terça-feira, 1 de outubro de 2019

Impedir Witzel, em nome da vida!

Por Luiz Eduardo Soares, no site Declaração-1948:

É hora de impedir Wilson Witzel.

Na noite de 20 de setembro, no complexo do Alemão, Rio de Janeiro, Ágatha Félix, 8 anos foi assassinada, conforme todas as testemunhas, com tiro nas costas por policial que tentava atingir um motociclista. A menina estava com a mãe em uma Kombi. A família desdobrava-se para lhe proporcionar educação de qualidade e evitar que ela viesse a ser mais uma vítima da violência que assombra os territórios vulneráveis. Consternado, seu avô declarou à imprensa que ela fazia balé, inglês e se dedicava aos estudos com uma seriedade que levava os parentes a anteciparem um destino virtuoso que a salvasse das “estatísticas”.

É assim que falam os que se sentem condenados às determinações socioeconômicas de nosso país desigual e racista. A estatística é, para essas comunidades, a linguagem do fatalismo que transforma a vida em número e o indivíduo, incomparável e insubstituível, em mera unidade permutável. Tudo se passa como se o Brasil oferecesse aos pobres duas opções: tornar-se mercadoria no mercado informal ou converter-se em taxas, seja do encarceramento massivo em curso, seja da vitimização letal.

Por isso, a vida é percebida como o engenho, o empenho e a arte que resistem à previsibilidade infausta. Nos termos da fé coletiva, só a aliança com Deus pode propiciar a força necessária para romper a corrente dos condicionantes que conduzem uma biografia qualquer à vala comum das exclusões ou ao encontro temido com a brutalidade randômica. Nas camadas médias, o futuro tende a ser representado como fortuito e contingente, embora haja padrões verificáveis que reduzem a imprevisibilidade. Até certo ponto, supõe-se, o fortuito e o contingente podem ser domesticados.

As classes médias pensam o tempo à frente como terreno a conquistar, espaço a ocupar, plano subjetivo a cumprir. Bastam espírito empreendedor e uma pequena ajuda dos amigos, além do empurrãozinho familiar, sob as bênçãos divinas. Também aí as incertezas geram angústia, mas ela se deixa manejar com símbolos e terapias. Nas favelas, o horizonte se estreita. A categoria esperança tem significados distintos quando a ascensão é sociologicamente mais ou menos plausível e quando as trapaças da sorte tendem a ser mais ou menos implacáveis.

Segundo o Atlas da Violência (2018), realizado pela dupla IPEA/Forum Brasileiro de Segurança Pública, os negros têm três vezes mais chances de serem vítimas da violência letal do que os brancos e, no estado do Rio, o risco é 30 vezes maior quando se trata de jovens moradores de comunidades, em comparação com os de mesma idade, residentes em outras regiões ou bairros. Portanto, na base da pirâmide social, a aleatoriedade se aproxima da determinação, e é a esse fenômeno que se refere a ciência popular das probabilidades.

As vias da vida são obstruídas, estreitando horizontes de possibilidades e tornando desigual a luta maquiaveliana entre fortuna e virtú. Estranho que ainda haja quem estranhe o êxito das igrejas evangélicas. Se o diretor sueco Ingmar Bergman filmasse o “Sétimo Selo” no Brasil, provavelmente trocaria a metáfora do jogo de xadrez entre o homem e a morte por um duelo armado e titânico.

A quinta criança

Ágatha é a quinta criança a morrer dessa forma atroz nas favelas cariocas, este ano, e o drama que ela encarna indica a intensificação de um processo que já estava em curso antes da posse do atual governo. No estado do Rio, entre 2003 e 2018, houve 15.061 mortes provocadas por ações policiais, mas somente nos oito primeiros meses de 2019, o número de vítimas já chegou a 1249, indicando que a quantidade anual baterá todos os recordes.

A magnitude da brutalidade policial faz com que as polícias fluminenses sejam responsáveis por um quarto das mortes provocadas por ações policiais em todo o país, por 40% dos homicídios que ocorrem na capital e por 30% dos que se perpetram no estado. Um quadro assim bárbaro não poderia existir, e persistir, sem – no mínimo – a conivência governamental e a negligência do Ministério Público e da Justiça.

A novidade de 2019, além da citada intensificação da violência policial de consequências letais, é a explicitação do envolvimento direto do governador Wilson Witzel nessa dinâmica. O governo do Rio não está só: o governo federal aponta no mesmo sentido, seja por meio das falas do presidente, seja por meio da inclusão do “excludente de ilicitude” no projeto encaminhado pelo ministro Sérgio Moro ao Congresso Nacional, seja ainda por intermédio da declaração do vice-presidente, Hamilton Mourão, que desqualifica as testemunhas do assassinato de Ágatha.

É notório que as intervenções de Witzel, ameaçando “abater criminosos” e “atirar na cabecinha”, exercem forte impacto nas bases policiais e funcionam como autorização para matar. O governador, que não demonstra a mesma disposição de enfrentamento quando se trata de lidar com o desafio central que as milícias representam para a segurança pública, já gravou vídeo em helicóptero, voando com policiais e anunciando combate ao crime com rajadas aéreas. Sua “política de segurança” é liberar policiais para promoverem o “abate”. Não somos os críticos que o dizem: é o próprio governador, sem pudor ou meias palavras.

Considerando as mortes em favelas do Rio, observando a ostensiva intenção de Witzel de dar sequência à escalada de violência perpetrada pelas forças do Estado, justifica-se, e mais que isso, requer-se, com urgência, tanto reivindicar seu impedimento, no âmbito da Assembleia estadual, quanto denunciá-lo ao Supremo Tribunal Federal e à Corte Interamericana de Direitos Humanos. Não fazê-lo implica tornar-se cúmplice por omissão do banho de sangue promovido pelo Estado.

A polícia miliciana

Resta uma pergunta: liberar policiais para matar, segundo sua própria avaliação discricionária, não seria o único modo de enfrentar o tráfico de drogas e armas?

Minha resposta, não só como pesquisador e estudioso, mas como gestor da área em níveis federal, estadual e municipal, é peremptória: não, em absoluto. Pelo contrário: liberar execuções extrajudiciais – o que equivale a decretar e aplicar a pena de morte sem julgamento – produz a degradação das instituições policiais e a anarquia na corporação. Gera, em pouco tempo, a indissociabilidade entre polícia e crime, alastrando a corrupção policial e promovendo o avanço epidêmico das máfias milicianas.

Tenho repetido à exaustão, ao longo das últimas três décadas, mas é necessário, ainda uma vez, insistir: quando se dá liberdade para matar ao policial na ponta, dá-se-lhe também liberdade para não fazê-lo, isto é, para negociar a vida do suspeito. Instaura-se aí uma moeda que não cessa de se valorizar. Afinal, como qualquer um está disposto a dar tudo para sobreviver, esta se converte na mais poderosa fonte de corrupção e abrirá as portas para negociações mais amplas, que levarão ao “arrego”, isto é, ao contrato com facções do tráfico, pelo qual policiais terceirizarão riscos e privatizarão ganhos, assumindo a posição vantajosa de sócios do crime.

A operação promoverá lucros maiores na medida em que lograr envolver coletivos de policiais mais amplos e organizados, os quais se destacarão das linhas de disciplina que os deveriam submeter a comando e controle mas que, na prática, são dissipadas. A seguir, essas linhas de disciplina, ou seja, as vertebrações institucionais hierárquicas são substituídas por articulações horizontais e verticais entre nichos corruptos. A anarquia assim estabelecida contamina e corrói a corporação. Os nichos prosperam, distribuem-se no espaço e ordenam a geopolítica marginal que acua o Estado e se engata na política, conspurcando eleições e obstruindo a liberdade de participação e expressão.

Além disso, como a própria história demonstra, incursões bélicas a favelas não constituem tática adequada para apreensão de armas, tarefa essencial e urgente que se leva a cabo com muito maior efetividade fora das comunidades, bloqueando os canais de abastecimento, em aeroportos, rodovias e patrulhando o litoral. A identificação das tramas nacionais e internacionais, das fontes de alimentação e das vias de transporte exige trabalho qualificado de inteligência e investigação. Por outro lado, a “guerra às drogas” tem fracassado no Brasil e no mundo, matando muito mais do que o consumo das substâncias ilícitas.

Há uma agenda elementar para minimizar a insegurança e mitigar os danos produzidos pelo próprio Estado, nas mais diversas áreas de sua atuação, particularmente na esfera da Justiça criminal. Trata-se de rever a política de drogas, focalizar a questão das armas e a problemática das milícias, reformar a arquitetura institucional da segurança pública e o modelo policial. Ao mesmo tempo, trata-se de respeitar com absoluto rigor a legalidade e os direitos humanos, nos presídios e fora deles, competir com os focos criminosos de recrutamento de jovens, oferecendo a estes, com sinal positivo, os benefícios materiais e subjetivos que procuram no tráfico, reduzindo a evasão escolar, as desigualdades abissais e enfrentando o racismo estrutural.

Como está ainda distante essa pauta transformadora, urge dar o primeiro passo: impedir Witzel e levá-lo aos tribunais. Em nome da vida, da Justiça, do Estado de Direito e da memória de Ágatha Félix.

* Eduardo Soares é antropólogo, ex-secretário nacional de Segurança Pública, autor de Desmilitarizar; segurança pública e direitos humanos, editora Boitempo.

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