem profissionalmente.
Notas:
[i] Texto disponível em https://paulromer.net/wp-content/uploads/2016/09/WP-Trouble.pdf
[ii] Texto disponível em http://jornalggn.com.br/noticia/aspectos-politicos-do-pleno-emprego-por-michal-kalecki.
“Todo mundo mente”. Muitas pessoas lembram-se da série televisiva House ao ouvir esta assertiva. Na verdade, a mentira nos acompanha desde a infância, e aqui não nos referimos aos personagens dos contos de fadas e lendas. Quase todas as pessoas aprendem quando criança que se fizerem xixi na piscina a água muda de cor e todos vão saber. Uma vez, quando eu tinha uns oito ou nove anos, perguntei à minha mãe o que era um motel e sua resposta foi “é um hotel onde se estaciona o carro”. Demorei anos para descobrir que isso não era verdade.
A discussão sobre a mentira remonta à antiguidade grega. Sófocles apresenta-nos os seguintes versos: “Não é bom dizer mentiras; / mas quando a verdade puder trazer uma terrível ruína, / então dizer o que não é bom também é perdoável”. Não se pretende neste texto fazer qualquer discussão sobre o valor moral ou não da mentira, até porque é um tema que já entrou na seara de discussão de Shakespeare, Rousseau, Kant, Nietzsche, Wittgenstein, Heidegger, entre outros.
Na filosofia, é comum dois conceitos disputarem o conceito de verdade. Na religião, a disputa pela suposta verdade divina revelada talvez seja uma das maiores causa mortis da humanidade. A verdade, de fato, é algo impossível de se estabelecer, até porque sempre analisamos as coisas sob nossas próprias perspectivas e certamente nossa mente não é capaz de compreender todos os fatos.
Thomas Kuhn, um dos mais influentes pensadores da filosofia da ciência no século XX, apresenta uma ruptura com as ideias positivistas e traz a discussão da filosofia da ciência para um campo mais próximo da história da ciência. Anteriormente a Kuhn, era prevalente a ideia de que a ciência evoluía a partir do acréscimo de novas verdades ao estoque de verdades mais antigas. Kuhn trabalhou a ideia de que o desenvolvimento da ciência ocorria em períodos normais e períodos revolucionários.
A ciência normal, segundo ele, era como a solução de um quebra-cabeças dentro de determinado paradigma, de verdades estabelecidas. A ciência revolucionária rompe com os paradigmas preexistentes e estabelece novos, ou seja, envolve a revisão de toda a crença e prática científica anteriores. A quebra de paradigmas, segundo Kuhn, tende a ocorrer quando os paradigmas preexistentes começam a falhar na resolução de problemas. Desta forma, para ser adotado o novo paradigma, deveria ser capaz de melhor resolver a maior parte dos quebra-cabeças existentes.
Deste modo, é importante destacar que, para Kuhn, as crenças são parte indissociável na construção dos paradigmas. Assim, elas determinam como serão compreendidos e desenvolvidos os diversos objetos de estudo. Percebem-se, assim, as crenças como algo externo à ciência em si, mas que fazem parte da construção do raciocínio elaborado pelo cientista e acabam incorporadas ao modelo científico desenvolvido. O que Brecht sintetizou de forma precisa num par de versos: “pergunta a cada ideia: / serves a quem?”.
Temos hoje uma determinada verdade estabelecida no debate econômico brasileiro, não tanto pelo consenso entre as mais diversas escolas de economia do país, mas pela força política de seus defensores que lhes garante voz única nos noticiários dos principais grupos de mídia. Tentam nos convencer de que uma economia nacional de uma nação emissora de sua própria moeda, com território continental, deve-se ater às mesmas curvas de restrição orçamentária de uma família ou de uma firma.
Até a crise de 2008, todos aqueles que criticavam as verdades estabelecidas no paradigma dominante na macroeconomia eram vistos com bastante desconfiança. Desde então sucessivas autocríticas têm sido feitas por economistas do chamado mainstream econômico.
É recomendável neste sentido a leitura do texto de Paul Romer The Trouble With Macroeconomics[i]. Nele, o autor argumenta que a falta de espírito científico dos economistas fez com que um macroeconomista médio de hoje saiba menos que seu equivalente de trinta anos atrás.
Romer coloca neste texto algumas questões que deveriam nos fazer refletir. O problema não seria o fato de os macroeconomistas dizerem coisas inconsistentes com os fatos. O verdadeiro problema seria que outros economistas não se importariam de os macroeconomistas não se preocuparem com os fatos. Nas palavras de Romer, em tradução livre: “uma tolerância indiferente ao erro óbvio é ainda mais corrosiva para a ciência do que a defesa comprometida do erro”.
Ele prossegue afirmando que a ciência e o espírito da iluminação são as realizações humanas mais importantes e que importam mais do que os sentimentos de qualquer um de nós. Romer coloca, mais uma vez em tradução livre:
“Você não pode compartilhar meu compromisso com a ciência, mas pergunte a si mesmo: Você quer que seu filho seja tratado por um médico mais comprometido com seu amigo antivacinação e seu outro amigo homeopata do que com a ciência médica? Se não, por que você deve esperar que as pessoas que querem respostas continuem prestando atenção aos economistas depois de aprenderem que estamos mais comprometidos com os amigos do que com os fatos?”
O que Romer não aborda é justamente a questão ideológica por trás da defesa de determinados conceitos teóricos. Talvez, o posicionamento que ele critica em diversos de seus amigos e que estes não veem em outros amigos seja porque estão contaminados por certas crenças. Dos resultados da gestão de política econômica sempre há ganhadores e perdedores, a grande mentira que nos contam é que seria uma decisão técnica, não é, é política.
Nos anos 40, quando havia certo consenso de que a intervenção estatal através de uma política fiscal ativa poderia garantir o pleno emprego, Kalecki proferiu uma palestra, depois publicada como texto, cujo título era “Aspectos políticos do pleno emprego”[ii].
Neste texto, Kalecki argumenta que a oposição a estas ideias vinha de “proeminentes e autointitulados ‘especialistas econômicos’ estreitamente ligados à banca e à indústria” – o que sugeriria objeções de natureza política na oposição à doutrina do pleno emprego, ainda que se apresentem argumentos econômicos. Isso não significaria, segundo Kalecki, “que as pessoas que desenvolvem essas teorias não acreditam em sua economia, por mais lamentável que isso seja. Mas a ignorância obstinada geralmente é uma manifestação de motivações políticas subjacentes”.
Deste modo, enquanto economista, recomendo: desconfie sempre dos economistas. Muitos de nós mentem profissionalmente.
Notas:
[i] Texto disponível em https://paulromer.net/wp-content/uploads/2016/09/WP-Trouble.pdf
[ii] Texto disponível em http://jornalggn.com.br/noticia/aspectos-politicos-do-pleno-emprego-por-michal-kalecki.
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