quarta-feira, 22 de abril de 2020

Abaixo o moralismo financeiro

Por Luiz Gonzaga Belluzzo, na revista CartaCapital:

O sistema financeiro é a instância dominante nas relações econômicas do capitalismo de todos os tempos e em todos os tempos.

Um sábio atilado chamou o dinheiro e suas instituições capitalistas de comunidade.

Na posteridade da Segunda Guerra, os sistemas financeiros foram severamente disciplinados.

Salvo pequenos incidentes, a economia deslizou nos trilhos do crédito dirigido, dos controles de capitais entre os países, do gasto público amparado em sistemas fiscais progressivos.

A coisa andou tão bem que, nos anos 1970, o sistema regulado de relações monetárias e financeiras sucumbiu ao seu próprio sucesso.

As elevadas taxas de crescimento, salários reais colados aos aumentos de produtividade e sistemas de proteção social abrangentes impulsionaram a formação dos estoques de poupança (riqueza financeira) de ricos, remediados e até mesmo dos pobres.

O enriquecimento social alentou o enriquecimento privado.

A massa de direitos sobre a riqueza e a renda resulta em rastros dos fluxos de produção realizados da renda criada.

Nos ativos financeiros estão encarnadas as poupanças sacadas dos fluxos de renda pretéritos e é nesses ativos que vão encarnar-se as poupanças vindouras das famílias e das empresas.

As avaliações desses ativos nos mercados financeiros são realizadas diariamente e afetam as decisões dos administradores desses recursos – bancos e demais instituições da finança.

Essas decisões se dilaceram entre partilhar o risco do investimento na produção socialmente útil e geradora de novos empregos e fugir para os escaninhos da valorização “autorreferida” dos ativos financeiros.

Nos últimos 40 anos, esse jogo foi jogado nas regras do “nóis cum nóis”: fusões e aquisições, recompra de ações e pagamento de dividendos aos acionistas.

O desempenho das economias capitalistas justifica a indignação de muitos diante do aumento da desigualdade, da precarização dos empregos, para não falar da destruição dos sistemas de proteção social e da degradação das condições de vida das maiorias.

A indignação é justa, mas quase sempre desconsidera a natureza constitutiva e contraditória do crédito e dos mercados de avaliação da riqueza no capitalismo.

As funções e disfunções do sistema financeiro global e de seu poder encontram guarida nas investigações pioneiras e originais de Marx, Keynes e Schumpeter.

Análises amparadas em visões do capitalismo que privilegiam as relações estruturais e suas leis de movimento, ou, se quiserem, sua dinâmica.

Essas relações se transformam no propósito de permanecerem as mesmas.

As transformações devem garantir o propósito constitutivo desse sistema de relações: a acumulação de riqueza monetária.

Em seu movimento de reprodução, as estruturas metamorfoseiam seus modos de manifestação e práticas operacionais.

Hyman Minsky escrevia em 1986:

“No mundo de homens de negócios e de intermediários financeiros que buscam agressivamente o lucro, a inovação sempre vai suplantar a vigilância dos reguladores; as autoridades não podem prevenir mudanças na estrutura dos portfólios.

O que elas podem é impor exigências de capital para os vários tipos de ativos.

Se as autoridades impõem tais restrições aos bancos de depósito e estão atentas aos ‘quase-bancos’, bem como a outras instituições financeiras, estarão em condições de atenuar as ‘tendências destrutivas da economia’”.


A indignação e o moralismo não podem substituir a amargura e a dureza das investigações sistêmicas e sistemáticas.

Sim, o sistema financeiro não é uma deformação do capitalismo.

É a realização de sua natureza. Quando deixam o bicho solto, ele sai fazendo das suas.

É preciso botar a alimária de volta à jaula. Mas antes temos de curar as feridas dos que foram machucados por ele, sobretudo os menos favorecidos.

Quando ocorre uma ruptura dos nexos monetários, como a observada agora, a reconstrução exige coordenação centralizada para impedir a desvalorização brutal da riqueza: a derrocada invade as Bolsas de Valores e envereda pelos mercados incumbidos de avaliar os ativos de dívida que lastreiam as aplicações dos ricos, remediados e pobres.

É uma totalidade, um transatlântico que vai afogar os de cima e os que estão embaixo.

A ira moralista é o avesso do fervor livre-mercadista, assim como o moralismo midiático e internético de nosso tempo é a outra face da amoralidade das formas de dominação incrustadas na sociedade de massa contemporânea.

Nela, mostrou Hannah Arendt, o indivíduo desarraigado e sem rumo é manipulado e abusado por slogans simplificadores.

Os dois estados de espírito, a ira e a crença cega, alternam-se na alma dos bons cidadãos.

Um e outro impedem a compreensão da ruptura das formas econômicas e das relações sociais que assolam a crise atual.

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