Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Espectador interessado no sucesso do Partido dos Trabalhadores para superar a mais grave crise de sua existência, confesso minha decepção diante da pesquisa "Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo", publicada pela Fundação Perseu Abramo. Com todo respeito que o trabalho da Fundação merece, sem a menor intenção de diminuir o esforço dos responsáveis pela pesquisa, minha opinião é que o documento não ajuda a compreender as derrotas recentes sofridas pelo partido nem abre caminho a uma reorientação segura para o futuro.
Fazendo uma rápida síntese. Com base numa pesquisa de caráter qualitativo realizada no final de 2016, a partir de 63 entrevistas com eleitores da periferia de São Paulo, a pesquisa aponta para a existência de um pensamento político conservador junto aos trabalhadores mais pobres do país, que teriam se convertido a um exótico "liberalismo das classes populares." Nesse caminho, a pesquisa sustenta que a "cisão entre classe trabalhadora e burguesia não perpassa pelo imaginário dos entrevistados." Também mostra que "independente da renda e da ocupação, as pessoas tendem a classificar-se como pertencentes à classe média." Diz ainda o levantamento em suas conclusões "para os entrevistados, o principal confronto existente na sociedade não é entre ricos e pobres, entre capital e trabalho, entre corporações e trabalhadores. O grande confronto se dá entre Estado e cidadãos, entre a sociedade e seus governantes".
Nesse contexto, a pesquisa aponta, entre os entrevistados, "um forte desejo por visibilidade e valorização pessoal, querem um 'lugar no mundo.'" Não querem "ser tratados como 'massa amorfa', como 'os pobres." Também demonstram uma noção distorcida sobre o que é "público", numa visão "associada àquilo que pertence a todos, que é gratuito e de má qualidade." Como se pode imaginar, o estudo diz que são pessoas que "supervalorizam o mérito", estão convencidas de que escolas particulares sempre são mais eficientes do que estabelecimentos públicos, "demonstrando, mais uma vez, uma descrença na 'coisa pública.'" Também têm um desprezo aberto pela política, vista como "suja", "cheia de gente mau caráter." Mesmo sublinhando que não encontrou um "neoliberalismo enraizado ou um conservadorismo no sentido estrito," em suas conclusões a pesquisa aponta para a existência de um "liberalismo particular das classes populares." Assim, "trata o mercado como instituição mais crível que o Estado, a esfera privada mais relevante do que a pública e cultiva mais individualismo do que a solidariedade. Tem como valores prioritários o sucesso, a concorrência, o utilitarismo e a mercantilização da vida."
E por aí vai a coisa. Tão longe e tão mal endereçada que, fingindo acreditar no que lia, o Estado de S. Paulo publicou editorial onde festejava a pesquisa como a demonstração do "colapso do discurso petista." O velho matutino, um dos cérebros mais atentos a cada movimento que possa gerar benefícios a preservação de uma ordem social em vigor, aliado irredutível do governo Temer e tudo o que ele representa, celebrou: " O estudo é obrigado a reconhecer que o principal confronto existente na sociedade não é entre ricos e pobres, entre capital' e trabalho, entre corporações e trabalhadores', e sim 'entre Estado e cidadãos, entre a sociedade e seus governantes”. Celebrando uma identidade política entre seus pontos de vista históricos, e aquilo que se pode ler no documento, o jornal sublinha que, para os entrevistados, "todos são vítimas do Estado que cobra impostos excessivos, impõe entraves burocráticos, gerencia mal o crescimento econômico e acaba por limitar ou sufocar a atividade das empresas”.
Sem querer ser pedante, nem buscar refúgio seguro no pensamento de autores consagrados, recurso que no passado foi empregado para sufocar tantos debates importantes, creio que é preciso fazer alguns observações. Estamos falando de uma época na qual o PT e outras forças que compreendem o atual momento histórico serão chamadas a preparar uma saída para o retorno à democracia em nosso país. Trata-se de uma luta palmo a palmo, sem campos neutros -- cada centímetro cedido será imediatamente reutilizado pelo adversário.
Nesta situação, cabe lembrar que a discussão sobre consciência, ideologia e luta social é pelo menos tão antiga quanto a história do capitalismo. Já no século XIX, o pensamento voltado para a transformação social intrigava-se com uma questão difícil: como entender que aqueles operários, explorados num padrão muito próximo ao do cativeiro escravo, não se rebelavam contra seus senhores? Como eram capazes de suportar tanto sofrimento, tanta humilhação? Seriam, no fundo, favoráveis a ordem que os oprimia, a economia que os explorava, à cultura que a todos iludia?
Na Ideologia Alemã, o primeiro trabalho que produziram a quatro mãos, Karl Marx e Friedrich Engels deixaram -- em 1846 -- claro que:
“As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual."
A questão, 170 anos depois, permanece atual, em minha visão. Os valores, convicções e opiniões não nascem num mundo à parte. São produto da prática social, daquilo que homens e mulheres experimentam, testam, conhecem, discutem em casa, ouvem do vizinho, assistem na TV. As ideias dominantes se alimentam, crescem, se reproduzem e se atualizam através na vida cotidiana, papel em que os meios de comunicação cumprem uma função cada vez mais essencial. Os donos dos "meios de produção espiritual" contam a história vivida a sua maneira, ao sabor de seus interesses e convicções. Batizam as ruas e estradas com o nome de seus heróis, patrocinam filmes, estão nos jornais e são glorificados nos livros de história, com base nas prerrogativas "da classe que tem à disposição meios de produção material e ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual." Neste contexto, a questão não é perguntar por que os trabalhadores não pensam diferente daqueles que são considerados inimigos de classe, mas entender que essa é uma realidade cotidiana da vida sob o capitalismo, que só conhece intervalos importantes em momentos de ruptura política.
Dois anos depois da Ideologia Alemã, que uma leitura apressada poderia produzir uma impressão conformista da luta política, Marx e Engels saudavam a Europa das revoluções de 1848 com o Manifesto Comunista. Diziam que os proletários do mundo "tinham um mundo a conquistar" e "nada tinham a perder além de seus grilhões."
No Brasil de 1973, no curso de Sociologia I da Faculdade de Ciências Sociais da USP, o professor José de Souza Martins enviava os estudantes para estudar a permanência de um dos primeiros mitos do capitalismo paulista -- o Conde Matarazzo -- em bairros operários de São Paulo. Divididos em grupos, os estudantes visitavam ruas que não conheciam, batiam em portas que jamais haviam visitado, para ouvir depoimentos de trabalhadores, especialmente aposentados -- sempre mais disponíveis para jogar conversa fora -- sobre aquele empresário que teria saído pobre da Itália mas construído a maior fortuna do país com "muito esforço e trabalho duro."
Seria fácil apontar, naquelas entrevistas, a presença de uma visão de mundo "individualista " e a "supervalorização do mérito", a "descrença na coisa pública." Com palavras mais claras e diretas, todos esses elementos estavam presentes, por exemplo, no depoimento que colhi na porta de casa de uma trabalhadora aposentada num ponto extremo da Zona Leste de São Paulo. Mãos calosas, pulmões cansados, ela reproduzia a lenda sobre Matarazzo mas não conseguia explicar por que, apesar de tantas marcas de esforço e trabalho pesado no próprio corpo, nem ela nem o marido nenhum pessoa de próxima fora capaz vizinho de estrelar uma ascensão social nem de longe comparável ao conde mitológico. Essas entrevistas -- feitas por calouros de Ciências Sociais -- permitiam captar a visão de algumas pessoas mas não contavam a história inteira.
No mesmo período, em outros lugares da cidade de São Paulo, assim como em outras cidades do país, lideranças de trabalhadores montavam oposições para disputar a liderança de grandes sindicatos. Também davam início a movimentos de resistência nas fábricas, empregando os motivos mais variados -- inclusive chefes autoritários -- na luta por seus direitos.
Antes do final daquela década, os operários-Matarazzo haviam assumido a liderança da luta contra a ditadura, denunciavam o arrocho salarial e encaminhavam a construção da primeira central sindical de verdade no país. Em pouco tempo, já traçavam o caminho para a fundação do PT. Também possuíam a principal liderança popular da história republicana, Luiz Inácio Lula Silva.
Só para voltar ao debate sobre valores e percepções. Talvez porque não quisesse ser "massa amorfa" -- quem quer? -- e seguramente não gostasse de ser confundido com "os pobres", num país onde essa expressão reflete imensos preconceitos, Lula chegou a ser duramente criticado por usar terno -- com colete! -- e ter aceito convite para passar uma noite numa boate da moda, Gallery, nos Jardins. Sabemos o fim dessa história. Com contradições, falhas e limites, sob a liderança do operário que usava colete, o país teve um governo único no combate a desigualdade, na distribuição de renda, na ampliação de direitos sociais. Sem nunca contar com apoio dos "meios de produção espiritual", o PT conseguiu quatro vitórias consecutivas -- nas urnas, junto a um eleitorado que, em grande parte, se encaixa perfeitamente na amostra ouvida na pesquisa.
Creio que essa situação ajuda a demonstrar que, na vida política, as pesquisas eleitorais não podem ser vistas como recursos de marketing, serviço típico das agências de publicidade. Um cidadão que dá sua opinião sobre o país e o seu futuro não equivale a pessoa que escolhe uma marca de sabonete. Imagine se é possível imaginar o futuro de um partido de trabalhadores que, após 35 anos de uma história de luta, descobre que sua base agora é adepta de um "liberalismo popular". Qual seu destino?
Da mesma forma, um partido político não é uma empresa ocupava em "vender" seus "produtos", mas uma organização voltado para a transformação de uma sociedade.
Neste caminho, pode ser útil valer-se de todo instrumento disponível para conhecer o terreno onde se pisa. Não se pode esquecer, porém, que o apoio a todo projeto político é inseparável de sua própria intervenção na sociedade, sua capacidade de oferecer respostas adequadas às dificuldades enfrentadas pela maioria, de competência para explorar as contradições permanentes da vida cotidiana, que são a matéria-prima insubstituível das grandes mudanças da luta social. Fora deste universo, permanece a influencia da classe que tem dispõe "dos meios de produção espiritual," que sempre serão as "ideias da classe dominante. "
Iniciada uma semana depois da derrota eleitoral de 2016, a pesquisa foi terminada em janeiro. Nem é preciso lembrar que período foi aquele: o massacre nas urnas, a derrota no impeachment, o pensamento único em torno da Lava Jato, o cerco a Lula. O debate sobre o segundo mandato de Dilma, quando a luta social da campanha de 2014 foi revertida aos trancos e barrancos depois da posse, mal havia começado.
É possível que os historiadores do futuro constatem que nem nos meses posteriores ao golpe de 1964 se assistiu a uma derrota tão ampla e profunda.
Mesmo assim, é possível ter uma certeza. Outra pesquisa, em 15 de março de 2017, quando lideranças revigoradas foram às ruas para denunciar a reforma da Previdência e defender a democracia com um vigor nunca visto, traria outros resultados. Alguém duvida?
Espectador interessado no sucesso do Partido dos Trabalhadores para superar a mais grave crise de sua existência, confesso minha decepção diante da pesquisa "Percepções e valores políticos nas periferias de São Paulo", publicada pela Fundação Perseu Abramo. Com todo respeito que o trabalho da Fundação merece, sem a menor intenção de diminuir o esforço dos responsáveis pela pesquisa, minha opinião é que o documento não ajuda a compreender as derrotas recentes sofridas pelo partido nem abre caminho a uma reorientação segura para o futuro.
Fazendo uma rápida síntese. Com base numa pesquisa de caráter qualitativo realizada no final de 2016, a partir de 63 entrevistas com eleitores da periferia de São Paulo, a pesquisa aponta para a existência de um pensamento político conservador junto aos trabalhadores mais pobres do país, que teriam se convertido a um exótico "liberalismo das classes populares." Nesse caminho, a pesquisa sustenta que a "cisão entre classe trabalhadora e burguesia não perpassa pelo imaginário dos entrevistados." Também mostra que "independente da renda e da ocupação, as pessoas tendem a classificar-se como pertencentes à classe média." Diz ainda o levantamento em suas conclusões "para os entrevistados, o principal confronto existente na sociedade não é entre ricos e pobres, entre capital e trabalho, entre corporações e trabalhadores. O grande confronto se dá entre Estado e cidadãos, entre a sociedade e seus governantes".
Nesse contexto, a pesquisa aponta, entre os entrevistados, "um forte desejo por visibilidade e valorização pessoal, querem um 'lugar no mundo.'" Não querem "ser tratados como 'massa amorfa', como 'os pobres." Também demonstram uma noção distorcida sobre o que é "público", numa visão "associada àquilo que pertence a todos, que é gratuito e de má qualidade." Como se pode imaginar, o estudo diz que são pessoas que "supervalorizam o mérito", estão convencidas de que escolas particulares sempre são mais eficientes do que estabelecimentos públicos, "demonstrando, mais uma vez, uma descrença na 'coisa pública.'" Também têm um desprezo aberto pela política, vista como "suja", "cheia de gente mau caráter." Mesmo sublinhando que não encontrou um "neoliberalismo enraizado ou um conservadorismo no sentido estrito," em suas conclusões a pesquisa aponta para a existência de um "liberalismo particular das classes populares." Assim, "trata o mercado como instituição mais crível que o Estado, a esfera privada mais relevante do que a pública e cultiva mais individualismo do que a solidariedade. Tem como valores prioritários o sucesso, a concorrência, o utilitarismo e a mercantilização da vida."
E por aí vai a coisa. Tão longe e tão mal endereçada que, fingindo acreditar no que lia, o Estado de S. Paulo publicou editorial onde festejava a pesquisa como a demonstração do "colapso do discurso petista." O velho matutino, um dos cérebros mais atentos a cada movimento que possa gerar benefícios a preservação de uma ordem social em vigor, aliado irredutível do governo Temer e tudo o que ele representa, celebrou: " O estudo é obrigado a reconhecer que o principal confronto existente na sociedade não é entre ricos e pobres, entre capital' e trabalho, entre corporações e trabalhadores', e sim 'entre Estado e cidadãos, entre a sociedade e seus governantes”. Celebrando uma identidade política entre seus pontos de vista históricos, e aquilo que se pode ler no documento, o jornal sublinha que, para os entrevistados, "todos são vítimas do Estado que cobra impostos excessivos, impõe entraves burocráticos, gerencia mal o crescimento econômico e acaba por limitar ou sufocar a atividade das empresas”.
Sem querer ser pedante, nem buscar refúgio seguro no pensamento de autores consagrados, recurso que no passado foi empregado para sufocar tantos debates importantes, creio que é preciso fazer alguns observações. Estamos falando de uma época na qual o PT e outras forças que compreendem o atual momento histórico serão chamadas a preparar uma saída para o retorno à democracia em nosso país. Trata-se de uma luta palmo a palmo, sem campos neutros -- cada centímetro cedido será imediatamente reutilizado pelo adversário.
Nesta situação, cabe lembrar que a discussão sobre consciência, ideologia e luta social é pelo menos tão antiga quanto a história do capitalismo. Já no século XIX, o pensamento voltado para a transformação social intrigava-se com uma questão difícil: como entender que aqueles operários, explorados num padrão muito próximo ao do cativeiro escravo, não se rebelavam contra seus senhores? Como eram capazes de suportar tanto sofrimento, tanta humilhação? Seriam, no fundo, favoráveis a ordem que os oprimia, a economia que os explorava, à cultura que a todos iludia?
Na Ideologia Alemã, o primeiro trabalho que produziram a quatro mãos, Karl Marx e Friedrich Engels deixaram -- em 1846 -- claro que:
“As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual."
A questão, 170 anos depois, permanece atual, em minha visão. Os valores, convicções e opiniões não nascem num mundo à parte. São produto da prática social, daquilo que homens e mulheres experimentam, testam, conhecem, discutem em casa, ouvem do vizinho, assistem na TV. As ideias dominantes se alimentam, crescem, se reproduzem e se atualizam através na vida cotidiana, papel em que os meios de comunicação cumprem uma função cada vez mais essencial. Os donos dos "meios de produção espiritual" contam a história vivida a sua maneira, ao sabor de seus interesses e convicções. Batizam as ruas e estradas com o nome de seus heróis, patrocinam filmes, estão nos jornais e são glorificados nos livros de história, com base nas prerrogativas "da classe que tem à disposição meios de produção material e ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual." Neste contexto, a questão não é perguntar por que os trabalhadores não pensam diferente daqueles que são considerados inimigos de classe, mas entender que essa é uma realidade cotidiana da vida sob o capitalismo, que só conhece intervalos importantes em momentos de ruptura política.
Dois anos depois da Ideologia Alemã, que uma leitura apressada poderia produzir uma impressão conformista da luta política, Marx e Engels saudavam a Europa das revoluções de 1848 com o Manifesto Comunista. Diziam que os proletários do mundo "tinham um mundo a conquistar" e "nada tinham a perder além de seus grilhões."
No Brasil de 1973, no curso de Sociologia I da Faculdade de Ciências Sociais da USP, o professor José de Souza Martins enviava os estudantes para estudar a permanência de um dos primeiros mitos do capitalismo paulista -- o Conde Matarazzo -- em bairros operários de São Paulo. Divididos em grupos, os estudantes visitavam ruas que não conheciam, batiam em portas que jamais haviam visitado, para ouvir depoimentos de trabalhadores, especialmente aposentados -- sempre mais disponíveis para jogar conversa fora -- sobre aquele empresário que teria saído pobre da Itália mas construído a maior fortuna do país com "muito esforço e trabalho duro."
Seria fácil apontar, naquelas entrevistas, a presença de uma visão de mundo "individualista " e a "supervalorização do mérito", a "descrença na coisa pública." Com palavras mais claras e diretas, todos esses elementos estavam presentes, por exemplo, no depoimento que colhi na porta de casa de uma trabalhadora aposentada num ponto extremo da Zona Leste de São Paulo. Mãos calosas, pulmões cansados, ela reproduzia a lenda sobre Matarazzo mas não conseguia explicar por que, apesar de tantas marcas de esforço e trabalho pesado no próprio corpo, nem ela nem o marido nenhum pessoa de próxima fora capaz vizinho de estrelar uma ascensão social nem de longe comparável ao conde mitológico. Essas entrevistas -- feitas por calouros de Ciências Sociais -- permitiam captar a visão de algumas pessoas mas não contavam a história inteira.
No mesmo período, em outros lugares da cidade de São Paulo, assim como em outras cidades do país, lideranças de trabalhadores montavam oposições para disputar a liderança de grandes sindicatos. Também davam início a movimentos de resistência nas fábricas, empregando os motivos mais variados -- inclusive chefes autoritários -- na luta por seus direitos.
Antes do final daquela década, os operários-Matarazzo haviam assumido a liderança da luta contra a ditadura, denunciavam o arrocho salarial e encaminhavam a construção da primeira central sindical de verdade no país. Em pouco tempo, já traçavam o caminho para a fundação do PT. Também possuíam a principal liderança popular da história republicana, Luiz Inácio Lula Silva.
Só para voltar ao debate sobre valores e percepções. Talvez porque não quisesse ser "massa amorfa" -- quem quer? -- e seguramente não gostasse de ser confundido com "os pobres", num país onde essa expressão reflete imensos preconceitos, Lula chegou a ser duramente criticado por usar terno -- com colete! -- e ter aceito convite para passar uma noite numa boate da moda, Gallery, nos Jardins. Sabemos o fim dessa história. Com contradições, falhas e limites, sob a liderança do operário que usava colete, o país teve um governo único no combate a desigualdade, na distribuição de renda, na ampliação de direitos sociais. Sem nunca contar com apoio dos "meios de produção espiritual", o PT conseguiu quatro vitórias consecutivas -- nas urnas, junto a um eleitorado que, em grande parte, se encaixa perfeitamente na amostra ouvida na pesquisa.
Creio que essa situação ajuda a demonstrar que, na vida política, as pesquisas eleitorais não podem ser vistas como recursos de marketing, serviço típico das agências de publicidade. Um cidadão que dá sua opinião sobre o país e o seu futuro não equivale a pessoa que escolhe uma marca de sabonete. Imagine se é possível imaginar o futuro de um partido de trabalhadores que, após 35 anos de uma história de luta, descobre que sua base agora é adepta de um "liberalismo popular". Qual seu destino?
Da mesma forma, um partido político não é uma empresa ocupava em "vender" seus "produtos", mas uma organização voltado para a transformação de uma sociedade.
Neste caminho, pode ser útil valer-se de todo instrumento disponível para conhecer o terreno onde se pisa. Não se pode esquecer, porém, que o apoio a todo projeto político é inseparável de sua própria intervenção na sociedade, sua capacidade de oferecer respostas adequadas às dificuldades enfrentadas pela maioria, de competência para explorar as contradições permanentes da vida cotidiana, que são a matéria-prima insubstituível das grandes mudanças da luta social. Fora deste universo, permanece a influencia da classe que tem dispõe "dos meios de produção espiritual," que sempre serão as "ideias da classe dominante. "
Iniciada uma semana depois da derrota eleitoral de 2016, a pesquisa foi terminada em janeiro. Nem é preciso lembrar que período foi aquele: o massacre nas urnas, a derrota no impeachment, o pensamento único em torno da Lava Jato, o cerco a Lula. O debate sobre o segundo mandato de Dilma, quando a luta social da campanha de 2014 foi revertida aos trancos e barrancos depois da posse, mal havia começado.
É possível que os historiadores do futuro constatem que nem nos meses posteriores ao golpe de 1964 se assistiu a uma derrota tão ampla e profunda.
Mesmo assim, é possível ter uma certeza. Outra pesquisa, em 15 de março de 2017, quando lideranças revigoradas foram às ruas para denunciar a reforma da Previdência e defender a democracia com um vigor nunca visto, traria outros resultados. Alguém duvida?
1 comentários:
É o que dá o pessoal munir-se de instrumental "teórico" de pesquisas, já por si não muito confiáveis em suas fontes, sem ter a verdadeira teoria na cabeça! Uma frase dita há 170 anos teria resolvido o problema e dado a certeza de que: 1) a pesquisa não teria porque ser feita; 2) muito menos naquela ocasião; 3) e muito menos divulgados os resultados do modo como o foram. O próprio tiro no pé do ponto de vista político, sociológico e publicitário. Ainda bem que ainda existem mentes lúcidas como a do autor.
Postar um comentário