Reproduzo intervenção apresentada por Joaquim Ernesto Palhares, presidente da Altercom, na Cúpula Eurolatinoamericana de Microempresas e Economia Social, realizada de 3 a 6 de maio em Cáceres, Espanha:
Existem no Brasil inúmeras entidades representativas dos mais variados setores da economia, inclusive dos meios de comunicação. Entretanto, nenhuma das entidades formadas por empresas de comunicação – televisão, rádio, jornais e revistas –, defende os interesses dos micro e pequenos empresários e empreendedores da comunicação.
Preocupados com essa realidade, um grupo expressivo de empresas, empresários e empreendedores individuais, reuniu-se em São Paulo e, após um processo de vários encontros e debates, fundou a Altercom – Associação Brasileira de Empresas e Empreendedores da Comunicação, da qual, com muito orgulho, fui eleito o primeiro presidente.
O nome Altercom, em português, significa tanto “comunicação alternativa” como “outra comunicação”. É exatamente esse o espírito que fez esse expressivo número de empresários fundarem a Altercom, já que não se sentem representados pelas várias entidades existentes, que defendem, exclusivamente, os interesses das grandes empresas de comunicação.
A recente crise financeira e econômica internacional mostrou mais uma vez a importância das micro, pequenas e médias empresas na vida dos países. Quando grandes corporações financeiras e não-financeiras desmoronaram em virtude de irresponsáveis e enlouquecidas movimentações no cassino financeiro global, a conta foi enviada para toda a sociedade. Não foi por acaso que os países que saíram mais rapidamente da crise foram aqueles que possuíam mercados internos bem estabelecidos. E não há mercado interno sem pequenos produtores.
O Brasil é um exemplo disso, possuindo cerca de 5 milhões de micro e pequenas empresas, que representam 98% do total das empresas brasileiras. Em termos estatísticos, esse segmento empresarial representa cerca de 25% do Produto Interno Bruto Brasileiro (PIB), gerando 14 milhões de empregos, o que representa cerca de 60% do emprego formal no país, segundo dados do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae).
A existência dessa rede de pequenas e micro empresas garante capilaridade econômica e social, um fator crucial para fazer circular sangue nas veias da economia e manter um país saudável perante a crise. Gostaria de propor uma reflexão sobre a crescente diminuição dessa capilaridade em um setor essencial em nossas vidas, o da comunicação, e sobre como esse problema pode atrasar e prejudicar os processos de integração entre nossos povos.
A mídia e a crise
O comportamento da maioria das empresas de comunicação no processo de colapso do sistema financeiro internacional, em 2008, é exemplar para ilustrar o que estamos falando aqui. Durante pelo menos duas décadas, os veículos dessas empresas repetiram à exaustão a mesma ladainha de exaltação do Estado mínimo, do livre mercado, das privatizações, da desregulamentação dos mercados, da necessidade de flexibilizar as relações trabalhistas e a legislação ambiental.
Quando esse modelo afundou, saíram todos correndo bater às portas daquele que era, até então, o grande vilão: o Estado. Os lucros milionários destas décadas foram apropriados por alguns poucos afortunados. Já os prejuízos foram socializados com o conjunto da população. E a mídia fez de conta que não havia dito o que disse durante décadas.
Neste processo os meios de comunicação, com seus altíssimos níveis de audiência, trataram de estruturar diariamente uma determinada realidade dos fatos, gerando sentidos e interpretações e definindo as “verdades” sobre atores sociais, econômicos e políticos. Segundo essa realidade e essas verdades, o Estado deveria parar de atrapalhar os mercados para que a prosperidade econômica pudesse chegar a todos. Nunca chegou, como se sabe. Nunca chegará neste modelo excludente e concentrador de renda. A propaganda foi fraudulenta. Mentiras e discursos puramente ideológicos foram repetidos dia e noite, difundindo distorções e preconceitos. Quando veio o vendaval, nenhum desses meios veio a público assumir sua parcela de responsabilidade.
Os mais audaciosos chegaram a criticar o Estado por ter fracassado em fazer o que deveria: fiscalizar os mercados. É claro que se o Estado tentasse fazer isso, imediatamente soariam os “editoriais cidadãos” denunciando o autoritarismo iminente e a ameaça à liberdade individual. E agora já vemos em ritmo crescente uma espantosa campanha midiática que utiliza alguns sinais isolados para dizer que o pior da crise econômica mundial já passou. O renascimento das bolhas financeiras nas bolsas de valores é apresentado como o sintoma de uma melhoria geral. Na verdade, os socorros (públicos) globais de 2008-2009 desaceleraram a queda econômica, mas geraram enormes déficits fiscais em diversos países (EUA, entre eles), trazendo graves ameaças inflacionárias. Ou seja, há preocupações de sobra no horizonte.
No entanto, prossegue a prática de uma autêntica barbárie política diária, de desinformação e gestação permanente de mensagens formadoras de uma consciência coletiva reacionária, conservadora e desinformada. Uma consciência que procura alimentar uma opinião pública de perfil anti-político, que desacredita a existência de um Estado democraticamente interventor na luta de interesses sociais, que apresenta os políticos como seres que oscilam do ridículo ao monstruoso.
Democracia e comunicação
A democracia precisa de maior diversidade informativa e de instrumentos que garantam um amplo direito à comunicação. Para que isso se torne realidade, é necessário modificar a lógica que impera hoje no setor e que privilegia os interesses dos grandes grupos econômicos. Os proprietários dos grandes meios de comunicação defendem, entre seus ideais, a liberdade de expressão, a pluralidade, a competição e o livre mercado. No entanto, o poder midiático está cada vez mais concentrado nas mãos de um pequeno grupo de corporações, que dominam o sistema de produção e difusão de informações e detém a imensa maioria dos recursos de publicidade (públicos e privados).
Qualquer menção à necessidade de democratizar esse cenário é rebatida fortemente por artigos e editoriais enfurecidos destes grupos hegemônicos. Quem defende a democratização da produção e do acesso à informação é imediatamente acusado de “autoritário” e “inimigo da liberdade de imprensa”. O poder das grandes corporações midiáticas é muito forte, estendendo-se também às escolas e universidades que formam os futuros profissionais da comunicação.
O escritor francês Paul Virilio, ao falar sobre o papel da mídia no mundo de hoje, definiu bem o tamanho do problema a ser enfrentado. A mídia contemporânea, disse Virilio, é o único poder que tem a prerrogativa de editar suas próprias leis, ao mesmo tempo em que sustenta a pretensão de não se submeter a nenhuma outra. A justificativa para tal procedimento trafega entre o cinismo e a treva: uma vez afetada a liberdade de imprensa, todas as liberdades estarão em perigo. Cinismo, denuncia, porque esta reivindicação agressiva trata de negar o óbvio: os meios de divulgação e de formação de opinião vêm se concentrando, de forma brutal, no mundo inteiro, nas mãos de grandes empresas.
Vejamos alguns dados apresentados pelo professor Venício Lima ("Quem controla a mídia", Carta Maior, 23/04/2010):
Uma das conseqüências da crise internacional, no setor da mídia impressa, tem sido a compra de publicações tradicionais por investidores – russos, árabes, australianos, latino-americanos, portugueses – cujo compromisso maior é exclusivamente o sucesso de seus negócios. Aparentemente, não há espaço para o interesse público. Já aconteceu com os britânicos The Independent e The Evening Standard e com o France-Soir na França. Na Itália, está em curso uma briga de gigantes no mercado de televisão envolvendo o primeiro ministro e proprietário de mídia Silvio Berlusconi (Mediaset) e o australiano naturalizado americano Ropert Murdoch (Sky Itália). O mesmo acontece no leste europeu. Na Polônia, tanto o Fakt (o diário de maior tiragem), quanto o Polska (300 mil exemplares/dia) são controlados por grupos alemães.
Nos Estados Unidos, a News Corporation de Murdoch avança a passos largos: depois do New York Post, o principal tablóide do país, veio a Fox News, canal de notícias 24h na TV a cabo; o The Wall Street Journal; o estúdio Fox Films e a editora Harper Collins. E o mexicano Carlos Slim é um dos novos acionistas do The New York Times. Professor da New York University, Crispin Miller, fez a seguinte advertência em relação ao que vem ocorrendo nos Estados Unidos (matéria da revista Carta Capital, 591):
“O grande perigo para a democracia norte-americana não é a virtual morte dos jornais diários. É a concentração de donos da mídia no país. Ironicamente, há 15 anos, se dizia que era prematuro falar em uma crise cívica, com os conglomerados exercendo poder de censura sobre a imensidão de notícias disponíveis no mundo pós-internet”.
A transformação dos veículos de comunicação em grandes empresas, com interesses que vão muito além daqueles propriamente midiáticos, fez da informação, definitivamente, uma mercadoria regida pela lógica que comanda o mundo do lucro. Ela, a informação, progressivamente, deixa de ser um bem e um serviço público. Isso se reflete diretamente na qualidade dos noticiários que assistimos todos os dias nos jornais, rádios, televisões e sites. A economia passou a reinar nestes espaços. Todo o resto passou a ser tratado de forma secundária e como um espetáculo. Esse fenômeno é mais dramático na política, onde a cobertura tornou-se, no mais das vezes, uma exploração de fofocas, intrigas e banalidades. As pautas e os espaços prioritários passam a ser definidos pelos interesses econômicos estratégicos dessas empresas.
Grande mídia ignora interesses dos pequenos
Esse poderio econômico tem repercussão direta na vida política e social dos países. Assim, falar da necessidade de democratizar a mídia implica, diretamente, falar da necessidade de democratizar o poder político e econômico. Os interesses econômicos e as articulações políticas decorrentes destes interesses refletem-se diretamente na qualidade da informação oferecida ao público. Não é por acaso que a cobertura política dos grandes veículos mal consegue disfarçar seus interesses econômicos e políticos e ignora quase que completamente os interesses de micros, pequenos e médios empresários.
Para utilizar uma expressão ao gosto dos grandes empresários do setor, precisamos de uma revolução capitalista na comunicação mundial. Mais proprietários, mais veículos, mais produtores de comunicação, produtos de melhor qualidade, consumidores mais exigentes, descentralização dos centros produtores para garantir o direito de todos os cidadãos do mundo terem informação e comunicação de qualidade. Isso, porém, não será feito no modelo atual, fortemente monopolista e excludente. Os empresários da comunicação precisam decidir se querem mesmo fazer comunicação, entendida como um bem de utilidade pública, ou seguirão tratando-a como uma mercadoria qualquer, cujo sucesso, depende de esmagar os competidores a qualquer preço.
Falar de uma comunicação de qualidade, neste cenário, significa falar, entre outras coisas, em liberdade de criação, de difusão e de acesso. Significa compartilhar conhecimentos, recursos, práticas e iniciativas. As palavras “liberdades” e “compartilhamento” expressam, em boa medida, o que é sonegado hoje à maioria das populações globalizadas. Elas apontam para uma visão generosa de um mundo mais solidário, onde a comunicação, o diálogo com o próximo e a criatividade não são reduzidas à condição de mais uma mercadoria destinada a gerar lucro máximo a custo mínimo.
A queda na qualidade do jornalismo é algo assustador que ameaça o futuro da própria democracia. Não se trata, portanto, de um debate restrito aos profissionais do setor, mas de uma agenda de toda a sociedade. É o direito de dispor de uma informação de qualidade que está em jogo. E quando falamos em processos de integração é impossível fazê-lo sem levar em conta a questão da comunicação. Trata-se, afinal de contas, de construir canais de diálogo e informação entre povos que estão afastados e que não conhecem uns a vida dos outros.
É preciso tomar iniciativas concretas nesta direção e é preciso começar já. Mais do que declarações genéricas, precisamos construir iniciativas concretas que mostrem aos cidadãos do mundo a natureza do problema e como ele influencia nas suas vidas diária. Um dos primeiros passos é o fortalecimento da articulação política entre todos aqueles setores preocupados com os temas da integração e da comunicação. Essa articulação pode se traduzir em algumas medidas concretas:
- Incluir o debate sobre a comunicação em todos os eventos que tenham a integração como pauta;
- Criar um espaço virtual para que esse debate possa ocorrer, apontando para a criação de um Fórum Social Mundial da Comunicação;
- Organizar o Fórum Mundial da Comunicação, no âmbito do processo do Fórum Social Mundial. Trabalhar para realizar o primeiro Fórum Mundial da Comunicação no próximo FSM que será realizado no Senegal. Cabe lembrar aqui a importância do Fórum Social Mundial como espaço internacional que se levantou contra o chamado Consenso de Washington, superando em importância mundial o Fórum Econômico de Davos, e que desembocou na eleição de Lula no Brasil e de vários presidentes progressistas na América do Sul.
- Criar uma secretaria geral internacional, para a organização do Fórum, com a participação da Alampyme, da Apyme, da Recom, da Asemce, da Eurochambres e da Altercom, bem como de outras entidades, como a Cexeci, o Media Watch Global, o Observatório Brasileiro de Mídia e outras associações aqui não incluídas, mas que por suas atividades cotidianas, mereçam o convite para participarem.
Todas essas iniciativas podem convergir para uma articulação internacional entre nossos países pela democratização da comunicação e pela construção de uma globalização dos nossos povos e da solidariedade e não apenas do capital.
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domingo, 9 de maio de 2010
A tropa de elite do Instituto Millenium
Reproduzo reportagem de Anselmo Massad, publicada na última edição da Revista do Brasil:
Durante 12 horas de uma segunda-feira, 1º de março, colunistas e comentaristas de alguns dos veículos de comunicação comercial de maior tiragem e audiência no país estiveram reunidos em São Paulo para um tipo de discussão inédito, em um hotel num bairro nobre da cidade. O 1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão tinha, como cerne, debater “constantes ameaças” exercidas especialmente por governos sul-americanos – incluindo o brasileiro.
Dois altos comandantes de empresas de comunicação participaram – Roberto Civita, do Grupo Abril, e Otavio Frias Filho, da Folha de S.Paulo. As exposições mais proeminentes, porém, couberam a quem é contratado para emitir opiniões. O geógrafo Demétrio Magnoli (revista Época e Folha), o cineasta Arnaldo Jabor (Jornal da Globo e Rádio CBN), o jornalista Reinaldo Azevedo (Veja Online), o filósofo Denis Rosenfield e outros articulistas protagonizaram as duras acusações ao governo federal, à esquerda e ao PT, no que diz respeito a “atentar contra a liberdade de expressão, de imprensa e a democracia”.
Junto de representantes de empresas de comunicação sul-americanas e de jornalistas como William Waack (Jornal da Globo e Globonews), Carlos Alberto Di Franco (Estadão) e Carlos Alberto Sardenberg (CBN e Globonews) ofereceram um receituário informal para a cobertura do pleito. O conjunto de recomendações funcionaria como um guia sobre como se posicionar, política e partidariamente, durante as eleições presidenciais deste ano.
“Parece-me que, pela primeira vez de uma forma pública, houve um evento com espaço para articular uma pauta”, avalia Cristina Charão, membro do Coletivo Intervozes e editora do Observatório Direito à Comunicação. “Não é só eleitoral, é uma pauta programática”, completa. Ela pondera que, antes, apenas em encontros de entidades patronais, como a Associação Nacional de Jornais (ANJ), empresários do setor se reuniam, mas sem delimitar tão claramente uma plataforma. Desta vez, até os vídeos das palestras estão no YouTube.
Questão de projeto
O organizador do evento foi o Instituto Millenium, associação constituída em 2006 e hoje com status de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip). Orgulha-se de não receber dinheiro público e lista, entre os colaboradores financeiros, João Roberto Marinho, Jorge Gerdau Johannpeter e Roberto Civita. A ONG assume posições claras de defesa de livre mercado, propriedade privada, democracia representativa, “sem caráter partidário”.
Alguns pontos dessa agenda são: nada de democracia participativa, de políticas de ações afirmativas (como cotas), de presença do Estado na economia ou de constituição de algum mecanismo de controle da sociedade sobre o que se produz em termos de comunicação social, sobretudo aquela veiculada por meio de concessões públicas, como emissoras de rádio e TV. Ou, como definiu Rosenfield, articulista do Estadão e da Folha: “Observamos no Brasil tendências cada vez maiores de cerceamento da liberdade de expressão... O projeto é claro. Só não vê coerência quem não quer”, afirma.
Aliás, mesmo o compromisso das empresas de comunicação comercial com os valores tão caros aos participantes do fórum chegou a ser questionados. Reinaldo Azevedo, blogueiro da Veja, alertou os colegas que a “guerra da democracia do lado de cá” está sendo perdida. Para mudar? “Na hora em que a imprensa decidir e passar a defender os valores que são da democracia, da economia de mercado e do individualismo, e que não se vai dar trela para quem a quer solapar, começaremos a mudar uma certa cultura”, previu.
Demétrio Magnoli contribuiu para apontar a direção almejada. “Se o Serra ganhasse, faríamos uma festa em termos das liberdades. Seria ruim para os fumantes, mas mudaria muito em relação à liberdade de expressão. Mas a perspectiva é de que a Dilma vença”, lamentou.
O humorista Marcelo Madureira assinalou em seu depoimento que “como cidadão se sente ameaçado” naquilo que lhe é mais caro, por ter representado “a luta da minha vida por viver num país democrático”. O casseta não poupou críticas a Lula – “o presidente da República faz da mentira prática política” – e admitiu sua preferência partidária: “Eu sou socialdemocrata, tenho simpatia pelo PSDB. Não tenho nenhuma vergonha de dizer isso. Eu sou oposição hoje. Totalmente”.
Longe dali, o jornalista e professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) Bernardo Kucinski, colaborador da Revista do Brasil, acredita que se trata de uma tentativa artificial de os empresários da comunicação dizerem que há censura no Brasil por parte do Estado. “Os setores conservadores querem se antecipar a um debate que deve ser feito, que é inevitável, que é o debate do oligopólio dos meios de comunicação”, resume, em entrevista à revista Fórum. “Então eles exacerbam o discurso, que se torna cada vez mais agressivo, raivoso.” Para Kucinski, a afirmação de que há censura no Brasil ou ameaças às liberdades de imprensa não procedem. Segundo ele, houve casos em que o Judiciário manifestou-se em relação a alguns veículos. “Liberdade de quem? É só discurso pela liberdade empresarial”, alfineta.
Partidarismo?
A partir de 2005, quando alguns dos principais expoentes do governo Lula sofriam um bombardeio de acusações, defensores do governo foram progressivamente se inclinando a um discurso de enfrentamento à mídia. Refutavam denúncias atribuindo-lhes caráter de golpismo e defesa de interesses da elite brasileira. A expressão mais famosa foi cunhada pelo deputado federal Fernando Ferro (PT-PE), e tornada famosa na blogosfera após adoção pelo jornalista Paulo Henrique Amorim, em seu Conversa Afiada: Partido da Imprensa Golpista, o PIG.
Agora, passado o encontro de 1º de março, ganharam novo ímpeto as acusações de conspiração por parte da mídia. Um dos relatos mais detalhados, que poderia até soar como teoria da conspiração se não tivesse tantas aplicações práticas no dia a dia da imprensa, é assinado pelo jornalista Mauro Carrara, que nomeia como “Tempestade no Cerrado” uma nova operação de bombardeio midiático sobre o governo Lula. A paródia de “Tempestade no Deserto”, ação militar dos Estados Unidos na primeira Guerra do Golfo, em 1990, envolveria ataques por frentes variadas e com intensidade – como resgatar o “mensalão”, vincular Lula ao Irã e a Cuba, destacar notícias econômicas negativas, e por aí afora.
O professor Venício Lima, do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília (UnB), pondera: “Como no Brasil não há restrições à propriedade cruzada de tipos de canais, os conglomerados são multimídia – donos de jornais, rádios, TVs e grandes portais –, o que reduz o número de empresas a poucos grupos em todo o país”, lembra. O professor organizou um livro sobre o papel dos principais veículos na campanha de 2006, incluindo três estudos quantitativos – do Observatório Brasileiro de Mídia, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo (ESPM-SP) – a respeito da cobertura. Todos indicaram predisposição para favorecer o então candidato da oposição, Geraldo Alckmin (PSDB).
Para Venício, seria uma conduta de lealdade, honestidade e correção ética se a mídia assumisse a preferência por seus candidatos, prática de exceção no Brasil, adotada apenas por O Estado de S. Paulo, entre a mídia convencional. Ou por Carta Capital, entre as revistas comerciais, e esta RdB, em 2006 – a exemplo do que fazem veículos importantes nos Estados Unidos.
“É uma situação mais ou menos invertida em relação ao Brasil: lá (nos EUA), ao assumir o apoio, há um esforço para que essa posição não contamine a cobertura jornalística”, aponta Venício. “Aqui, os grupos de mídia, embora não declarem abertamente o apoio a um candidato, essa posição fica cada vez mais explícita por contaminar a cobertura. Mesmo assim há certa subestimação da capacidade crítica do público, de que adotam conduta imparcial”, compara.
Em outros momentos da história política recente do país, as grandes coberturas da imprensa não davam indicações de haver uma articulação orquestrada. O chamado “pensamento único” em relação a temas como privatizações, flexibilização de direitos trabalhistas, liberdade para o próprio mercado ditar os rumos da economia, etc., parecia fluir de um entendimento tácito. Agora, o fórum do Instituto Millenium expõe uma conduta organizada e inédita. Os desdobramentos dessa articulação poderão ser acompanhados com a chegada da temporada eleitoral. E qual será o peso dessa unidade frente ao potencial da internet de multiplicar o acesso à informação – em ascensão inclusive nas classes C e D? A conferir, nos próximos capítulos.
Cartilha ou coincidência?
O 1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão explicitou posições políticas da mídia conservadora. Há quem diga que o receituário sempre esteve presente no noticiário. Outros apostam num recrudescimento do chamado “pensamento único” a partir dessa articulação inédita em torno de pautas como:
- “Novo comando do PT ataca mídia na 1ª reunião” (O Globo, 6/3/2010: “A cúpula do PT está disposta a intensificar o debate ideológico sobre o papel da mídia na cobertura da campanha presidencial”).
- “Liberdade em risco” (Zero Hora, 6/3/2010, em editorial: “As constantes tentativas de interferência na atuação da imprensa têm mais defensores entre integrantes do Partido dos Trabalhadores do que no governo”).
Críticas à política externa
- “Presidente é cúmplice da tirania, afirma grevista” (Folha, 10/3/2010, sobre comportamento de Lula em visita a Cuba).
- “Defesa do Teerã reforça isolamento brasileiro” (Folha, 4/3/2010, análise aponta “soberba” da política externa por defender diálogo com o Irã mesmo frente a Hillary Clinton, secretária de Estado norte-americana).
Desqualificar Dilma Rousseff
- “A questão é como impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo” (fala de Arnaldo Jabor, no fórum).
- “Novata, Dilma obedece aos veteranos do PT” (Folha, 21/3/2010. Direta como a reportagem, uma charge mostrava Dilma como uma marionete controlada pelos tais “veteranos”).
Assumir posição eleitoral
- “A imprensa tem que acabar com o isentismo (sic) e o outroladismo (sic), essa história de dar o mesmo espaço a todos” (fala de Reinaldo Azevedo no fórum).
- “Serra vai se lançar candidato defendendo ‘Estado ativo’” (Estadão, 13/3/2010, manchete da edição que inaugurava o novo projeto visual. “Sinceridade, serenidade, crítica sem agressão, propostas no lugar de promessas são as linhas gerais da campanha presidencial do governador de São Paulo, José Serra”).
- “Enfim, candidato! Serra admite na TV que concorrerá à Presidência” (Veja, 22/3/2010).
- “Serra comemora aniversário em meio à agenda intensa” (Folha Online, 19/3/2010. “Nem mesmo em seu aniversário o governador deixará sua agenda pública de lado, que nos últimos dias anda cheia por conta das obras e realizações que pretende inaugurar antes do prazo máximo para a desincompatibilização do cargo para a disputa eleitoral, no início de abril”).
Combater intervenções do Estado
- “Banda larga é eleitoral” (Estadão, 13/3/2010. Ethevaldo Siqueira, articulista de tecnologia, critica a proposta de uso de redes públicas de fibra óptica para fornecer acesso à internet em alta velocidade a todo o país).
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Durante 12 horas de uma segunda-feira, 1º de março, colunistas e comentaristas de alguns dos veículos de comunicação comercial de maior tiragem e audiência no país estiveram reunidos em São Paulo para um tipo de discussão inédito, em um hotel num bairro nobre da cidade. O 1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão tinha, como cerne, debater “constantes ameaças” exercidas especialmente por governos sul-americanos – incluindo o brasileiro.
Dois altos comandantes de empresas de comunicação participaram – Roberto Civita, do Grupo Abril, e Otavio Frias Filho, da Folha de S.Paulo. As exposições mais proeminentes, porém, couberam a quem é contratado para emitir opiniões. O geógrafo Demétrio Magnoli (revista Época e Folha), o cineasta Arnaldo Jabor (Jornal da Globo e Rádio CBN), o jornalista Reinaldo Azevedo (Veja Online), o filósofo Denis Rosenfield e outros articulistas protagonizaram as duras acusações ao governo federal, à esquerda e ao PT, no que diz respeito a “atentar contra a liberdade de expressão, de imprensa e a democracia”.
Junto de representantes de empresas de comunicação sul-americanas e de jornalistas como William Waack (Jornal da Globo e Globonews), Carlos Alberto Di Franco (Estadão) e Carlos Alberto Sardenberg (CBN e Globonews) ofereceram um receituário informal para a cobertura do pleito. O conjunto de recomendações funcionaria como um guia sobre como se posicionar, política e partidariamente, durante as eleições presidenciais deste ano.
“Parece-me que, pela primeira vez de uma forma pública, houve um evento com espaço para articular uma pauta”, avalia Cristina Charão, membro do Coletivo Intervozes e editora do Observatório Direito à Comunicação. “Não é só eleitoral, é uma pauta programática”, completa. Ela pondera que, antes, apenas em encontros de entidades patronais, como a Associação Nacional de Jornais (ANJ), empresários do setor se reuniam, mas sem delimitar tão claramente uma plataforma. Desta vez, até os vídeos das palestras estão no YouTube.
Questão de projeto
O organizador do evento foi o Instituto Millenium, associação constituída em 2006 e hoje com status de Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip). Orgulha-se de não receber dinheiro público e lista, entre os colaboradores financeiros, João Roberto Marinho, Jorge Gerdau Johannpeter e Roberto Civita. A ONG assume posições claras de defesa de livre mercado, propriedade privada, democracia representativa, “sem caráter partidário”.
Alguns pontos dessa agenda são: nada de democracia participativa, de políticas de ações afirmativas (como cotas), de presença do Estado na economia ou de constituição de algum mecanismo de controle da sociedade sobre o que se produz em termos de comunicação social, sobretudo aquela veiculada por meio de concessões públicas, como emissoras de rádio e TV. Ou, como definiu Rosenfield, articulista do Estadão e da Folha: “Observamos no Brasil tendências cada vez maiores de cerceamento da liberdade de expressão... O projeto é claro. Só não vê coerência quem não quer”, afirma.
Aliás, mesmo o compromisso das empresas de comunicação comercial com os valores tão caros aos participantes do fórum chegou a ser questionados. Reinaldo Azevedo, blogueiro da Veja, alertou os colegas que a “guerra da democracia do lado de cá” está sendo perdida. Para mudar? “Na hora em que a imprensa decidir e passar a defender os valores que são da democracia, da economia de mercado e do individualismo, e que não se vai dar trela para quem a quer solapar, começaremos a mudar uma certa cultura”, previu.
Demétrio Magnoli contribuiu para apontar a direção almejada. “Se o Serra ganhasse, faríamos uma festa em termos das liberdades. Seria ruim para os fumantes, mas mudaria muito em relação à liberdade de expressão. Mas a perspectiva é de que a Dilma vença”, lamentou.
O humorista Marcelo Madureira assinalou em seu depoimento que “como cidadão se sente ameaçado” naquilo que lhe é mais caro, por ter representado “a luta da minha vida por viver num país democrático”. O casseta não poupou críticas a Lula – “o presidente da República faz da mentira prática política” – e admitiu sua preferência partidária: “Eu sou socialdemocrata, tenho simpatia pelo PSDB. Não tenho nenhuma vergonha de dizer isso. Eu sou oposição hoje. Totalmente”.
Longe dali, o jornalista e professor aposentado da Universidade de São Paulo (USP) Bernardo Kucinski, colaborador da Revista do Brasil, acredita que se trata de uma tentativa artificial de os empresários da comunicação dizerem que há censura no Brasil por parte do Estado. “Os setores conservadores querem se antecipar a um debate que deve ser feito, que é inevitável, que é o debate do oligopólio dos meios de comunicação”, resume, em entrevista à revista Fórum. “Então eles exacerbam o discurso, que se torna cada vez mais agressivo, raivoso.” Para Kucinski, a afirmação de que há censura no Brasil ou ameaças às liberdades de imprensa não procedem. Segundo ele, houve casos em que o Judiciário manifestou-se em relação a alguns veículos. “Liberdade de quem? É só discurso pela liberdade empresarial”, alfineta.
Partidarismo?
A partir de 2005, quando alguns dos principais expoentes do governo Lula sofriam um bombardeio de acusações, defensores do governo foram progressivamente se inclinando a um discurso de enfrentamento à mídia. Refutavam denúncias atribuindo-lhes caráter de golpismo e defesa de interesses da elite brasileira. A expressão mais famosa foi cunhada pelo deputado federal Fernando Ferro (PT-PE), e tornada famosa na blogosfera após adoção pelo jornalista Paulo Henrique Amorim, em seu Conversa Afiada: Partido da Imprensa Golpista, o PIG.
Agora, passado o encontro de 1º de março, ganharam novo ímpeto as acusações de conspiração por parte da mídia. Um dos relatos mais detalhados, que poderia até soar como teoria da conspiração se não tivesse tantas aplicações práticas no dia a dia da imprensa, é assinado pelo jornalista Mauro Carrara, que nomeia como “Tempestade no Cerrado” uma nova operação de bombardeio midiático sobre o governo Lula. A paródia de “Tempestade no Deserto”, ação militar dos Estados Unidos na primeira Guerra do Golfo, em 1990, envolveria ataques por frentes variadas e com intensidade – como resgatar o “mensalão”, vincular Lula ao Irã e a Cuba, destacar notícias econômicas negativas, e por aí afora.
O professor Venício Lima, do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política da Universidade de Brasília (UnB), pondera: “Como no Brasil não há restrições à propriedade cruzada de tipos de canais, os conglomerados são multimídia – donos de jornais, rádios, TVs e grandes portais –, o que reduz o número de empresas a poucos grupos em todo o país”, lembra. O professor organizou um livro sobre o papel dos principais veículos na campanha de 2006, incluindo três estudos quantitativos – do Observatório Brasileiro de Mídia, do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj) e da Escola Superior de Propaganda e Marketing de São Paulo (ESPM-SP) – a respeito da cobertura. Todos indicaram predisposição para favorecer o então candidato da oposição, Geraldo Alckmin (PSDB).
Para Venício, seria uma conduta de lealdade, honestidade e correção ética se a mídia assumisse a preferência por seus candidatos, prática de exceção no Brasil, adotada apenas por O Estado de S. Paulo, entre a mídia convencional. Ou por Carta Capital, entre as revistas comerciais, e esta RdB, em 2006 – a exemplo do que fazem veículos importantes nos Estados Unidos.
“É uma situação mais ou menos invertida em relação ao Brasil: lá (nos EUA), ao assumir o apoio, há um esforço para que essa posição não contamine a cobertura jornalística”, aponta Venício. “Aqui, os grupos de mídia, embora não declarem abertamente o apoio a um candidato, essa posição fica cada vez mais explícita por contaminar a cobertura. Mesmo assim há certa subestimação da capacidade crítica do público, de que adotam conduta imparcial”, compara.
Em outros momentos da história política recente do país, as grandes coberturas da imprensa não davam indicações de haver uma articulação orquestrada. O chamado “pensamento único” em relação a temas como privatizações, flexibilização de direitos trabalhistas, liberdade para o próprio mercado ditar os rumos da economia, etc., parecia fluir de um entendimento tácito. Agora, o fórum do Instituto Millenium expõe uma conduta organizada e inédita. Os desdobramentos dessa articulação poderão ser acompanhados com a chegada da temporada eleitoral. E qual será o peso dessa unidade frente ao potencial da internet de multiplicar o acesso à informação – em ascensão inclusive nas classes C e D? A conferir, nos próximos capítulos.
Cartilha ou coincidência?
O 1º Fórum Democracia e Liberdade de Expressão explicitou posições políticas da mídia conservadora. Há quem diga que o receituário sempre esteve presente no noticiário. Outros apostam num recrudescimento do chamado “pensamento único” a partir dessa articulação inédita em torno de pautas como:
- “Novo comando do PT ataca mídia na 1ª reunião” (O Globo, 6/3/2010: “A cúpula do PT está disposta a intensificar o debate ideológico sobre o papel da mídia na cobertura da campanha presidencial”).
- “Liberdade em risco” (Zero Hora, 6/3/2010, em editorial: “As constantes tentativas de interferência na atuação da imprensa têm mais defensores entre integrantes do Partido dos Trabalhadores do que no governo”).
Críticas à política externa
- “Presidente é cúmplice da tirania, afirma grevista” (Folha, 10/3/2010, sobre comportamento de Lula em visita a Cuba).
- “Defesa do Teerã reforça isolamento brasileiro” (Folha, 4/3/2010, análise aponta “soberba” da política externa por defender diálogo com o Irã mesmo frente a Hillary Clinton, secretária de Estado norte-americana).
Desqualificar Dilma Rousseff
- “A questão é como impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo” (fala de Arnaldo Jabor, no fórum).
- “Novata, Dilma obedece aos veteranos do PT” (Folha, 21/3/2010. Direta como a reportagem, uma charge mostrava Dilma como uma marionete controlada pelos tais “veteranos”).
Assumir posição eleitoral
- “A imprensa tem que acabar com o isentismo (sic) e o outroladismo (sic), essa história de dar o mesmo espaço a todos” (fala de Reinaldo Azevedo no fórum).
- “Serra vai se lançar candidato defendendo ‘Estado ativo’” (Estadão, 13/3/2010, manchete da edição que inaugurava o novo projeto visual. “Sinceridade, serenidade, crítica sem agressão, propostas no lugar de promessas são as linhas gerais da campanha presidencial do governador de São Paulo, José Serra”).
- “Enfim, candidato! Serra admite na TV que concorrerá à Presidência” (Veja, 22/3/2010).
- “Serra comemora aniversário em meio à agenda intensa” (Folha Online, 19/3/2010. “Nem mesmo em seu aniversário o governador deixará sua agenda pública de lado, que nos últimos dias anda cheia por conta das obras e realizações que pretende inaugurar antes do prazo máximo para a desincompatibilização do cargo para a disputa eleitoral, no início de abril”).
Combater intervenções do Estado
- “Banda larga é eleitoral” (Estadão, 13/3/2010. Ethevaldo Siqueira, articulista de tecnologia, critica a proposta de uso de redes públicas de fibra óptica para fornecer acesso à internet em alta velocidade a todo o país).
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A guerrilha eleitoral na internet
Reproduzo entrevista concedida a Juliana Sada, publicada no blog Escrevinhador:
A cinco meses das eleições, a internet já é campo de uma batalha intensa entre os partidários dos diversos candidatos. Para além das páginas oficias, se destacam as publicações feitas por pessoas comuns – sem ter necessariamente ligação oficial com o partido ou estar a serviço dele. Os conteúdos são publicados por meio de diversas ferramentas que se tornam cada vez mais populares entre os brasileiros; é o caso do Twitter, Facebook, YouTube, Orkut e dos já conhecidos blogs.
Na campanha eleitoral, estas ferramentas serão as novas armas dos publicitários seguindo o exemplo do que foi feito na campanha de Barack Obama, na qual as redes sociais foram um trunfo do candidato vencedor. A campanha do PT já tem como consultores os publicitários da campanha de Obama. Procurados também pelo PSDB, eles afirmaram não fazer campanha para partidos conservadores. Além da campanha oficial, ambos partidos já montaram uma estrutura para dar suporte a simpatizantes que desejem disseminar informações e campanhas pela internet.
Para debater o assunto, Escrevinhador conversou com Ronaldo Lemos, professor titular e coordenador da área de propriedade intelectual da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (RJ) e diretor do Creative Commons no Brasil.
As redes sociais são um fenômeno relativamente novo e ainda muito do seu potencial está sendo explorado. Na sua visão, qual o nível de aproveitamento destas ferramentas no Brasil?
Ronaldo Lemos: De um modo geral, sem considerar o contexto das eleições, o uso das redes sociais e demais ferramentas (como blogs, twitter etc) é intenso no Brasil. No entanto, é essencialmente um uso não-profissional. Falta ainda no Brasil um grau maior empreendedorismo tanto nas redes sociais (com o desenvolvimento de aplicações, por exemplo), quanto na produção e profissionalização de conteúdo online descentralizados. No Brasil, grande parte da produção de conteúdo profissional na web é feita pelas empresas de tradicionais de mídia.
Uma das inovações trazidas pelas redes sociais é a possibilidade de indivíduos comuns serem emissores de opiniões e mensagens, realizando uma comunicação descentralizada. Entretanto, as redes sociais já são largamente utilizadas pela publicidade Isso traz algum prejuízo à possibilidade das pessoas serem emissores?
Esse ponto é importante. Muitas vezes a comunicação pela web faz perder um pedaço importante da informação: quem é o seu emissor. Nesse sentido, mensagens comerciais ou partidárias são muitas vezes lançadas na rede como se fossem comunicação casual entre pessoas. Casos extremos a esse respeito acontecem, por exemplo, na China, onde o governo chegou a pagar R$ 0,10 por comentário anônimo postado nas redes sociais e sites que fossem favoráveis ao governo. Nesse sentido, é importante lembrar que o uso da web dá sim poder para as pessoas, mas organizações, partidos políticos e governos, inclusive os autoritários, aprenderam rápido a se valer também dessas ferramentas.
Durante a campanha de Barack Obama, as redes sociais (tanto oficiais quanto de apoiadores) foram fundamentais. Isto já foi percebido pelos políticos brasileiro que já preparam campanhas que explorarão mais as redes. Você espera que surta o mesmo efeito aqui? Tendo em vista que o uso à internet no Brasil é muito distinto do estadunidense.
A internet vai modificar bastante a dinâmica das campanhas e dá para antever disputas acirradas pela rede. No entanto, sua capacidade de influenciar as eleições majoritárias, como presidente e governadores, a meu ver, ainda é pequena. Obviamente não dá para deixar a internet de lado, mas ela não será um fator central de decisão nessas campanhas. No entanto, a rede permitirá pela primeira vez o surgimento de candidaturas de "nicho", por exemplo, para o Congresso e Assembléias Legislativas estaduais, com novas vozes que sem a internet não teriam chance.
Este panorama também depende da iniciativa das pessoas em participarem da campanha como apoiador. Isso pode criar uma nova maneira de ativismo ou engajamento?
Pode sim. O que fez muita diferença nos EUA foi a possibilidade dos eleitores doarem dinheiro descentralizadamente para seus candidatos através da internet. No Brasil isso passou a ser possível também, mas por razões culturais, não creio que essa prática será significativa para essas eleições, com um volume baixo de doações sendo feito dessa forma.
Nas últimas semanas, temos visto já uma acirrada disputa na internet entre partidários da Dilma Roussef e do José Serra. De um lado temos páginas oficiais sendo criadas para atacar os candidatos (caso do gentequemente do PSDB, por exemplo) e de outro, temos as páginas não oficiais que se dão ao direito que recorrer a xingamentos, sátiras mais pesadas... Esse panorama é esperado? Que tipo de regulação pode ser aplicada nestes casos?
A lei eleitoral manteve o direito de resposta para sites que fazem campanha. Dá para esperar um número grande de ações nos tribunais eleitorais a esse respeito. Mas controlar o conteúdo na web é tarefa difícil e isso é bom. Essas eleições serão um passo importante no sentido de maior amadurecimento da esfera pública brasileiro. Nesse sentido, a campanha pela internet entrega cada vez mais ao eleitor a responsabilidade de ponderar e interpretar o valor de cada informação emitida na rede.
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A cinco meses das eleições, a internet já é campo de uma batalha intensa entre os partidários dos diversos candidatos. Para além das páginas oficias, se destacam as publicações feitas por pessoas comuns – sem ter necessariamente ligação oficial com o partido ou estar a serviço dele. Os conteúdos são publicados por meio de diversas ferramentas que se tornam cada vez mais populares entre os brasileiros; é o caso do Twitter, Facebook, YouTube, Orkut e dos já conhecidos blogs.
Na campanha eleitoral, estas ferramentas serão as novas armas dos publicitários seguindo o exemplo do que foi feito na campanha de Barack Obama, na qual as redes sociais foram um trunfo do candidato vencedor. A campanha do PT já tem como consultores os publicitários da campanha de Obama. Procurados também pelo PSDB, eles afirmaram não fazer campanha para partidos conservadores. Além da campanha oficial, ambos partidos já montaram uma estrutura para dar suporte a simpatizantes que desejem disseminar informações e campanhas pela internet.
Para debater o assunto, Escrevinhador conversou com Ronaldo Lemos, professor titular e coordenador da área de propriedade intelectual da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas (RJ) e diretor do Creative Commons no Brasil.
As redes sociais são um fenômeno relativamente novo e ainda muito do seu potencial está sendo explorado. Na sua visão, qual o nível de aproveitamento destas ferramentas no Brasil?
Ronaldo Lemos: De um modo geral, sem considerar o contexto das eleições, o uso das redes sociais e demais ferramentas (como blogs, twitter etc) é intenso no Brasil. No entanto, é essencialmente um uso não-profissional. Falta ainda no Brasil um grau maior empreendedorismo tanto nas redes sociais (com o desenvolvimento de aplicações, por exemplo), quanto na produção e profissionalização de conteúdo online descentralizados. No Brasil, grande parte da produção de conteúdo profissional na web é feita pelas empresas de tradicionais de mídia.
Uma das inovações trazidas pelas redes sociais é a possibilidade de indivíduos comuns serem emissores de opiniões e mensagens, realizando uma comunicação descentralizada. Entretanto, as redes sociais já são largamente utilizadas pela publicidade Isso traz algum prejuízo à possibilidade das pessoas serem emissores?
Esse ponto é importante. Muitas vezes a comunicação pela web faz perder um pedaço importante da informação: quem é o seu emissor. Nesse sentido, mensagens comerciais ou partidárias são muitas vezes lançadas na rede como se fossem comunicação casual entre pessoas. Casos extremos a esse respeito acontecem, por exemplo, na China, onde o governo chegou a pagar R$ 0,10 por comentário anônimo postado nas redes sociais e sites que fossem favoráveis ao governo. Nesse sentido, é importante lembrar que o uso da web dá sim poder para as pessoas, mas organizações, partidos políticos e governos, inclusive os autoritários, aprenderam rápido a se valer também dessas ferramentas.
Durante a campanha de Barack Obama, as redes sociais (tanto oficiais quanto de apoiadores) foram fundamentais. Isto já foi percebido pelos políticos brasileiro que já preparam campanhas que explorarão mais as redes. Você espera que surta o mesmo efeito aqui? Tendo em vista que o uso à internet no Brasil é muito distinto do estadunidense.
A internet vai modificar bastante a dinâmica das campanhas e dá para antever disputas acirradas pela rede. No entanto, sua capacidade de influenciar as eleições majoritárias, como presidente e governadores, a meu ver, ainda é pequena. Obviamente não dá para deixar a internet de lado, mas ela não será um fator central de decisão nessas campanhas. No entanto, a rede permitirá pela primeira vez o surgimento de candidaturas de "nicho", por exemplo, para o Congresso e Assembléias Legislativas estaduais, com novas vozes que sem a internet não teriam chance.
Este panorama também depende da iniciativa das pessoas em participarem da campanha como apoiador. Isso pode criar uma nova maneira de ativismo ou engajamento?
Pode sim. O que fez muita diferença nos EUA foi a possibilidade dos eleitores doarem dinheiro descentralizadamente para seus candidatos através da internet. No Brasil isso passou a ser possível também, mas por razões culturais, não creio que essa prática será significativa para essas eleições, com um volume baixo de doações sendo feito dessa forma.
Nas últimas semanas, temos visto já uma acirrada disputa na internet entre partidários da Dilma Roussef e do José Serra. De um lado temos páginas oficiais sendo criadas para atacar os candidatos (caso do gentequemente do PSDB, por exemplo) e de outro, temos as páginas não oficiais que se dão ao direito que recorrer a xingamentos, sátiras mais pesadas... Esse panorama é esperado? Que tipo de regulação pode ser aplicada nestes casos?
A lei eleitoral manteve o direito de resposta para sites que fazem campanha. Dá para esperar um número grande de ações nos tribunais eleitorais a esse respeito. Mas controlar o conteúdo na web é tarefa difícil e isso é bom. Essas eleições serão um passo importante no sentido de maior amadurecimento da esfera pública brasileiro. Nesse sentido, a campanha pela internet entrega cada vez mais ao eleitor a responsabilidade de ponderar e interpretar o valor de cada informação emitida na rede.
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TV por assinatura e legislação no varejo
Reproduzo artigo do professor Laurindo Lalo Leal Filho, publicado no sítio Carta Maior:
Arrasta-se desde 2007 a discussão na Câmara dos Deputados em torno de um Projeto de Lei, conhecido como PL-29, destinado a regulamentar o funcionamento da TV por assinatura no Brasil. Um setor que é, ao mesmo tempo, oligopolista e campeão de reclamações nos serviços de defesa do consumidor. Além de cobrar tarifas elevadas por seus serviços, muito superiores às praticadas em outros países.
As reclamações têm fundamento. As operadoras desse sistema além da tarifa mensal, obtém receita de publicidade e do aluguel de espaço para canais de vendas e religiosos. Ou seja, o consumidor compra um produto televisivo e é obrigado a assistir o que não lhe interessa. Na verdade ele paga duas vezes: a assinatura e o percentual destinado à propaganda embutido nos produtos que consome e que são anunciados por esses canais. Há algo errado aí.
A TV por assinatura chega aos domicílios basicamente por três caminhos: através do cabo que detêm 61% do mercado e onde o domínio é da Net, via satélite com 34%, reduto da Sky e por micro-ondas com 5%. Com isso, as operadoras impõe regras e preços a seu critério.
No projeto de lei apresentado à Câmara o propósito inicial era o de regulamentar a entrada das empresas de telefonia no setor. Para evitar a ocupação total das grades de programação por filmes e programas estrangeiros, surgiu a proposta do estabelecimento de cotas destinadas a garantir espaço à produção nacional. Foi o que bastou para despertar a ira dos radiodifusores. Eles não admitem nenhuma limitação social ao seu negócio. E, a partir dai, a tramitação do PL-29 empacou.
Segundo a revista Tele-Time, para ajudar a esvaziar o projeto, “a Sky teria procurado a bancada evangélica da Câmara dos Deputados, uma das de maior peso nas negociações parlamentares, e ponderado que, se aprovado o regime de cotas previsto no PL 29, os canais religiosos corriam o risco de ser retirados de sua programação”.
A ameaça pode fazer com que o projeto seja remetido para o Plenário, ao invés de terminar na Comissão, como estava previsto. E lá, diante de tanta celeuma, dificilmente seria aprovado.
Na verdade, esse caso é apenas uma pequena amostra das dificuldades em se legislar sobre a radiodifusão no Brasil. E serve para encobrir uma questão que é escamoteada há muito mais tempo: a elaboração de uma nova lei geral para o setor no país. Promulgada em 1962, a lei é do tempo da TV em preto e branco, de uma época em que o video-tape era uma grande novidade permitindo, por exemplo, ao humorista Chico Anísio dialogar com ele mesmo, no ar, para deslumbramento da platéia. Hoje, quase 50 anos depois, com a TV digital já implantada, a lei permanece a mesma. A consequência é que vivemos a política do vale-tudo. E nesse esporte ganham os mais fortes, no caso as grandes empresas de rádio e de televisão.
Para não mexer no geral, trata-se do particular. Como nesse caso da TV por assinatura. Enquanto esse serviço atinge menos de oito milhões de domicílios, a TV aberta cobre todo o país, mas escapa de qualquer regulação. Uma legislação que coíba os abusos da TV fechada será sempre bem-vinda, mas o ideal é que ela seja parte de um todo muito maior. De uma lei que ponha a TV brasileira nos eixos.
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Arrasta-se desde 2007 a discussão na Câmara dos Deputados em torno de um Projeto de Lei, conhecido como PL-29, destinado a regulamentar o funcionamento da TV por assinatura no Brasil. Um setor que é, ao mesmo tempo, oligopolista e campeão de reclamações nos serviços de defesa do consumidor. Além de cobrar tarifas elevadas por seus serviços, muito superiores às praticadas em outros países.
As reclamações têm fundamento. As operadoras desse sistema além da tarifa mensal, obtém receita de publicidade e do aluguel de espaço para canais de vendas e religiosos. Ou seja, o consumidor compra um produto televisivo e é obrigado a assistir o que não lhe interessa. Na verdade ele paga duas vezes: a assinatura e o percentual destinado à propaganda embutido nos produtos que consome e que são anunciados por esses canais. Há algo errado aí.
A TV por assinatura chega aos domicílios basicamente por três caminhos: através do cabo que detêm 61% do mercado e onde o domínio é da Net, via satélite com 34%, reduto da Sky e por micro-ondas com 5%. Com isso, as operadoras impõe regras e preços a seu critério.
No projeto de lei apresentado à Câmara o propósito inicial era o de regulamentar a entrada das empresas de telefonia no setor. Para evitar a ocupação total das grades de programação por filmes e programas estrangeiros, surgiu a proposta do estabelecimento de cotas destinadas a garantir espaço à produção nacional. Foi o que bastou para despertar a ira dos radiodifusores. Eles não admitem nenhuma limitação social ao seu negócio. E, a partir dai, a tramitação do PL-29 empacou.
Segundo a revista Tele-Time, para ajudar a esvaziar o projeto, “a Sky teria procurado a bancada evangélica da Câmara dos Deputados, uma das de maior peso nas negociações parlamentares, e ponderado que, se aprovado o regime de cotas previsto no PL 29, os canais religiosos corriam o risco de ser retirados de sua programação”.
A ameaça pode fazer com que o projeto seja remetido para o Plenário, ao invés de terminar na Comissão, como estava previsto. E lá, diante de tanta celeuma, dificilmente seria aprovado.
Na verdade, esse caso é apenas uma pequena amostra das dificuldades em se legislar sobre a radiodifusão no Brasil. E serve para encobrir uma questão que é escamoteada há muito mais tempo: a elaboração de uma nova lei geral para o setor no país. Promulgada em 1962, a lei é do tempo da TV em preto e branco, de uma época em que o video-tape era uma grande novidade permitindo, por exemplo, ao humorista Chico Anísio dialogar com ele mesmo, no ar, para deslumbramento da platéia. Hoje, quase 50 anos depois, com a TV digital já implantada, a lei permanece a mesma. A consequência é que vivemos a política do vale-tudo. E nesse esporte ganham os mais fortes, no caso as grandes empresas de rádio e de televisão.
Para não mexer no geral, trata-se do particular. Como nesse caso da TV por assinatura. Enquanto esse serviço atinge menos de oito milhões de domicílios, a TV aberta cobre todo o país, mas escapa de qualquer regulação. Uma legislação que coíba os abusos da TV fechada será sempre bem-vinda, mas o ideal é que ela seja parte de um todo muito maior. De uma lei que ponha a TV brasileira nos eixos.
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Os jornais e os seus leitores
Reproduzo artigo do professor Venício A. de Lima, publicado no Observatório da Imprensa:
Joseph T. Klapper (1917-1984), ex-diretor do departamento de pesquisa da CBS (Columbia Broadcasting System), é geralmente lembrado por ser o principal articulador da teoria dos efeitos limitados da comunicação. Seu clássico The Effects of Mass Communication (Free Press, NY, 1960), resultado de uma longa pesquisa realizada nos Estados Unidos e financiada pela própria CBS, concluiu que "a capacidade de influência da comunicação de massa limita-se, sobretudo, ao reforço de valores, comportamentos e atitudes, mais do que a uma capacidade real de os modificar ou manipular".
Muito aconteceu nas comunicações e na pesquisa desse campo de estudos nos últimos 50 anos. Passamos da era dos jornais, das revistas e do rádio para a era da televisão e, mais recentemente, para a era digital da internet. O leitor/espectador deixou de ser erroneamente considerado como um sujeito passivo e, claro, hoje se sabe que os poderosos "efeitos" da comunicação de massa se manifestam, sobretudo, no longo prazo.
De qualquer maneira, muito do que se supunha ser verdade "científica" em relação aos hábitos de consumo da mídia impressa – jornais e revistas – parece ainda fazer sentido. E muito.
Jornalões no Brasil
Há cerca de doze anos, o professor Bernardo Kucinski, referindo-se aos jornalões brasileiros, fez uma afirmação – à qual já recorri inúmeras vezes – que dizia o seguinte:
"A elite dominante é ao mesmo tempo a fonte, a protagonista e a leitora das notícias; uma circularidade que exclui a massa da população da dimensão escrita do espaço público definido pelos meios de comunicação de massa" ("Mídia da Exclusão" in A Síndrome da Antena Parabólica, Editora Perseu Abramo, 1998).
Os resultados da pesquisa Datafolha, divulgados no domingo (2/5) pela Folha de S.Paulo, confirmam tanto as conclusões de Klapper como a afirmação de Kucinski.
Pesquisa Datafolha
Matéria sob o título "Leitor aprova corbertura eleitoral da Folha” descreve a pesquisa Datafolha realizada junto a 350 leitores, assinantes e secundários (que leem o exemplar do assinante), moradores da Grande São Paulo e que leem a Folha ao menos uma vez por semana. A pesquisa foi realizada no período entre 19 e 20 de abril e a margem de erro máxima é de cinco pontos percentuais, para mais ou para menos.
Os dados revelam que a grande maioria dos leitores (74%) não considera que a Folha favoreça alguma das pré-candidaturas à Presidência. Entre os que veem algum favorecimento, 13% apontam o tucano José Serra como beneficiado pela cobertura e 6% a petista Dilma Rousseff.
Em relação especificamente à cobertura do governo Lula, 67% dos leitores avaliam a Folha como "crítica na medida certa", enquanto outros 21% consideram o jornal "menos crítico do que o necessário". Apenas 9% consideram o jornal "mais crítico do que o necessário" quando o assunto é a gestão de Lula.
Com relação à intenção de voto, a pesquisa mostra que 40% dos leitores disseram espontaneamente que devem votar em Serra para presidente. A ex-ministra Dilma tem 10% das preferências dos leitores. A senadora licenciada Marina Silva, 6%. Quando os leitores são estimulados pelos pesquisadores a escolher em quem votar a partir de uma lista de candidatos, a preferência a favor de Serra é ainda maior: chega a 54%, ante os 18% de Marina e 15% de Dilma.
Na análise por segmentos, Serra destaca-se entre os leitores de 70 anos ou mais (70%), os que possuem ensino fundamental e médio (61%) e entre os que ganham entre 10 e 20 salários mínimos (62%). Marina tem seu melhor desempenho entre os mais jovens, de 16 a 29 anos, e entre os que ganham até dez salários mínimos (23%). Dilma tem a preferência dos leitores homens (20%) e dos que ganham mais de 20 salários mínimos (23%).
Leitura alternativa
Uma outra leitura dos resultados da pesquisa Datafolha poderia corretamente afirmar que a Folha é um jornal cuja maioria dos leitores:
1. Tem renda acima de 10 salários mínimos (eleitores de Serra, 54% e Dilma, 15%);
2. Não considera que sua cobertura favoreça alguma das pré-candidaturas à Presidência da República;
3. Considera a cobertura do governo Lula "crítica na medida certa" (67%) ou "menos crítica do que o necessário" (21%);
4. Declara sua intenção de votar em José Serra (54%).
Ou ainda se poderia ler corretamente a pesquisa concluindo que a Folha é um jornal cuja maioria dos leitores tem renda acima de 10 salários mínimos, é tucana e, em boa parte, gostaria de ver o jornal mais crítico em relação ao governo Lula. Em resumo: os jornalões são "a cara" de seus leitores. Ou não são?
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Joseph T. Klapper (1917-1984), ex-diretor do departamento de pesquisa da CBS (Columbia Broadcasting System), é geralmente lembrado por ser o principal articulador da teoria dos efeitos limitados da comunicação. Seu clássico The Effects of Mass Communication (Free Press, NY, 1960), resultado de uma longa pesquisa realizada nos Estados Unidos e financiada pela própria CBS, concluiu que "a capacidade de influência da comunicação de massa limita-se, sobretudo, ao reforço de valores, comportamentos e atitudes, mais do que a uma capacidade real de os modificar ou manipular".
Muito aconteceu nas comunicações e na pesquisa desse campo de estudos nos últimos 50 anos. Passamos da era dos jornais, das revistas e do rádio para a era da televisão e, mais recentemente, para a era digital da internet. O leitor/espectador deixou de ser erroneamente considerado como um sujeito passivo e, claro, hoje se sabe que os poderosos "efeitos" da comunicação de massa se manifestam, sobretudo, no longo prazo.
De qualquer maneira, muito do que se supunha ser verdade "científica" em relação aos hábitos de consumo da mídia impressa – jornais e revistas – parece ainda fazer sentido. E muito.
Jornalões no Brasil
Há cerca de doze anos, o professor Bernardo Kucinski, referindo-se aos jornalões brasileiros, fez uma afirmação – à qual já recorri inúmeras vezes – que dizia o seguinte:
"A elite dominante é ao mesmo tempo a fonte, a protagonista e a leitora das notícias; uma circularidade que exclui a massa da população da dimensão escrita do espaço público definido pelos meios de comunicação de massa" ("Mídia da Exclusão" in A Síndrome da Antena Parabólica, Editora Perseu Abramo, 1998).
Os resultados da pesquisa Datafolha, divulgados no domingo (2/5) pela Folha de S.Paulo, confirmam tanto as conclusões de Klapper como a afirmação de Kucinski.
Pesquisa Datafolha
Matéria sob o título "Leitor aprova corbertura eleitoral da Folha” descreve a pesquisa Datafolha realizada junto a 350 leitores, assinantes e secundários (que leem o exemplar do assinante), moradores da Grande São Paulo e que leem a Folha ao menos uma vez por semana. A pesquisa foi realizada no período entre 19 e 20 de abril e a margem de erro máxima é de cinco pontos percentuais, para mais ou para menos.
Os dados revelam que a grande maioria dos leitores (74%) não considera que a Folha favoreça alguma das pré-candidaturas à Presidência. Entre os que veem algum favorecimento, 13% apontam o tucano José Serra como beneficiado pela cobertura e 6% a petista Dilma Rousseff.
Em relação especificamente à cobertura do governo Lula, 67% dos leitores avaliam a Folha como "crítica na medida certa", enquanto outros 21% consideram o jornal "menos crítico do que o necessário". Apenas 9% consideram o jornal "mais crítico do que o necessário" quando o assunto é a gestão de Lula.
Com relação à intenção de voto, a pesquisa mostra que 40% dos leitores disseram espontaneamente que devem votar em Serra para presidente. A ex-ministra Dilma tem 10% das preferências dos leitores. A senadora licenciada Marina Silva, 6%. Quando os leitores são estimulados pelos pesquisadores a escolher em quem votar a partir de uma lista de candidatos, a preferência a favor de Serra é ainda maior: chega a 54%, ante os 18% de Marina e 15% de Dilma.
Na análise por segmentos, Serra destaca-se entre os leitores de 70 anos ou mais (70%), os que possuem ensino fundamental e médio (61%) e entre os que ganham entre 10 e 20 salários mínimos (62%). Marina tem seu melhor desempenho entre os mais jovens, de 16 a 29 anos, e entre os que ganham até dez salários mínimos (23%). Dilma tem a preferência dos leitores homens (20%) e dos que ganham mais de 20 salários mínimos (23%).
Leitura alternativa
Uma outra leitura dos resultados da pesquisa Datafolha poderia corretamente afirmar que a Folha é um jornal cuja maioria dos leitores:
1. Tem renda acima de 10 salários mínimos (eleitores de Serra, 54% e Dilma, 15%);
2. Não considera que sua cobertura favoreça alguma das pré-candidaturas à Presidência da República;
3. Considera a cobertura do governo Lula "crítica na medida certa" (67%) ou "menos crítica do que o necessário" (21%);
4. Declara sua intenção de votar em José Serra (54%).
Ou ainda se poderia ler corretamente a pesquisa concluindo que a Folha é um jornal cuja maioria dos leitores tem renda acima de 10 salários mínimos, é tucana e, em boa parte, gostaria de ver o jornal mais crítico em relação ao governo Lula. Em resumo: os jornalões são "a cara" de seus leitores. Ou não são?
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sábado, 8 de maio de 2010
13 de maio: quem festeja a pantomima?
Reproduzo artigo enviado pelo amigo Gilson Caroni Filho:
No ano de 1983, uma foto estampada na primeira página do Jornal do Brasil renderia ao seu autor, o repórter-fotográfico Luiz Morier, o Prêmio Esso de fotojornalismo. Nela, um grupo de negros atados pelo pescoço por uma corda é levado pela polícia, após uma das frequentes batidas em favelas do Rio de Janeiro. Assemelhando-se àquelas pinturas do século XIX, em que aparecia o capataz com seu chicote ao lado de escravos amarrados, a fotografia de Luiz Morier era encimada por um sugestivo título: "Todos negros" A pergunta remete a duas questões que permanecem dolorosamente atuais: por que a data referência da libertação dos negros continua sendo o 13 de maio e qual é seu exato significado?
Talvez o questionamento mereça mais desdobramentos. Por que a crença de que vivemos numa democracia racial permanece tão enraizada no pensamento da maioria da população brasileira quando, ao nos determos no cotidiano social deste país, percebemos as profundas desigualdades que ainda envolve distintas etnias? A constatação de que os negros e não-brancos em geral são aqueles que possuem empregos menos significativos socialmente não seria evidência suficiente para demolir de vez um imaginário construído ao longo de dois séculos?
Apesar do contrapondo estabelecido pela criação do dia da Consciência Negra, permanece o costume frequente de nos curvamos diante do ritual do 13 de maio. A mesma elite que não aceita políticas de cotas, que protela a sanção do Estatuto da Igualdade Racial, enaltece a libertação dos escravos como inicio de uma nova era de liberdade. Sequer se dá conta de que notórios abolicionistas como Nabuco, Patrocínio, Rebouças e Antônio Bento, entre outros, afirmaram que a abolição só se cumpriria de fato com a reforma agrária e a entrada dos trabalhadores num sistema de oportunidade plena e concorrência.
Mesmo os setores mais progressistas, ao denunciar as condições sócio-econômicas dos negros depois de 122 anos de abolição, justificam a situação atual como resquício do passado escravo. Isso explicaria a permanência de mecanismos não institucionais de imobilização que atingem o segmento negro da população, produzindo distâncias sociais enormes, jamais compensadas? Ou é cortina de fumaça para preservar a aura de “bondade" da princesa branca? Estudos feitos sobre a época da chamada Abolição mostram que 70% da população dos escravos já estavam livres antes de 1888, ou por crise econômica de algumas frações da classe dominante ou por pressões dos próprios negros, através de lutas, fugas e rebeliões.
A Lei Áurea foi, na verdade, uma investida bem sucedida das elites pelo controle político de uma situação que lhes fugia das próprias mãos. Sua eficácia ideológica pode ser atestada até hoje com os festejos do 13 de maio.O que é um indicador preciso da recorrente capacidade de antecipação política da classe dominante continua sendo percebido como "gesto magnânimo", exemplo da cordialidade vigente em nossa história política. A teoria dos resquícios (que de fato existem) tenta ocultar um fato relevante: os mais de um século de modo de produção capitalista e seus mecanismos de exclusão da população negra não permitem jogar todo débito na conta do passado.
Como observa Fátima do Carmo Silva Santos, secretária da União Negra Ituana (UNEI), a Lei Áurea foi na verdade um passo importante, mas como veio desacompanhada de reformas estruturais, resultou em "uma demissão em massa do povo negro, já que eles não tinham emprego, educação ou qualquer condição de conseguir um trabalho que não fosse com os seus senhores em troca de um teto".
Embora o processo de desestruturação do mito da “democracia racial" tenha avançado muito nos últimos anos, no terreno da luta social e política perdura um grande atraso a ser superado. Cabe à República completar a Abolição com políticas públicas eficazes. Enquanto tivermos um Demóstenes Torres (DEM-GO) responsabilizando os ex-escravos por sua própria escravidão - e publishers escravocratas pagando a capatazes magnolis para descer o açoite em jornalistas que noticiaram o fato – é fundamental que usemos a data para destacar a dimensão cultural, a construção social e ideológica de “raça" como elementos reprodutores de desigualdades sociais perpetuadas.
É a única comemoração possível em Paços Imperiais que, desde 1888, alforriam as más consciências de uma elite incapaz de elaborar projetos republicanos. As mesmas que criminalizam o MST para manter inalterada a estrutura fundiária que vem da Lei de Terras, aprovada em 1850. As mesmas que acham possível falar em libertação sem nenhuma política de inserção aplicada. O condimento neoliberal não esconde a essência escravocrata da direita brasileira. É bom pensar nisso em outubro.
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No ano de 1983, uma foto estampada na primeira página do Jornal do Brasil renderia ao seu autor, o repórter-fotográfico Luiz Morier, o Prêmio Esso de fotojornalismo. Nela, um grupo de negros atados pelo pescoço por uma corda é levado pela polícia, após uma das frequentes batidas em favelas do Rio de Janeiro. Assemelhando-se àquelas pinturas do século XIX, em que aparecia o capataz com seu chicote ao lado de escravos amarrados, a fotografia de Luiz Morier era encimada por um sugestivo título: "Todos negros" A pergunta remete a duas questões que permanecem dolorosamente atuais: por que a data referência da libertação dos negros continua sendo o 13 de maio e qual é seu exato significado?
Talvez o questionamento mereça mais desdobramentos. Por que a crença de que vivemos numa democracia racial permanece tão enraizada no pensamento da maioria da população brasileira quando, ao nos determos no cotidiano social deste país, percebemos as profundas desigualdades que ainda envolve distintas etnias? A constatação de que os negros e não-brancos em geral são aqueles que possuem empregos menos significativos socialmente não seria evidência suficiente para demolir de vez um imaginário construído ao longo de dois séculos?
Apesar do contrapondo estabelecido pela criação do dia da Consciência Negra, permanece o costume frequente de nos curvamos diante do ritual do 13 de maio. A mesma elite que não aceita políticas de cotas, que protela a sanção do Estatuto da Igualdade Racial, enaltece a libertação dos escravos como inicio de uma nova era de liberdade. Sequer se dá conta de que notórios abolicionistas como Nabuco, Patrocínio, Rebouças e Antônio Bento, entre outros, afirmaram que a abolição só se cumpriria de fato com a reforma agrária e a entrada dos trabalhadores num sistema de oportunidade plena e concorrência.
Mesmo os setores mais progressistas, ao denunciar as condições sócio-econômicas dos negros depois de 122 anos de abolição, justificam a situação atual como resquício do passado escravo. Isso explicaria a permanência de mecanismos não institucionais de imobilização que atingem o segmento negro da população, produzindo distâncias sociais enormes, jamais compensadas? Ou é cortina de fumaça para preservar a aura de “bondade" da princesa branca? Estudos feitos sobre a época da chamada Abolição mostram que 70% da população dos escravos já estavam livres antes de 1888, ou por crise econômica de algumas frações da classe dominante ou por pressões dos próprios negros, através de lutas, fugas e rebeliões.
A Lei Áurea foi, na verdade, uma investida bem sucedida das elites pelo controle político de uma situação que lhes fugia das próprias mãos. Sua eficácia ideológica pode ser atestada até hoje com os festejos do 13 de maio.O que é um indicador preciso da recorrente capacidade de antecipação política da classe dominante continua sendo percebido como "gesto magnânimo", exemplo da cordialidade vigente em nossa história política. A teoria dos resquícios (que de fato existem) tenta ocultar um fato relevante: os mais de um século de modo de produção capitalista e seus mecanismos de exclusão da população negra não permitem jogar todo débito na conta do passado.
Como observa Fátima do Carmo Silva Santos, secretária da União Negra Ituana (UNEI), a Lei Áurea foi na verdade um passo importante, mas como veio desacompanhada de reformas estruturais, resultou em "uma demissão em massa do povo negro, já que eles não tinham emprego, educação ou qualquer condição de conseguir um trabalho que não fosse com os seus senhores em troca de um teto".
Embora o processo de desestruturação do mito da “democracia racial" tenha avançado muito nos últimos anos, no terreno da luta social e política perdura um grande atraso a ser superado. Cabe à República completar a Abolição com políticas públicas eficazes. Enquanto tivermos um Demóstenes Torres (DEM-GO) responsabilizando os ex-escravos por sua própria escravidão - e publishers escravocratas pagando a capatazes magnolis para descer o açoite em jornalistas que noticiaram o fato – é fundamental que usemos a data para destacar a dimensão cultural, a construção social e ideológica de “raça" como elementos reprodutores de desigualdades sociais perpetuadas.
É a única comemoração possível em Paços Imperiais que, desde 1888, alforriam as más consciências de uma elite incapaz de elaborar projetos republicanos. As mesmas que criminalizam o MST para manter inalterada a estrutura fundiária que vem da Lei de Terras, aprovada em 1850. As mesmas que acham possível falar em libertação sem nenhuma política de inserção aplicada. O condimento neoliberal não esconde a essência escravocrata da direita brasileira. É bom pensar nisso em outubro.
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João Cândido, petróleo, racismo e emprego
Reproduzo artigo de Beto Almeida, presidente da TV Cidade Livre de Brasília, publicado no sítio Carta Maior:
Nesta sexta-feira, a Transpetro lançou ao mar o navio petroleiro João Cândido. Batizado com o nome de um dos nossos heróis, marinheiro negro, filho de escravos e líder da Revolta da Chibata, o navio tem 247 metros de comprimento, casco duplo que previne acidente e vários significados históricos. Primeiro, leva a industrialização para Pernambuco, contribuindo para reduzir as desigualdades regionais. Em segundo lugar, dá um cala-boca para quem insinuou de forma maldosa que o PAC era apenas virtual. Em terceiro, prova que está em curso a remontagem da indústria naval brasileira criminosamente destruída na era da privataria.
Como um simbolismo adicional, um total de 120 operários dekasseguis foram trazidos do Japão, com as suas famílias, para juntarem-se aos operários nordestinos que construíram o navio. Os primeiros não precisam mais morar longe da pátria; os outros, saem do canavial para a indústria e não precisam mais pegar o pau-de-arara, nem entoar com amargura a Triste Partida, de Patativa do Assaré, como um certo pernambucano teve que fazer na década de 50. Até que virou presidente.
Mulheres trabalhando como chefes de equipe de soldagem no Estaleiro Atlântico Sul, no município de Ipojuca, em Pernambuco, pronunciavam frases orgulhosas lembrando que não sabiam nem que esta também poderia ser uma tarefa feminina. O ex-pescador de caranguejo contava em depoimento agreste que antes do estaleiro não sabia direito como ganhar o sustento da família a cada dia que acordava. O ex-canavieiro, agora operário, destaca que não depende mais temporalidade insegura da colheita da cana e quando acorda já tem para onde ir, quando antes vivia a insegurança. Estes alguns dos vários depoimentos colhidos na inauguração do navio petroleiro João Cândido ao ser lançado ao mar pernambucano. Deixa em terra um rastro de transformação.
Inicialmente, na vida destas pessoas antes lançadas ao deus-dará de uma economia nordestina reprimida, desindustrializada. A transformação atinge os municípios mais próximos, pois no local onde foi construído o estaleiro, uma antiga moradora, Mônica Roberta de França, negra de 24 anos, que foi escolhida para ser a madrinha do navio, dizia que ali era um imenso areal, não tinha nada. Agora tem uma indústria e uma escola técnica para os jovens da região. E que só agora ela tem seu primeiro emprego na vida com carteira assinada.
Desculpas à Nação
Para o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, o lançamento do João Cândido ao mar tem o mesmo alcance histórico do gesto de Getúlio Vargas quando deu forte impulso à nacionalização da indústria naval brasileira, na década de 30, por meio da empresa de navegação estatal. “Aqueles que destruíram a indústria naval tem que assumir sua responsabilidade e pedir desculpas à Nação”, disse Campos na solenidade que teve a participação de 5 mil pessoas aproximadamente, sobretudo dos operários.
O Navio João Cândido abre uma nova rota para a economia brasileira. Incialmente, porque a Petrobrás já não será obrigada a desembolsar cerca de 2,5 bilhões de reais por ano com o afretamento de navios estrangeiros. Há, portanto, um revigoramento do papel do estado na medida em que a reconstrução da indústria naval brasileira é resultado direto de encomendas da nossa empresa estatal petroleira. O que também permite avaliar a gravidade e o caráter antinacional das decisões que levaram um país com a enorme costa que possui, tendo montado uma economia naval de peso internacional respeitável, retroceder em um setor tão estratégico.
E isso quando nossa economia petroleira, há anos, já dava sinais de expansão, mesmo quando estavam no poder os que promoveram o espantoso sucateamento, a desnacionalização e a abertura da navegação em favor dos países que querem impedir nosso desenvolvimento. Este tema, certamente, não poderá faltar nos debates da campanha presidencial deste ano.
Almirante negro
A escolha do nome João Cândido também foi destacada na solenidade por meio do novo ministro da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, Eloy Moreira. Vale registrar que há pouco mais de um ano Lula participou de homenagem ao Almirante Negro inaugurando sua estátua na Praça XV, no Rio, que estava há anos guardada, supostamente porque não teria havido grande empenho da Marinha na realização desta solenidade. Pois bem, agora João Cândido não está apenas nas “pedras pisadas do cais”, com diz a maravilhosa canção de Bosco e Blanc. Está na estátua e está cruzando mares levando para o mundo afora o nome de um de nossos heróis.
Navegar é possível
O novo petroleiro estatal, portanto, é uma prova real de que sim “navegar é possível”, como dizia uma faixa no ato. Navegar na rota inversa daquela que promoveu o desmantelamento da nossa indústria naval. Navegar na rota da revitalização e qualificação do papel protagonista do estado. Recuperar um curso que havia sido fundado lá durante a Era Vargas, onde se combinava industrialização e nacionalização com geração de empregos e direitos trabalhistas. Se no período neoliberal foi proclamada a idéia de destruir a “Era Vargas”, agora, está não apenas proclamada, mas já colocada em marcha, a necessidade de reconstruir a partir dos escombros da ruína das privatizações - entulho neoliberal - tendo no dorso no navio-gigante o nome heróico do líder da Revolta da Chibata. Sem revanchismo, o episódio permite lembrar outra canção: “É a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar”.
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Nesta sexta-feira, a Transpetro lançou ao mar o navio petroleiro João Cândido. Batizado com o nome de um dos nossos heróis, marinheiro negro, filho de escravos e líder da Revolta da Chibata, o navio tem 247 metros de comprimento, casco duplo que previne acidente e vários significados históricos. Primeiro, leva a industrialização para Pernambuco, contribuindo para reduzir as desigualdades regionais. Em segundo lugar, dá um cala-boca para quem insinuou de forma maldosa que o PAC era apenas virtual. Em terceiro, prova que está em curso a remontagem da indústria naval brasileira criminosamente destruída na era da privataria.
Como um simbolismo adicional, um total de 120 operários dekasseguis foram trazidos do Japão, com as suas famílias, para juntarem-se aos operários nordestinos que construíram o navio. Os primeiros não precisam mais morar longe da pátria; os outros, saem do canavial para a indústria e não precisam mais pegar o pau-de-arara, nem entoar com amargura a Triste Partida, de Patativa do Assaré, como um certo pernambucano teve que fazer na década de 50. Até que virou presidente.
Mulheres trabalhando como chefes de equipe de soldagem no Estaleiro Atlântico Sul, no município de Ipojuca, em Pernambuco, pronunciavam frases orgulhosas lembrando que não sabiam nem que esta também poderia ser uma tarefa feminina. O ex-pescador de caranguejo contava em depoimento agreste que antes do estaleiro não sabia direito como ganhar o sustento da família a cada dia que acordava. O ex-canavieiro, agora operário, destaca que não depende mais temporalidade insegura da colheita da cana e quando acorda já tem para onde ir, quando antes vivia a insegurança. Estes alguns dos vários depoimentos colhidos na inauguração do navio petroleiro João Cândido ao ser lançado ao mar pernambucano. Deixa em terra um rastro de transformação.
Inicialmente, na vida destas pessoas antes lançadas ao deus-dará de uma economia nordestina reprimida, desindustrializada. A transformação atinge os municípios mais próximos, pois no local onde foi construído o estaleiro, uma antiga moradora, Mônica Roberta de França, negra de 24 anos, que foi escolhida para ser a madrinha do navio, dizia que ali era um imenso areal, não tinha nada. Agora tem uma indústria e uma escola técnica para os jovens da região. E que só agora ela tem seu primeiro emprego na vida com carteira assinada.
Desculpas à Nação
Para o governador de Pernambuco, Eduardo Campos, o lançamento do João Cândido ao mar tem o mesmo alcance histórico do gesto de Getúlio Vargas quando deu forte impulso à nacionalização da indústria naval brasileira, na década de 30, por meio da empresa de navegação estatal. “Aqueles que destruíram a indústria naval tem que assumir sua responsabilidade e pedir desculpas à Nação”, disse Campos na solenidade que teve a participação de 5 mil pessoas aproximadamente, sobretudo dos operários.
O Navio João Cândido abre uma nova rota para a economia brasileira. Incialmente, porque a Petrobrás já não será obrigada a desembolsar cerca de 2,5 bilhões de reais por ano com o afretamento de navios estrangeiros. Há, portanto, um revigoramento do papel do estado na medida em que a reconstrução da indústria naval brasileira é resultado direto de encomendas da nossa empresa estatal petroleira. O que também permite avaliar a gravidade e o caráter antinacional das decisões que levaram um país com a enorme costa que possui, tendo montado uma economia naval de peso internacional respeitável, retroceder em um setor tão estratégico.
E isso quando nossa economia petroleira, há anos, já dava sinais de expansão, mesmo quando estavam no poder os que promoveram o espantoso sucateamento, a desnacionalização e a abertura da navegação em favor dos países que querem impedir nosso desenvolvimento. Este tema, certamente, não poderá faltar nos debates da campanha presidencial deste ano.
Almirante negro
A escolha do nome João Cândido também foi destacada na solenidade por meio do novo ministro da Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial, Eloy Moreira. Vale registrar que há pouco mais de um ano Lula participou de homenagem ao Almirante Negro inaugurando sua estátua na Praça XV, no Rio, que estava há anos guardada, supostamente porque não teria havido grande empenho da Marinha na realização desta solenidade. Pois bem, agora João Cândido não está apenas nas “pedras pisadas do cais”, com diz a maravilhosa canção de Bosco e Blanc. Está na estátua e está cruzando mares levando para o mundo afora o nome de um de nossos heróis.
Navegar é possível
O novo petroleiro estatal, portanto, é uma prova real de que sim “navegar é possível”, como dizia uma faixa no ato. Navegar na rota inversa daquela que promoveu o desmantelamento da nossa indústria naval. Navegar na rota da revitalização e qualificação do papel protagonista do estado. Recuperar um curso que havia sido fundado lá durante a Era Vargas, onde se combinava industrialização e nacionalização com geração de empregos e direitos trabalhistas. Se no período neoliberal foi proclamada a idéia de destruir a “Era Vargas”, agora, está não apenas proclamada, mas já colocada em marcha, a necessidade de reconstruir a partir dos escombros da ruína das privatizações - entulho neoliberal - tendo no dorso no navio-gigante o nome heróico do líder da Revolta da Chibata. Sem revanchismo, o episódio permite lembrar outra canção: “É a volta do cipó de aroeira no lombo de quem mandou dar”.
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Regulação não resolverá a crise mundial
Reproduzo entrevista concedida por François Houtart ao jornal argentino Clarín:
Os movimentos de resistência à globalização, "globalifóbicos" ou "altermundialistas", apesar de sua heterogeneidade e seu caráter contestador, tiveram a virtude de advertir sobre a necessidade de respostas e mudanças mais radicais aos desequilíbrios gerados por um predomínio dos mercados financeiros internacionais. Apelidados de "utópicos", acabaram sendo os mais realistas, mesmo que algumas vozes continuam sem ser devidamente atendidas.
Essa opinião é de François Houtart, sacerdote católico e intelectual marxista, fundador e diretor do Centro Tricontinental da Universidade Católica de Louvain, Bélgica. É um dos principais referenciais intelectuais do chamado "altermundialismo". Houtart teve também a oportunidade de participar da formação de uma geração de sociólogos latino-americanos que estudaram em Louvain entre os anos 60 e 80, sentando as bases dos estudos de sociologia da religião no nosso continente.
Mais recentemente, integrou a comissão de notáveis presidida no ano passado por Joseph Stiglitz e encarregada pelo secretário-geral da ONU para elaborar recomendações sobre como enfrentar a crise econômica global. Ele esteve em Buenos Aires, convidado para falar na Conferência Internacional "Direitos Humanos e democratização: entre público e privado, entre local e global", organizada pela Universidade Nacional de San Martín e várias ONGs internacionais.
Passou-se mais de uma década desde o surgimento do chamado "movimento antiglobalização". Como o senhor, um de seus inspiradores, lembra de seus momentos principais?
Podemos situar um momento das origens do que nós passamos a chamar de "altermundialismo" em 1999, quando, a partir da iniciativa de um grupo de movimentos sociais de diferentes continentes organizamos uma contra-conferência ao Fórum de Davos, na Suíça. Isso teve uma grande repercussão. Estavam ali o Movimento dos Sem Terra do Brasil, os sindicatos operários da Coreia do Sul, cooperativas agrícolas de Burkina Faso, movimentos de mulheres do Canadá e o movimento de desempregados da França, junto com um grupo de intelectuais e acadêmicos como Susan George, Samir Amin e Ricardo Petrella. Podemos ir ali e brindar nossa palavra, enquanto estavam reunidos os representantes e líderes das economias mais ricas e as instituições financeiras mundiais. Fizemos um grande barulho, e, desde então, se começou a falar de "o outro Davos".
Que resultados obtiveram? O que propuseram então foi antecipação às crises que viriam anos mais tarde?
Naquela coletiva de imprensa, dissemos que não podíamos continuar assim, que era preciso reorientar a economia mundial. E como os brasileiros estavam ali conosco, deles veio a ideia do Fórum Social Mundial, frente ao Fórum Econômico Mundial de Davos, que foi organizado dois anos depois. Desde então, já foram organizados nove Fóruns Sociais Mundiais e outros também continentais, nacionais, temáticos, e são centenas de milhares de pessoas que se mobilizaram durante esses anos. Dois fóruns foram organizados fora da América Latina, um em Mumbai, na Índia, e outro em Nairóbi, na África, mas a maioria aconteceu na América Latina, o que teve um impacto positivo, segundo acredito, também sobre a evolução política do continente. A conquista principal foi desenvolver uma consciência coletiva mundial nova e, por outro lado, ser um lugar onde se constituíram ou se reforçaram muitas redes de movimentos e de temáticas sobre a água, sobre a Amazônia, a vida campesina etc.
O senhor propôs verdadeiras alternativas ou ficou no meramente contestador?
Fazer conhecer determinadas situações é fundamental. Não estamos falando de de sistemas ideológicos contrapostos ou confrontados, mas sim de uma experiência histórica que também está se esgotando, e precisamos de alternativas de futuro. Há uma lógica que está destruindo o planeta.
Um exemplo concreto?
Um exemplo é a agroenergia, que se propõe como uma solução à crise ambiental e energética, e não é. De fato, a combustão dos motores ou a produção de dióxido de carbono é menor quando se utilizar etanol ou agrodiesel, mas quando se toma todo o processo de produção, de transformação, de distribuição dessa energia, a conclusão é que, em geral, não é melhor, porque destroem-se as selvas, destrói-se a biodiversidade, contaminam-se os solos, a água. Por outro lado, é uma solução muito marginal para a energia. Por exemplo, na Europa, que decidiu utilizar 20% de energia de origem agrícola para o ano 2020, nos transportes, com toda a produção de agroenergia, neste momento, daqui até 2020, podemos esperar só responder ao aumento da demanda, não à demanda total. Nesse aspecto também não é uma solução. E, por outro lado, se se quer que a agroenergia tenha uma certa contribuição para enfrentar a crise energética, devem-se utilizar milhões de hectares de terras na Ásia, na África e na América Latina, porque não existem terras suficientes na Europa, e isso pode levar à expulsão de pelo menos 60 milhões de agricultores de suas terras. Isso já está acontecendo na África, na América Latina e em certas regiões da Ásia também.
No entanto, existe um fenômeno de profunda reconversão produtiva, revolução tecnológica e dos alimentos e vivemos um ciclo de crescimento que parece inclusive recobrar sua dinâmica depois da crise financeira de 2008. Como se compatibiliza isso com a crise do capitalismo que o senhor descreve?
Vamos à análise dessa última grande crise. Naquele momento, se reuniu no marco da Assembleia Geral da ONU uma comissão de notáveis presidida pelo prêmio Nobel Joseph Stiglitz. Eu tive a oportunidade de participar nela como representante pessoal do presidente da Assembleia Geral, que era Miguel D'Escoto, ex-chanceler nicaraguense. Ali ficaram fixadas grandes posições diante da crise e se concordou sobre a proposta de estabelecer novas regulações ao sistema econômico internacional, que havia saído do seu leito normal. Nessa orientação, coincidiam tanto os que queriam poucas regulações e transitórias, como o G-20, e uma posição mais neokeynesiana, a favor de regulações mais fortes e permanentes. Por exemplo: abolir os paraísos fiscais, o segredo bancário, instituir uma nova instituição de controle global da economia etc. Evidentemente, a maioria dessas propostas não foi aceita pelas Nações Unidas.
O senhor acha que essas respostas, o ajuste ou a reforma do sistema, são suficientes?
Sim. Mas fora desse consenso mais amplo, surgem no entanto outras duas propostas. A primeira é a do próprio capitalismo liberado de ataduras, uma posição quase naturalista – se poderia dizer "darwinista" – que consiste em dizer que as grandes crises são saudáveis para o próprio sistema, porque permitem eliminar os elementos "fracos" ou "enfermos", e assim retomar o processo de reacodomodação de maneira mais sadia, e a economia sairá assim fortalecida e pujante. Mas há uma segunda opção e é a de dizer: estamos em uma situação tal, não apenas de uma crise financeira ou econômica, mas sim de uma combinação de crises, alimentar, energética, climática e finalmente uma crise social profunda, entendendo que uma nova regulação do capitalismo não resolverá a crise do sistema mundial.
O que isso significa concretamente?
Significa retomar o que poderíamos chamar de "os fundamentos da vida coletiva" da humanidade na Terra, começando pela nossa relação com a natureza. Significa passar da exploração ilimitada dos recursos ao respeito como fonte de vida. Significa, evidentemente, uma nova filosofia e, de maneira muito concreta, que não é aceitável a propriedade privada irrestrita dos recursos naturais não renováveis e particularmente dos recursos energéticos e que não se pode aceitar que coisas tão essenciais para a vida como a água sejam regidas exclusivamente pela lógica do mercado.
Isso questiona também as posturas do socialismo do século XX que estava dentro da mesma filosofia de um progresso sem fim e de uma natureza inesgotável. Se não fizermos isso, vamos continuar destruindo a natureza e autodestruindo as nossas sociedades humanas, levando-as a um ponto de saturação e de catástrofes sem retorno. Calculou-se que a cada ano o período de recuperação da natureza termina mais cedo. Embora seja um cálculo um pouco abstrato, vale a pena levá-lo em consideração: no ano passado, esse tempo de recuperação terminou no dia 23 de setembro. Isto é, no dia 23 de setembro de 2009, esgotamos, pela atividade humana, toda possibilidade de recuperação do planeta. E a cada ano essa data se adianta. Significa que esse tipo de modelo, subsumido pela economia e desprovido de valores éticos, deve ser repensado no curto, médio e longo prazo. Como dizemos: outro mundo é possível.
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Os movimentos de resistência à globalização, "globalifóbicos" ou "altermundialistas", apesar de sua heterogeneidade e seu caráter contestador, tiveram a virtude de advertir sobre a necessidade de respostas e mudanças mais radicais aos desequilíbrios gerados por um predomínio dos mercados financeiros internacionais. Apelidados de "utópicos", acabaram sendo os mais realistas, mesmo que algumas vozes continuam sem ser devidamente atendidas.
Essa opinião é de François Houtart, sacerdote católico e intelectual marxista, fundador e diretor do Centro Tricontinental da Universidade Católica de Louvain, Bélgica. É um dos principais referenciais intelectuais do chamado "altermundialismo". Houtart teve também a oportunidade de participar da formação de uma geração de sociólogos latino-americanos que estudaram em Louvain entre os anos 60 e 80, sentando as bases dos estudos de sociologia da religião no nosso continente.
Mais recentemente, integrou a comissão de notáveis presidida no ano passado por Joseph Stiglitz e encarregada pelo secretário-geral da ONU para elaborar recomendações sobre como enfrentar a crise econômica global. Ele esteve em Buenos Aires, convidado para falar na Conferência Internacional "Direitos Humanos e democratização: entre público e privado, entre local e global", organizada pela Universidade Nacional de San Martín e várias ONGs internacionais.
Passou-se mais de uma década desde o surgimento do chamado "movimento antiglobalização". Como o senhor, um de seus inspiradores, lembra de seus momentos principais?
Podemos situar um momento das origens do que nós passamos a chamar de "altermundialismo" em 1999, quando, a partir da iniciativa de um grupo de movimentos sociais de diferentes continentes organizamos uma contra-conferência ao Fórum de Davos, na Suíça. Isso teve uma grande repercussão. Estavam ali o Movimento dos Sem Terra do Brasil, os sindicatos operários da Coreia do Sul, cooperativas agrícolas de Burkina Faso, movimentos de mulheres do Canadá e o movimento de desempregados da França, junto com um grupo de intelectuais e acadêmicos como Susan George, Samir Amin e Ricardo Petrella. Podemos ir ali e brindar nossa palavra, enquanto estavam reunidos os representantes e líderes das economias mais ricas e as instituições financeiras mundiais. Fizemos um grande barulho, e, desde então, se começou a falar de "o outro Davos".
Que resultados obtiveram? O que propuseram então foi antecipação às crises que viriam anos mais tarde?
Naquela coletiva de imprensa, dissemos que não podíamos continuar assim, que era preciso reorientar a economia mundial. E como os brasileiros estavam ali conosco, deles veio a ideia do Fórum Social Mundial, frente ao Fórum Econômico Mundial de Davos, que foi organizado dois anos depois. Desde então, já foram organizados nove Fóruns Sociais Mundiais e outros também continentais, nacionais, temáticos, e são centenas de milhares de pessoas que se mobilizaram durante esses anos. Dois fóruns foram organizados fora da América Latina, um em Mumbai, na Índia, e outro em Nairóbi, na África, mas a maioria aconteceu na América Latina, o que teve um impacto positivo, segundo acredito, também sobre a evolução política do continente. A conquista principal foi desenvolver uma consciência coletiva mundial nova e, por outro lado, ser um lugar onde se constituíram ou se reforçaram muitas redes de movimentos e de temáticas sobre a água, sobre a Amazônia, a vida campesina etc.
O senhor propôs verdadeiras alternativas ou ficou no meramente contestador?
Fazer conhecer determinadas situações é fundamental. Não estamos falando de de sistemas ideológicos contrapostos ou confrontados, mas sim de uma experiência histórica que também está se esgotando, e precisamos de alternativas de futuro. Há uma lógica que está destruindo o planeta.
Um exemplo concreto?
Um exemplo é a agroenergia, que se propõe como uma solução à crise ambiental e energética, e não é. De fato, a combustão dos motores ou a produção de dióxido de carbono é menor quando se utilizar etanol ou agrodiesel, mas quando se toma todo o processo de produção, de transformação, de distribuição dessa energia, a conclusão é que, em geral, não é melhor, porque destroem-se as selvas, destrói-se a biodiversidade, contaminam-se os solos, a água. Por outro lado, é uma solução muito marginal para a energia. Por exemplo, na Europa, que decidiu utilizar 20% de energia de origem agrícola para o ano 2020, nos transportes, com toda a produção de agroenergia, neste momento, daqui até 2020, podemos esperar só responder ao aumento da demanda, não à demanda total. Nesse aspecto também não é uma solução. E, por outro lado, se se quer que a agroenergia tenha uma certa contribuição para enfrentar a crise energética, devem-se utilizar milhões de hectares de terras na Ásia, na África e na América Latina, porque não existem terras suficientes na Europa, e isso pode levar à expulsão de pelo menos 60 milhões de agricultores de suas terras. Isso já está acontecendo na África, na América Latina e em certas regiões da Ásia também.
No entanto, existe um fenômeno de profunda reconversão produtiva, revolução tecnológica e dos alimentos e vivemos um ciclo de crescimento que parece inclusive recobrar sua dinâmica depois da crise financeira de 2008. Como se compatibiliza isso com a crise do capitalismo que o senhor descreve?
Vamos à análise dessa última grande crise. Naquele momento, se reuniu no marco da Assembleia Geral da ONU uma comissão de notáveis presidida pelo prêmio Nobel Joseph Stiglitz. Eu tive a oportunidade de participar nela como representante pessoal do presidente da Assembleia Geral, que era Miguel D'Escoto, ex-chanceler nicaraguense. Ali ficaram fixadas grandes posições diante da crise e se concordou sobre a proposta de estabelecer novas regulações ao sistema econômico internacional, que havia saído do seu leito normal. Nessa orientação, coincidiam tanto os que queriam poucas regulações e transitórias, como o G-20, e uma posição mais neokeynesiana, a favor de regulações mais fortes e permanentes. Por exemplo: abolir os paraísos fiscais, o segredo bancário, instituir uma nova instituição de controle global da economia etc. Evidentemente, a maioria dessas propostas não foi aceita pelas Nações Unidas.
O senhor acha que essas respostas, o ajuste ou a reforma do sistema, são suficientes?
Sim. Mas fora desse consenso mais amplo, surgem no entanto outras duas propostas. A primeira é a do próprio capitalismo liberado de ataduras, uma posição quase naturalista – se poderia dizer "darwinista" – que consiste em dizer que as grandes crises são saudáveis para o próprio sistema, porque permitem eliminar os elementos "fracos" ou "enfermos", e assim retomar o processo de reacodomodação de maneira mais sadia, e a economia sairá assim fortalecida e pujante. Mas há uma segunda opção e é a de dizer: estamos em uma situação tal, não apenas de uma crise financeira ou econômica, mas sim de uma combinação de crises, alimentar, energética, climática e finalmente uma crise social profunda, entendendo que uma nova regulação do capitalismo não resolverá a crise do sistema mundial.
O que isso significa concretamente?
Significa retomar o que poderíamos chamar de "os fundamentos da vida coletiva" da humanidade na Terra, começando pela nossa relação com a natureza. Significa passar da exploração ilimitada dos recursos ao respeito como fonte de vida. Significa, evidentemente, uma nova filosofia e, de maneira muito concreta, que não é aceitável a propriedade privada irrestrita dos recursos naturais não renováveis e particularmente dos recursos energéticos e que não se pode aceitar que coisas tão essenciais para a vida como a água sejam regidas exclusivamente pela lógica do mercado.
Isso questiona também as posturas do socialismo do século XX que estava dentro da mesma filosofia de um progresso sem fim e de uma natureza inesgotável. Se não fizermos isso, vamos continuar destruindo a natureza e autodestruindo as nossas sociedades humanas, levando-as a um ponto de saturação e de catástrofes sem retorno. Calculou-se que a cada ano o período de recuperação da natureza termina mais cedo. Embora seja um cálculo um pouco abstrato, vale a pena levá-lo em consideração: no ano passado, esse tempo de recuperação terminou no dia 23 de setembro. Isto é, no dia 23 de setembro de 2009, esgotamos, pela atividade humana, toda possibilidade de recuperação do planeta. E a cada ano essa data se adianta. Significa que esse tipo de modelo, subsumido pela economia e desprovido de valores éticos, deve ser repensado no curto, médio e longo prazo. Como dizemos: outro mundo é possível.
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Losurdo: Situação dos EUA é insustentável
Reproduzo entrevista concedida por Domenico Losurdo ao sociólogo Emir Sader, publicada no sítio Carta Maior:
No plano estratégico, a fraqueza dos Estados Unidos emerge de alguns dados elementares: com 5% da população mundial e 20% do PIB (Produto Interno Bruto) mundial, eles representam 50% das despesas militares do planeta! A longo prazo esta situação é insustentável, sobretudo se se leva em conta que o percentual estadunidense do PIB mundial tende a diminuir, enquanto continua a crescer a dívida pública. A avaliação é do filósofo italiano Domenico Losurdo que, em entrevista exclusiva à Carta Maior, analisa a situação da maior potência do planeta e a possibilidade do surgimento de uma alternativa à atual hegemonia norte-americana.
Você consideraria que a hegemonia imperial dos Estados Unidos está em decadência ou mantém sua predominância hoje no mundo?
Domenico Losurdo: O declínio dos EUA é inegável e isso se tornou ainda mais evidente com a crise econômica que explodiu em 2008. E, no entanto, seria um erro grave subestimar a força e o perigo daquela que é ainda hoje a única superpotência mundial. Os EUA estão presentes em todos os lugares com seus navios de guerra e com suas bases e, graças à enorme vantagem militar que acumularam, com arrogância teorizam seu direito de intervir e ditar leis em todas as partes do mundo. Na cultura estadunidense tornou-se agora lugar comum a reivindicação do império romano: este se teria dado nova vida mais além do Atlântico, já sem as limitaçoes geográficas e temporais do passado, para consagrar o domínio perene da “única” nação “eleita por Deus”.
Com a vitória triunfal conseguida pelos EUA no transcurso da guerra fria, verificou-se uma mudança radical do quadro internacional. Não estamos mais na presença de um contraponto à hegemonia dos EUA ou de uma aliança com uma força mais ou menos equivalente (como aconteceu no século passado). Nos nossos dias, ao contrário, uma superpotência declara sozinha de forma explícita, não tolerar rivais, querer fortalecer mais o predomínio militar ao ponto de torná-lo insuperável. E, no entanto, o declínio continua e até se acentua nos planos econômico e político. É para tratar de remediar esta situação que foi eleito Obama, que, no entanto, não pretende, de forma alguma, renunciar aos objetivos de fundo do imperialismo estadunidense.
Quais são os pontos fortes e os pontos fracos dessa hegemonia?
O elemento de força militar, que eu já assinalei. Mas isso não é tudo. Os EUA se constituíram como uma superpotência militar também no plano ideológico. Apoiando-se no monstruoso aparato multimidia que eles controlam, os governantes de Washington reivindicam ser os preceptores e os juízes do gênero humano; pretendem decidir de forma soberana quem são os “terroristas”, quais são os “direitos humanos” e quais são os países que os respeitam e os países que os violam. A Casa Branca não pára de proclamar que, diante dos responsáveis por crimes contra a humanidade, as fronteiras e a soberania estatal tornaram-se irrelevantes; e agora se trata de promover a criação de tribunais ad hoc para julgar os dirigentes dos países derrotados (como no caso da Iugoslávia). Além disso, enquanto na Europa emerge a aspiração pela criação de um tipo de Tribunal Penal Internacional, Washington proclama uma advertência: não poderiam estar submetidos a ele nenhum dirigente estadunidense, nem qualquer soldado ou empresa contratada pelos norteamericanos. A soberania estatal fica superada para todos os países, salvo por aqueles chamados a exercer a soberania mundial.
E, além disso, a credibilidade de Washington claramente diminuiu depois da revelação dos horrores de Guantanamo, de Abu Graieb e dos campos de concentração no Afeganistão, comparados por alguns jornalistas ocidentais até mesmo com Auschwitz. No plano estratégico, a fraqueza dos EUA emerge de alguns dados elementares: com 5% da população mundial e 20% do PIB (Produto Interno Bruto) mundial, eles representam 50% das despesas militares do planeta! A longo prazo esta situação é insustentável, sobretudo se se leva em conta que o percentual estadunidense do PIB mundial tende a diminuir, enquanto continua a crescer a dívida pública.
Que outra hegemonia pode estar surgindo como alternativa à norteamericana?
A superação da hegemonia estadunidense (e ocidental) não significa a emergência de uma hegemonia distinta. Estamos assistindo ao fim de uma época histórica. A partir do descobrimento-conquista da América, o Ocidente dominou ou aniquilou as outras civilizações. Mas este impulso expansionista recebeu um ponto final na Revolução de Outubro primeiro e depois na derrota imposta ao Terceiro R eich que, retomando e radicalizando a tradição colonial, pretendia encontrar na Europa o seu Far West (os eslavos teriam que substituir o papel dos peles vermelhas). O processo de descolonização está fazendo reemergir antigas civilizações: é o caso da China, da Índia, da América Latina. O Islã, que no Oriente Médio continua a sofrer a opressão de Israel e dos EUA, não encontra ainda o caminho. E tenta encontrar seu caminho até a África, onde profundas e ainda abertas estão as feridas produzidas pelo domínio colonial.
Um dos temas centrais do século XXI será, de um lado, a liquidação do imperialismo e das ambições imperiais, e, de outro, a realização de um diálogo entre as diversas civilizações dos diferentes países. Neste âmbito, a China terá sem dúvida um papel de primeiro plano, e não apenas pela dimensão do seu território, da sua população e da sua economia. É um país que, por milênios, ocupou uma posição de vanguarda na história da civilização humana; a partir da guerra do ópio e da agressão colonial imperialista, ela sofre um século terrível de saqueio, empobrecimento e humilhação. Agora vemos o prodigioso desenvolvimento econômico e tecnológico da China e seu brilhante retorno na cena mundial.
Qual o papel dos processos de integração latinoamericana no plano internacional?
Historicamente, a ascensão do imperialismo americano avançou paralelamente não apenas com a submissão, mas também com a humilhação da América Latina. "Os olhos", de John Sullivan, o teórico do século XIX do “destino manifesto”, com base no qual os EUA eram chamados por Deus para dominar o continente inteiro. Os conquistadores da América Latina cometeram o erro de se misturar com os indígenas e com os negros; surgiu uma população “com sangue misto e híbrido”, que fazia parte da própria população de cor chamada a questionar a supremacia branca e o controle dos governantes de Washington. É a partir dessa tradição que Theodore Roosevelt, retomando e radicalizando a doutrina Monroe, teoriza em 1904 um “um poder de polícia internacional” para cuidar da “sociedade civilizada” no seu conjunto e dos EUA no que se refere à América Latina.
A revolução cubana de 50 anos atrás foi um primeiro golpe duro assentado na doutrina Monroe, agora cada vez mais desacreditada. Mas os países e os povos da América Latina sabem que, para conquistar uma independência real, não basta romper com o conrtrole militar do imperialismo, é preciso romper tambem com o controle econômico. Neste marco se inserem os acordos de integração e cooperação econômica e, em perspectiva política, que estão desenvolvendo a América Latina em outras partes do Terceiro Mundo (por exemplo, na União Africana).
Qual o papel do marxismo para decifrar o mundo contemporâneo e construir alternativas ao neoliberalismo e ao capitalismo?
Entre os tantos motivos de inspiração que podemos ter no marxismo, quero destacar dois. Podemos ler uma tese fundamental: A profunda hiprocrisia, a intrínseca barbárie da civilização burguesa estão escancaradas, não apenas nas grandes metrópoles, onde assumem formas respeitáveis; voltam também seu olhos para as colônias e pretendem ser a mais antiga democracia do mundo. Praticaram por séculos a escravidão e a opressão dos negros, além da deportação e do aniquilamento dos peles vermelhas. Os EUA, que durante a guerra pretenderam representar a causa da liberdade, se opuseram tenazmente ao processo de descolonização, impondo ferozes ditaduras militares na América Latina e em outras partes do mundo. Atualmente ainda ”a intrínseca barbárie da civilização burguesa” emerge com clareza se olhamos para Guantanamo, para Abu Ghriab e para os campos de concentração afegãs, ou ao interminável martírio imposto ao povo palestino ou aos embargos desastrosos (por exemplo, contra Cuba), colocados em prática pelos EUA, apesar da oposição e da condenação expressa pela quase totalidade dos paises nas Nações Unidas.
Naruralmente, não devemos perder de vista a condição das massas populares nas metrópoles. No seu tempo, nos anos 70 do século XX, Friedrich August von Hayek, criticando a teorização dos “direitos sociais e econômicos” contida na Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada na ONU em 1948, esceveu: “Este documento é abertamente uma tentativa de fundar os direitos da tradição liberal ocidental com a concepção completamente diversa da revolução marxista russa”. Assim, pelo explícito reconhecimento do patriarca do neoliberalismo, o Estado social existente no Ocidente não pode ser pensado sem o impulso e o desafio proveniente do pensamento de Marx e da revolução de Outubro.
De fato, ao enfraquecimento e diluição daquele impulso e daquele desafio corresponde no Ocidente a negação dos direitos sociais e econômicos e o desmantelamento do Estado social. São trágicas as consequências disso para as massas populares, ainda mais agora com a crise econômica. “A intrínseca barbárie da civilização burguesa” começa agora a se mostrar, sem disfarces, também no Ocidente.
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No plano estratégico, a fraqueza dos Estados Unidos emerge de alguns dados elementares: com 5% da população mundial e 20% do PIB (Produto Interno Bruto) mundial, eles representam 50% das despesas militares do planeta! A longo prazo esta situação é insustentável, sobretudo se se leva em conta que o percentual estadunidense do PIB mundial tende a diminuir, enquanto continua a crescer a dívida pública. A avaliação é do filósofo italiano Domenico Losurdo que, em entrevista exclusiva à Carta Maior, analisa a situação da maior potência do planeta e a possibilidade do surgimento de uma alternativa à atual hegemonia norte-americana.
Você consideraria que a hegemonia imperial dos Estados Unidos está em decadência ou mantém sua predominância hoje no mundo?
Domenico Losurdo: O declínio dos EUA é inegável e isso se tornou ainda mais evidente com a crise econômica que explodiu em 2008. E, no entanto, seria um erro grave subestimar a força e o perigo daquela que é ainda hoje a única superpotência mundial. Os EUA estão presentes em todos os lugares com seus navios de guerra e com suas bases e, graças à enorme vantagem militar que acumularam, com arrogância teorizam seu direito de intervir e ditar leis em todas as partes do mundo. Na cultura estadunidense tornou-se agora lugar comum a reivindicação do império romano: este se teria dado nova vida mais além do Atlântico, já sem as limitaçoes geográficas e temporais do passado, para consagrar o domínio perene da “única” nação “eleita por Deus”.
Com a vitória triunfal conseguida pelos EUA no transcurso da guerra fria, verificou-se uma mudança radical do quadro internacional. Não estamos mais na presença de um contraponto à hegemonia dos EUA ou de uma aliança com uma força mais ou menos equivalente (como aconteceu no século passado). Nos nossos dias, ao contrário, uma superpotência declara sozinha de forma explícita, não tolerar rivais, querer fortalecer mais o predomínio militar ao ponto de torná-lo insuperável. E, no entanto, o declínio continua e até se acentua nos planos econômico e político. É para tratar de remediar esta situação que foi eleito Obama, que, no entanto, não pretende, de forma alguma, renunciar aos objetivos de fundo do imperialismo estadunidense.
Quais são os pontos fortes e os pontos fracos dessa hegemonia?
O elemento de força militar, que eu já assinalei. Mas isso não é tudo. Os EUA se constituíram como uma superpotência militar também no plano ideológico. Apoiando-se no monstruoso aparato multimidia que eles controlam, os governantes de Washington reivindicam ser os preceptores e os juízes do gênero humano; pretendem decidir de forma soberana quem são os “terroristas”, quais são os “direitos humanos” e quais são os países que os respeitam e os países que os violam. A Casa Branca não pára de proclamar que, diante dos responsáveis por crimes contra a humanidade, as fronteiras e a soberania estatal tornaram-se irrelevantes; e agora se trata de promover a criação de tribunais ad hoc para julgar os dirigentes dos países derrotados (como no caso da Iugoslávia). Além disso, enquanto na Europa emerge a aspiração pela criação de um tipo de Tribunal Penal Internacional, Washington proclama uma advertência: não poderiam estar submetidos a ele nenhum dirigente estadunidense, nem qualquer soldado ou empresa contratada pelos norteamericanos. A soberania estatal fica superada para todos os países, salvo por aqueles chamados a exercer a soberania mundial.
E, além disso, a credibilidade de Washington claramente diminuiu depois da revelação dos horrores de Guantanamo, de Abu Graieb e dos campos de concentração no Afeganistão, comparados por alguns jornalistas ocidentais até mesmo com Auschwitz. No plano estratégico, a fraqueza dos EUA emerge de alguns dados elementares: com 5% da população mundial e 20% do PIB (Produto Interno Bruto) mundial, eles representam 50% das despesas militares do planeta! A longo prazo esta situação é insustentável, sobretudo se se leva em conta que o percentual estadunidense do PIB mundial tende a diminuir, enquanto continua a crescer a dívida pública.
Que outra hegemonia pode estar surgindo como alternativa à norteamericana?
A superação da hegemonia estadunidense (e ocidental) não significa a emergência de uma hegemonia distinta. Estamos assistindo ao fim de uma época histórica. A partir do descobrimento-conquista da América, o Ocidente dominou ou aniquilou as outras civilizações. Mas este impulso expansionista recebeu um ponto final na Revolução de Outubro primeiro e depois na derrota imposta ao Terceiro R eich que, retomando e radicalizando a tradição colonial, pretendia encontrar na Europa o seu Far West (os eslavos teriam que substituir o papel dos peles vermelhas). O processo de descolonização está fazendo reemergir antigas civilizações: é o caso da China, da Índia, da América Latina. O Islã, que no Oriente Médio continua a sofrer a opressão de Israel e dos EUA, não encontra ainda o caminho. E tenta encontrar seu caminho até a África, onde profundas e ainda abertas estão as feridas produzidas pelo domínio colonial.
Um dos temas centrais do século XXI será, de um lado, a liquidação do imperialismo e das ambições imperiais, e, de outro, a realização de um diálogo entre as diversas civilizações dos diferentes países. Neste âmbito, a China terá sem dúvida um papel de primeiro plano, e não apenas pela dimensão do seu território, da sua população e da sua economia. É um país que, por milênios, ocupou uma posição de vanguarda na história da civilização humana; a partir da guerra do ópio e da agressão colonial imperialista, ela sofre um século terrível de saqueio, empobrecimento e humilhação. Agora vemos o prodigioso desenvolvimento econômico e tecnológico da China e seu brilhante retorno na cena mundial.
Qual o papel dos processos de integração latinoamericana no plano internacional?
Historicamente, a ascensão do imperialismo americano avançou paralelamente não apenas com a submissão, mas também com a humilhação da América Latina. "Os olhos", de John Sullivan, o teórico do século XIX do “destino manifesto”, com base no qual os EUA eram chamados por Deus para dominar o continente inteiro. Os conquistadores da América Latina cometeram o erro de se misturar com os indígenas e com os negros; surgiu uma população “com sangue misto e híbrido”, que fazia parte da própria população de cor chamada a questionar a supremacia branca e o controle dos governantes de Washington. É a partir dessa tradição que Theodore Roosevelt, retomando e radicalizando a doutrina Monroe, teoriza em 1904 um “um poder de polícia internacional” para cuidar da “sociedade civilizada” no seu conjunto e dos EUA no que se refere à América Latina.
A revolução cubana de 50 anos atrás foi um primeiro golpe duro assentado na doutrina Monroe, agora cada vez mais desacreditada. Mas os países e os povos da América Latina sabem que, para conquistar uma independência real, não basta romper com o conrtrole militar do imperialismo, é preciso romper tambem com o controle econômico. Neste marco se inserem os acordos de integração e cooperação econômica e, em perspectiva política, que estão desenvolvendo a América Latina em outras partes do Terceiro Mundo (por exemplo, na União Africana).
Qual o papel do marxismo para decifrar o mundo contemporâneo e construir alternativas ao neoliberalismo e ao capitalismo?
Entre os tantos motivos de inspiração que podemos ter no marxismo, quero destacar dois. Podemos ler uma tese fundamental: A profunda hiprocrisia, a intrínseca barbárie da civilização burguesa estão escancaradas, não apenas nas grandes metrópoles, onde assumem formas respeitáveis; voltam também seu olhos para as colônias e pretendem ser a mais antiga democracia do mundo. Praticaram por séculos a escravidão e a opressão dos negros, além da deportação e do aniquilamento dos peles vermelhas. Os EUA, que durante a guerra pretenderam representar a causa da liberdade, se opuseram tenazmente ao processo de descolonização, impondo ferozes ditaduras militares na América Latina e em outras partes do mundo. Atualmente ainda ”a intrínseca barbárie da civilização burguesa” emerge com clareza se olhamos para Guantanamo, para Abu Ghriab e para os campos de concentração afegãs, ou ao interminável martírio imposto ao povo palestino ou aos embargos desastrosos (por exemplo, contra Cuba), colocados em prática pelos EUA, apesar da oposição e da condenação expressa pela quase totalidade dos paises nas Nações Unidas.
Naruralmente, não devemos perder de vista a condição das massas populares nas metrópoles. No seu tempo, nos anos 70 do século XX, Friedrich August von Hayek, criticando a teorização dos “direitos sociais e econômicos” contida na Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada na ONU em 1948, esceveu: “Este documento é abertamente uma tentativa de fundar os direitos da tradição liberal ocidental com a concepção completamente diversa da revolução marxista russa”. Assim, pelo explícito reconhecimento do patriarca do neoliberalismo, o Estado social existente no Ocidente não pode ser pensado sem o impulso e o desafio proveniente do pensamento de Marx e da revolução de Outubro.
De fato, ao enfraquecimento e diluição daquele impulso e daquele desafio corresponde no Ocidente a negação dos direitos sociais e econômicos e o desmantelamento do Estado social. São trágicas as consequências disso para as massas populares, ainda mais agora com a crise econômica. “A intrínseca barbárie da civilização burguesa” começa agora a se mostrar, sem disfarces, também no Ocidente.
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O candidato Serra e a batalha no Iceberg
Reproduzo o terceiro artigo da série de Artur Araújo que analisa o programa real do candidato demotucano:
Os icebergs, conforme nos ensinam na escola, mostram só 10% de si acima da linha d’água. É abaixo da superfície, longe do exame fácil, que mora o real perigo. Assim também é na política.
No substrato abissal da candidatura de José Serra movem-se e convergem forças tectônicas, que querem garantir o salto para o passado - a certeza da retomada do neoliberalismo estrito senso - caso, como torcem, o candidato vire a onda e emplaque assento no Planalto.
O bloco de gelo de Serra vive, neste momento, um fenômeno que alguns chamam de “adensamento do entorno”. É quando os formuladores e apoiadores são obrigados a explicitar, a abrir posições no campo da própria candidatura, para agregar força para seus projetos e para ajustar a divisão de postos em um eventual governo futuro. Uma leitura, por esse método, de artigos e notícias publicados nos últimos dias pode ser reveladora e contribuir para traçar a rota dos partidários de Dilma Rousseff.
Seguindo e aprofundando a deriva aberta por Mendonça de Barros (“Folha de S. Paulo”, 16/04), Rubens Ricúpero, em artigo intitulado “Ilusões e autoenganos”, publicado na própria “FSP” em 25/04, indaga: “Como competir com chineses e coreanos se os sindicatos querem reduzir a jornada semanal de trabalho? Como elevar os investimentos em infraestrutura [...] e ao mesmo tempo manter a expansão de bolsas-família e de aposentadorias?”.
Em primeiro lugar, é bom notar que o ex-ministro e ex-diplomata despiu as luvas de pelica e, ao contrário do que já andou pregando pela televisão, desta vez não esconde; varre para cima do tapete o que há de ruim, para o Brasil, em suas idéias. E não o faz por deslize, por não ter percebido que “já estava no ar”, mas porque pretende “adensar o entorno”, porque quer dar à parte imersa a conformação que defende para o Brasil, de 2011 em diante.
Pode ser muito útil, para quem formula a campanha adversária, examinar essa vinda a público de posições e temas nada populares. Corte de programas sociais, jornada de trabalho longa e aposentadoria curta, por exemplo, são assuntos que o candidato precisa deixar nebulosos em sua romaria em busca do voto.
Os grão-tucanos, no entanto, deram início à batalha, entre si, para garantir a conformidade de Serra com a linha do grande capital internacional – que o FMI e o G20 voltaram a trombetear nestes dias – e com as propostas dos financistas pátrios, da estirpe de Gustavo Franco, Pedro Malan e Armínio Fraga. Em 26/04, na mesma “Folha”, outro ex-ministro de FHC, Bresser-Pereira, já retruca: “A crise convenceu a todos de que a teoria econômica neoclássica dos mercados autorregulados é enganadora.”, reportando a Conferência Minsky, recentemente ocorrida em Nova York e patrocinada pela Fundação Ford.
Na festa dos oitenta anos de Maria da Conceição Tavares, Serra intentou uma operação de associação à mestra, para reforçar seu propalado desenvolvimentismo e a “face meiga” com que estrelou recente capa de “Veja” – o pós, jamais o anti-Lula. Foi castigado, pela própria grande mídia que o apóia, com uma de suas armas mais letais: enterraram a notícia em notinhas de pé de página. Para a “FSP”, em 27/04, “Dilma dança o vira e Serra escapa antes em festa de economista”.
Não é coincidência que a última reunião do G20 seja vista nos seguintes termos, por Vinicius Torres Freire (em artigo também publicado na edição de 26/04 da “Folha”): “A Grécia foi para o vinagre na sexta-feira. No mesmo dia, os países do G20, reunidos em Washington, falavam de planejar o fim dos estímulos fiscais e monetários que evitaram a Grande Depressão [de 2009]. Isto é, um plano para reduzir gastos dos governos e, talvez, tirar os juros do nível zero".
"Em suma, a conta da crise está chegando. Serão anos de arrocho e baixo crescimento no mundo rico, na Europa em particular. Apesar de algumas falências bancárias, do processo contra o bancão Goldman Sachs ou do reconhecimento de que as agências de risco foram cúmplices da bandalha da banca mundial, o custo do ‘ajuste’ vai cair mesmo é no lombo do cidadão comum. Por ora, a reação política ‘popular’ é entre nula e escassa. Mesmo mudanças políticas conservadoras, que mal arranham o ‘establishment’, estão atoladas.”
Aos olhos dos eleitores, as campanhas se definem pelas candidaturas, que são apenas as pontas dos icebergs. Quem quer compreender o que realmente está em jogo tem que mergulhar, avaliar a massa submersa, em que se organiza e cristaliza a estrutura de cada bloco, porque é isso que define, muito mais que os candidatos, como será o futuro, após a posse de quem vencer.
A “turma dos 30%” é aquela que defendeu e defende um Brasil em que lhes bastam a inclusão de uma pequena parcela de brasileiros e de alguma porção do território, bem ao gosto dos que nos querem como meros exportadores de commodities e com mercado interno “modesto”, de preferência abastecido de fora para dentro. E essa turma está soprando os clarins e arregimentando tropas; estão em campanha aberta, pública (e arriscada) para dar ao seu bloco de gelo, na parte grande, o formato que lhes convém. A despeito do que o candidato emita da boca para fora – afinal campanha é disputa de “corações e almas” – o que querem é arrumar, desde já, a “mente” do governo com que sonham.
À ponta do iceberg, o candidato, cabe recitar um roteiro de platitudes que, assim esperam seus marqueteiros, lhe dêem o formato de pós-Lula e não tragam à tona a agenda real: desmontar tudo o que foi conquistado pelos brasileiros no período pós-2002, em particular a onda democrática de inclusão de multidões na vida cidadã e a inclusão soberana do país entre as demais nações do mundo.
Para isso vão esgrimir seu sabre de preferência, o medo. Agora que não podem mais pregar o “medo ao Lula” – pois bobos não são - põem na roda o “medo do crescimento”, os tais “limites estruturais do Brasil”. Gostariam de fazer isso, como se diz no interior goiano, “debaixo de um quieto”, só agir sob a linha d’água, mas têm que por um pouco a cabeça para fora, para que se adense a força do que intentam.
Por último, porém muito importante, registre-se que, às vezes, a dinâmica do que é profundo e denso provoca distúrbios na ponta que flutua: é só ver a trapalhada de Serra com o Mercosul. Após quase ter proposto de novo a ALCA - e ter levado pito até de conservadores argentinos - teve que cavar, às pressas, entrevistas nos jornalões para dizer que não disse o que disse.
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Os icebergs, conforme nos ensinam na escola, mostram só 10% de si acima da linha d’água. É abaixo da superfície, longe do exame fácil, que mora o real perigo. Assim também é na política.
No substrato abissal da candidatura de José Serra movem-se e convergem forças tectônicas, que querem garantir o salto para o passado - a certeza da retomada do neoliberalismo estrito senso - caso, como torcem, o candidato vire a onda e emplaque assento no Planalto.
O bloco de gelo de Serra vive, neste momento, um fenômeno que alguns chamam de “adensamento do entorno”. É quando os formuladores e apoiadores são obrigados a explicitar, a abrir posições no campo da própria candidatura, para agregar força para seus projetos e para ajustar a divisão de postos em um eventual governo futuro. Uma leitura, por esse método, de artigos e notícias publicados nos últimos dias pode ser reveladora e contribuir para traçar a rota dos partidários de Dilma Rousseff.
Seguindo e aprofundando a deriva aberta por Mendonça de Barros (“Folha de S. Paulo”, 16/04), Rubens Ricúpero, em artigo intitulado “Ilusões e autoenganos”, publicado na própria “FSP” em 25/04, indaga: “Como competir com chineses e coreanos se os sindicatos querem reduzir a jornada semanal de trabalho? Como elevar os investimentos em infraestrutura [...] e ao mesmo tempo manter a expansão de bolsas-família e de aposentadorias?”.
Em primeiro lugar, é bom notar que o ex-ministro e ex-diplomata despiu as luvas de pelica e, ao contrário do que já andou pregando pela televisão, desta vez não esconde; varre para cima do tapete o que há de ruim, para o Brasil, em suas idéias. E não o faz por deslize, por não ter percebido que “já estava no ar”, mas porque pretende “adensar o entorno”, porque quer dar à parte imersa a conformação que defende para o Brasil, de 2011 em diante.
Pode ser muito útil, para quem formula a campanha adversária, examinar essa vinda a público de posições e temas nada populares. Corte de programas sociais, jornada de trabalho longa e aposentadoria curta, por exemplo, são assuntos que o candidato precisa deixar nebulosos em sua romaria em busca do voto.
Os grão-tucanos, no entanto, deram início à batalha, entre si, para garantir a conformidade de Serra com a linha do grande capital internacional – que o FMI e o G20 voltaram a trombetear nestes dias – e com as propostas dos financistas pátrios, da estirpe de Gustavo Franco, Pedro Malan e Armínio Fraga. Em 26/04, na mesma “Folha”, outro ex-ministro de FHC, Bresser-Pereira, já retruca: “A crise convenceu a todos de que a teoria econômica neoclássica dos mercados autorregulados é enganadora.”, reportando a Conferência Minsky, recentemente ocorrida em Nova York e patrocinada pela Fundação Ford.
Na festa dos oitenta anos de Maria da Conceição Tavares, Serra intentou uma operação de associação à mestra, para reforçar seu propalado desenvolvimentismo e a “face meiga” com que estrelou recente capa de “Veja” – o pós, jamais o anti-Lula. Foi castigado, pela própria grande mídia que o apóia, com uma de suas armas mais letais: enterraram a notícia em notinhas de pé de página. Para a “FSP”, em 27/04, “Dilma dança o vira e Serra escapa antes em festa de economista”.
Não é coincidência que a última reunião do G20 seja vista nos seguintes termos, por Vinicius Torres Freire (em artigo também publicado na edição de 26/04 da “Folha”): “A Grécia foi para o vinagre na sexta-feira. No mesmo dia, os países do G20, reunidos em Washington, falavam de planejar o fim dos estímulos fiscais e monetários que evitaram a Grande Depressão [de 2009]. Isto é, um plano para reduzir gastos dos governos e, talvez, tirar os juros do nível zero".
"Em suma, a conta da crise está chegando. Serão anos de arrocho e baixo crescimento no mundo rico, na Europa em particular. Apesar de algumas falências bancárias, do processo contra o bancão Goldman Sachs ou do reconhecimento de que as agências de risco foram cúmplices da bandalha da banca mundial, o custo do ‘ajuste’ vai cair mesmo é no lombo do cidadão comum. Por ora, a reação política ‘popular’ é entre nula e escassa. Mesmo mudanças políticas conservadoras, que mal arranham o ‘establishment’, estão atoladas.”
Aos olhos dos eleitores, as campanhas se definem pelas candidaturas, que são apenas as pontas dos icebergs. Quem quer compreender o que realmente está em jogo tem que mergulhar, avaliar a massa submersa, em que se organiza e cristaliza a estrutura de cada bloco, porque é isso que define, muito mais que os candidatos, como será o futuro, após a posse de quem vencer.
A “turma dos 30%” é aquela que defendeu e defende um Brasil em que lhes bastam a inclusão de uma pequena parcela de brasileiros e de alguma porção do território, bem ao gosto dos que nos querem como meros exportadores de commodities e com mercado interno “modesto”, de preferência abastecido de fora para dentro. E essa turma está soprando os clarins e arregimentando tropas; estão em campanha aberta, pública (e arriscada) para dar ao seu bloco de gelo, na parte grande, o formato que lhes convém. A despeito do que o candidato emita da boca para fora – afinal campanha é disputa de “corações e almas” – o que querem é arrumar, desde já, a “mente” do governo com que sonham.
À ponta do iceberg, o candidato, cabe recitar um roteiro de platitudes que, assim esperam seus marqueteiros, lhe dêem o formato de pós-Lula e não tragam à tona a agenda real: desmontar tudo o que foi conquistado pelos brasileiros no período pós-2002, em particular a onda democrática de inclusão de multidões na vida cidadã e a inclusão soberana do país entre as demais nações do mundo.
Para isso vão esgrimir seu sabre de preferência, o medo. Agora que não podem mais pregar o “medo ao Lula” – pois bobos não são - põem na roda o “medo do crescimento”, os tais “limites estruturais do Brasil”. Gostariam de fazer isso, como se diz no interior goiano, “debaixo de um quieto”, só agir sob a linha d’água, mas têm que por um pouco a cabeça para fora, para que se adense a força do que intentam.
Por último, porém muito importante, registre-se que, às vezes, a dinâmica do que é profundo e denso provoca distúrbios na ponta que flutua: é só ver a trapalhada de Serra com o Mercosul. Após quase ter proposto de novo a ALCA - e ter levado pito até de conservadores argentinos - teve que cavar, às pressas, entrevistas nos jornalões para dizer que não disse o que disse.
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Por que Serra não gosta da SAE?
Reproduzo artigo de Artur Araújo:
Serra, o candidato, aventurou-se em território exótico. Foi ser figurante de programa policial, o do Datena. Em ambiente muito distinto dos que costuma frequentar o alto tucanato, decidiu jogar o jogo. E era um tal de engaiola p’ra cá, malditos p’ra lá, que a empolgação o levou à derrapagem: sacou, à queima-roupa, um tal Ministério da Segurança.
Surpreendido por essa crise de “inchaço da máquina”, súbita e distoante, seu entorno foi rápido no gatilho. Até editorial crítico Serra ganhou, publicado por jornal que o apóia, com o título de “Desafinado”. Era inaceitável, para seus pares, um discurso que, ainda que obviamente eleitoreiro, fazia ruído na campanha pelo “estado mínimo; esbelto, porém musculoso”.
Chamado às falas, o candidato perdeu o eixo. Improvisou um mercado de “breganha”, como se diz em Taubaté, e anunciou que, “para compensar”, eliminaria, entre outras, a Secretaria de Assuntos Estratégicos – a SAE -, caso inverta a onda e logre ser eleito.
Para além da evidente irresponsabilidade de conduzir uma campanha para tentar ser presidente de um país, da importância e porte do Brasil, à base de um troca-troca de ocasião, há que se examinar as razões reais da escolha do alvo.
Afinal, um Serra “ex-ministro do Planejamento”, “homem de visão de futuro”, “economista, engenheiro e gestor científico” sempre foi o modelito cantado, em verso e prosa, pelos marqueteiros que se dedicam à montagem de sua imagem pública.
Logo ele, o planejador par excellence, querendo desmontar o principal instrumento de elaboração de estratégias para o Estado brasileiro? Estranho. Porém facilmente explicável.
Recorra-se, por exemplo, à recente entrevista do Ministro Samuel Pinheiro Guimarães, titular da SAE. Ele narra a encomenda que lhe fez, em outubro de 2009, o presidente Lula: um projeto abrangente, articulado e factível para o Brasil aos duzentos anos de sua independência política. A Secretaria dedica-se, desde então, à elaboração e discussão pública, com toda a sociedade, do Plano Brasil 2022.
Estão em circulação, neste momento, apenas as linhas mestras de formulação do Plano. E já bastam para eriçar as penas da “turma dos 30%”, aquela que gosta e quer um Brasil aos pedaços, em que só parte dos brasileiros e trechos do território nacional fazem parte do círculo dos incluídos. O que Lula pediu - e a SAE colocou em debate - é um projeto de Brasil includente e dinâmico, um Brasil que pode muito mais do que imagina ou deseja o pensamento de asas curtas dos tucanos.
Quais são as questões estruturantes desse projeto? De início, aumentar significativamente a participação dos salários na renda nacional. Ou, traduzido para o tucanês, pisar no freio da orgia de ganhos financeiros sem risco, das sobretaxas de lucros, derivadas de oligopólios ou monopólios privados, e distribuir renda de forma mais justa. Em economês neoliberal, heresia.
Outra meta é trazer o Brasil de volta às suas taxas históricas de crescimento – 7% ao ano – e libertar-nos dos “vôos de galinha”, típicos do período 1995-2002, quando atingir um patamar de expansão anual do PIB da ordem de 3% era objeto de comemoração - e de início de pânico nas hostes do “inflacionismo”, pois não concebem um Brasil à altura de seus potenciais.
Mais idéias que alicerçam o Brasil 2022: erradicar o analfabetismo pleno e o funcional; eliminar a pobreza absoluta (pessoas com renda diária abaixo de US$ 2/dia, hoje 21% dos brasileiros); incorporar os beneficiários do Bolsa-Família ao setor produtivo; e reduzir a zero o déficit de seis milhões de moradias.
Nessa entrevista, o ministro Samuel afirmou: “Durante muito tempo, segundo os estudos da OCDE, o Brasil foi um dos países que mais cresceram no mundo, até que entrou em estagnação. Portanto, não são metas irreais. Em determinados momentos de nossa história, nós crescemos de forma muito superior a 7%. Outros países crescem a esse nível. Não é fora da capacidade do povo brasileiro.”
Já o douto Maílson da Nóbrega, apoiador explícito de Serra, faz coro com os que querem parar o Brasil. Em declaração à imprensa “[...] diz que esse ritmo de expansão é improvável num horizonte tão curto [sic; o horizonte é 2022] e, caso se confirme, pode gerar desequilíbros... Quem fez esse estudo estava no mundo da lua.”
Para os brasileiros, que estão com os pés na Terra e os olhos no futuro, não é nada difícil entender porque Serra não gosta da SAE.
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Serra, o candidato, aventurou-se em território exótico. Foi ser figurante de programa policial, o do Datena. Em ambiente muito distinto dos que costuma frequentar o alto tucanato, decidiu jogar o jogo. E era um tal de engaiola p’ra cá, malditos p’ra lá, que a empolgação o levou à derrapagem: sacou, à queima-roupa, um tal Ministério da Segurança.
Surpreendido por essa crise de “inchaço da máquina”, súbita e distoante, seu entorno foi rápido no gatilho. Até editorial crítico Serra ganhou, publicado por jornal que o apóia, com o título de “Desafinado”. Era inaceitável, para seus pares, um discurso que, ainda que obviamente eleitoreiro, fazia ruído na campanha pelo “estado mínimo; esbelto, porém musculoso”.
Chamado às falas, o candidato perdeu o eixo. Improvisou um mercado de “breganha”, como se diz em Taubaté, e anunciou que, “para compensar”, eliminaria, entre outras, a Secretaria de Assuntos Estratégicos – a SAE -, caso inverta a onda e logre ser eleito.
Para além da evidente irresponsabilidade de conduzir uma campanha para tentar ser presidente de um país, da importância e porte do Brasil, à base de um troca-troca de ocasião, há que se examinar as razões reais da escolha do alvo.
Afinal, um Serra “ex-ministro do Planejamento”, “homem de visão de futuro”, “economista, engenheiro e gestor científico” sempre foi o modelito cantado, em verso e prosa, pelos marqueteiros que se dedicam à montagem de sua imagem pública.
Logo ele, o planejador par excellence, querendo desmontar o principal instrumento de elaboração de estratégias para o Estado brasileiro? Estranho. Porém facilmente explicável.
Recorra-se, por exemplo, à recente entrevista do Ministro Samuel Pinheiro Guimarães, titular da SAE. Ele narra a encomenda que lhe fez, em outubro de 2009, o presidente Lula: um projeto abrangente, articulado e factível para o Brasil aos duzentos anos de sua independência política. A Secretaria dedica-se, desde então, à elaboração e discussão pública, com toda a sociedade, do Plano Brasil 2022.
Estão em circulação, neste momento, apenas as linhas mestras de formulação do Plano. E já bastam para eriçar as penas da “turma dos 30%”, aquela que gosta e quer um Brasil aos pedaços, em que só parte dos brasileiros e trechos do território nacional fazem parte do círculo dos incluídos. O que Lula pediu - e a SAE colocou em debate - é um projeto de Brasil includente e dinâmico, um Brasil que pode muito mais do que imagina ou deseja o pensamento de asas curtas dos tucanos.
Quais são as questões estruturantes desse projeto? De início, aumentar significativamente a participação dos salários na renda nacional. Ou, traduzido para o tucanês, pisar no freio da orgia de ganhos financeiros sem risco, das sobretaxas de lucros, derivadas de oligopólios ou monopólios privados, e distribuir renda de forma mais justa. Em economês neoliberal, heresia.
Outra meta é trazer o Brasil de volta às suas taxas históricas de crescimento – 7% ao ano – e libertar-nos dos “vôos de galinha”, típicos do período 1995-2002, quando atingir um patamar de expansão anual do PIB da ordem de 3% era objeto de comemoração - e de início de pânico nas hostes do “inflacionismo”, pois não concebem um Brasil à altura de seus potenciais.
Mais idéias que alicerçam o Brasil 2022: erradicar o analfabetismo pleno e o funcional; eliminar a pobreza absoluta (pessoas com renda diária abaixo de US$ 2/dia, hoje 21% dos brasileiros); incorporar os beneficiários do Bolsa-Família ao setor produtivo; e reduzir a zero o déficit de seis milhões de moradias.
Nessa entrevista, o ministro Samuel afirmou: “Durante muito tempo, segundo os estudos da OCDE, o Brasil foi um dos países que mais cresceram no mundo, até que entrou em estagnação. Portanto, não são metas irreais. Em determinados momentos de nossa história, nós crescemos de forma muito superior a 7%. Outros países crescem a esse nível. Não é fora da capacidade do povo brasileiro.”
Já o douto Maílson da Nóbrega, apoiador explícito de Serra, faz coro com os que querem parar o Brasil. Em declaração à imprensa “[...] diz que esse ritmo de expansão é improvável num horizonte tão curto [sic; o horizonte é 2022] e, caso se confirme, pode gerar desequilíbros... Quem fez esse estudo estava no mundo da lua.”
Para os brasileiros, que estão com os pés na Terra e os olhos no futuro, não é nada difícil entender porque Serra não gosta da SAE.
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Um acordo em que a ditadura resolveu tudo
Reproduzo artigo de Maria Inês Nassif sobre a lastimável decisão do STF, publicado no jornal Valor Econômico:
Era o dia 22 de agosto de 1979. No plenário da Câmara, onde o Congresso se reuniria mais tarde para examinar a proposta de anistia do governo do general João Figueiredo - famoso por ter pedido para ser esquecido, depois de ter deixado o governo, e ter sido obedecido - 800 soldados à paisana ocuparam quase todos os 1200 lugares das galerias. Os manifestantes que ainda tentavam mudanças no projeto de anistia do governo - que perdoou só os crimes de sangue cometidos pelos próprios militares - ganharam os lugares de volta quase aos gritos. Às 14 horas, os soldados bateram em retirada.
As cadeiras no plenário para assistir ao espetáculo de imposição militar dos termos da anistia - que era mais auto-anistia do que qualquer outra coisa - talvez tenha sido a única conquista efetiva dos movimentos que se mobilizavam para restituir os direitos políticos dos adversários da ditadura. Desde o envio do projeto ao Congresso, em 27 de junho, até sua aprovação, 56 dias depois, imperou o ato de vontade dos militares, acatado pelos civis que formavam, no parlamento, uma maioria destituída de coragem e vontade.
Em tese de doutorado defendida em 2003 no Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), intitulada "Dimensões Fundacionais da Luta pela Anistia", Heloísa Amélia Greco reconstitui, passo a passo, a aprovação da lei. O texto do projeto do governo foi enviado ao Congresso sem que ninguém da oposição consentida, o MDB, pelo menos oficialmente, tenha sido consultado. Na cerimônia convocada por Figueiredo, no Palácio do Planalto, para oficializar o envio do projeto, estavam presentes todos os ministros e toda a bancada de deputados e senadores do partido do governo, a Arena. O MDB boicotou a cerimônia para marcar uma posição contra um projeto que excluía setores importantes da oposição à ditadura de seus benefícios.
A Comissão Mista do Congresso Nacional que analisou a proposta foi escolhida a dedo. Dos 23 integrantes, 13 eram incondicionalmente fiéis ao governo. O presidente da Comissão, o arenista Teotônio Vilela, dissidente e partidário de uma anistia ampla, somente exerceria o seu voto no caso de empate, o que jamais aconteceu. O relator, Ernâni Satyro, seguiu à risca o roteiro traçado para ele. As emendas aceitas em seu substitutivo foram definidas no Ministério da Justiça, em reuniões com o ministro Petrônio Portela, o líder da maioria no Senado, Jarbas Passarinho, o líder da maioria na Câmara, Nelson Marchezan e o presidente do partido, José Sarney. Todas as votações da comissão cravavam um inevitável placar de 13 a 9.
Por maioria governista, entenda-se um Congresso plenamente constituído pelo Pacote de Abril do governo anterior, do presidente-general Ernesto Geisel. O pacote, baixado por força do AI-5, em 1974, criou os senadores biônicos (o terço do Senado escolhido indiretamente por colegiados estaduais) e redefiniu a composição da Câmara de forma a dar mais peso ao eleitorado do Norte e do Nordeste, regiões onde a Arena mantinha prestígio por meio de lideranças tradicionais de caráter patrimonialista. Produziu seus resultados na eleição de 1978. Em 1979, a Arena tinha 231 deputados, contra 189 do MDB; no Senado, eram 41 senadores arenistas - destes, 22 eram biônicos - e 26 pemedebistas.
O projeto do governo, aprovado pelo Congresso em 22 de agosto, foi uma obra solitária do governo militar, referendada por uma maioria parlamentar bovina, totalmente submissa ao poder. Mesmo o voto final do MDB ao substitutivo de Satyro não pode ser colocado na conta da concordância, ou da negociação - foi apenas o voto naquilo que sobrou. O substitutivo do MDB foi rejeitado no plenário, mesmo com a ajuda de 12 parlamentares arenistas; a emenda do deputado Djalma Matinho (Arena-RN), vista como uma opção menos pior que o projeto do governo, também foi rejeitada, mesmo com a ajuda de 14 dissidentes. O MDB entendeu que antes o substitutivo de Satyro do que nada - ainda assim, com a abstenção de 12 de seus 26 senadores e o voto contrário de 29 dos 189 deputados, que preferiram marcar posição contra a anistia limitada dos militares.
A anistia de agosto, aprovada pelo Congresso, perdoou torturadores. Beneficiou também os adversários do regime que pegaram em armas mas não tiveram sentença transitada em julgado. Os presos políticos condenados por luta armada, no entanto, cumpriram penas - depois reduzidas -, mas não foram anistiados. A ditadura designava os adversários que optaram pela luta armada como "criminosos de sangue". Não consta que tenham considerado da mesma forma os que torturaram e mataram a mando do Estado.
A anistia foi essa. Na última hora, na promulgação da lei, o general Figueiredo vetou a expressão "e outros diplomas legais" - passaram a ser anistiados só os punidos por atos institucionais. O veto a quatro palavras excluiu do benefício os militares, os sindicalistas e os estudantes punidos por sanções administrativas, pelo decreto 477 e por outras determinações legais impostas pela ditadura.
Este é, segundo o Supremo Tribunal Federal (STF) em decisão proferida na semana passada, o "acordo histórico" feito pela sociedade brasileira: de um lado, a sociedade civil mobilizada em comitês que pleiteavam anistia ampla, derrotada; de outro, baionetas e maiorias forjadas por atos institucionais e Pacote de Abril. A autora da tese de doutorado cita, a propósito, uma frase do jornalista Aparício Torelly, o Barão de Itararé: "Anistia é um ato pelo qual os governos resolvem perdoar generosamente as injustiças e os crimes que eles mesmos cometeram". Foi isso.
O Brasil vai sentar no banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos por conta dos crimes cometidos pela ditadura. A OEA pode condenar o país a anular a sua lei de anistia, a exemplo do que já fez com o Chile e o Peru, para punir os que torturaram e mataram. O STF que explique direitinho para a OEA esse complicado pacto em que a ditadura resolveu tudo sozinha.
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Era o dia 22 de agosto de 1979. No plenário da Câmara, onde o Congresso se reuniria mais tarde para examinar a proposta de anistia do governo do general João Figueiredo - famoso por ter pedido para ser esquecido, depois de ter deixado o governo, e ter sido obedecido - 800 soldados à paisana ocuparam quase todos os 1200 lugares das galerias. Os manifestantes que ainda tentavam mudanças no projeto de anistia do governo - que perdoou só os crimes de sangue cometidos pelos próprios militares - ganharam os lugares de volta quase aos gritos. Às 14 horas, os soldados bateram em retirada.
As cadeiras no plenário para assistir ao espetáculo de imposição militar dos termos da anistia - que era mais auto-anistia do que qualquer outra coisa - talvez tenha sido a única conquista efetiva dos movimentos que se mobilizavam para restituir os direitos políticos dos adversários da ditadura. Desde o envio do projeto ao Congresso, em 27 de junho, até sua aprovação, 56 dias depois, imperou o ato de vontade dos militares, acatado pelos civis que formavam, no parlamento, uma maioria destituída de coragem e vontade.
Em tese de doutorado defendida em 2003 no Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), intitulada "Dimensões Fundacionais da Luta pela Anistia", Heloísa Amélia Greco reconstitui, passo a passo, a aprovação da lei. O texto do projeto do governo foi enviado ao Congresso sem que ninguém da oposição consentida, o MDB, pelo menos oficialmente, tenha sido consultado. Na cerimônia convocada por Figueiredo, no Palácio do Planalto, para oficializar o envio do projeto, estavam presentes todos os ministros e toda a bancada de deputados e senadores do partido do governo, a Arena. O MDB boicotou a cerimônia para marcar uma posição contra um projeto que excluía setores importantes da oposição à ditadura de seus benefícios.
A Comissão Mista do Congresso Nacional que analisou a proposta foi escolhida a dedo. Dos 23 integrantes, 13 eram incondicionalmente fiéis ao governo. O presidente da Comissão, o arenista Teotônio Vilela, dissidente e partidário de uma anistia ampla, somente exerceria o seu voto no caso de empate, o que jamais aconteceu. O relator, Ernâni Satyro, seguiu à risca o roteiro traçado para ele. As emendas aceitas em seu substitutivo foram definidas no Ministério da Justiça, em reuniões com o ministro Petrônio Portela, o líder da maioria no Senado, Jarbas Passarinho, o líder da maioria na Câmara, Nelson Marchezan e o presidente do partido, José Sarney. Todas as votações da comissão cravavam um inevitável placar de 13 a 9.
Por maioria governista, entenda-se um Congresso plenamente constituído pelo Pacote de Abril do governo anterior, do presidente-general Ernesto Geisel. O pacote, baixado por força do AI-5, em 1974, criou os senadores biônicos (o terço do Senado escolhido indiretamente por colegiados estaduais) e redefiniu a composição da Câmara de forma a dar mais peso ao eleitorado do Norte e do Nordeste, regiões onde a Arena mantinha prestígio por meio de lideranças tradicionais de caráter patrimonialista. Produziu seus resultados na eleição de 1978. Em 1979, a Arena tinha 231 deputados, contra 189 do MDB; no Senado, eram 41 senadores arenistas - destes, 22 eram biônicos - e 26 pemedebistas.
O projeto do governo, aprovado pelo Congresso em 22 de agosto, foi uma obra solitária do governo militar, referendada por uma maioria parlamentar bovina, totalmente submissa ao poder. Mesmo o voto final do MDB ao substitutivo de Satyro não pode ser colocado na conta da concordância, ou da negociação - foi apenas o voto naquilo que sobrou. O substitutivo do MDB foi rejeitado no plenário, mesmo com a ajuda de 12 parlamentares arenistas; a emenda do deputado Djalma Matinho (Arena-RN), vista como uma opção menos pior que o projeto do governo, também foi rejeitada, mesmo com a ajuda de 14 dissidentes. O MDB entendeu que antes o substitutivo de Satyro do que nada - ainda assim, com a abstenção de 12 de seus 26 senadores e o voto contrário de 29 dos 189 deputados, que preferiram marcar posição contra a anistia limitada dos militares.
A anistia de agosto, aprovada pelo Congresso, perdoou torturadores. Beneficiou também os adversários do regime que pegaram em armas mas não tiveram sentença transitada em julgado. Os presos políticos condenados por luta armada, no entanto, cumpriram penas - depois reduzidas -, mas não foram anistiados. A ditadura designava os adversários que optaram pela luta armada como "criminosos de sangue". Não consta que tenham considerado da mesma forma os que torturaram e mataram a mando do Estado.
A anistia foi essa. Na última hora, na promulgação da lei, o general Figueiredo vetou a expressão "e outros diplomas legais" - passaram a ser anistiados só os punidos por atos institucionais. O veto a quatro palavras excluiu do benefício os militares, os sindicalistas e os estudantes punidos por sanções administrativas, pelo decreto 477 e por outras determinações legais impostas pela ditadura.
Este é, segundo o Supremo Tribunal Federal (STF) em decisão proferida na semana passada, o "acordo histórico" feito pela sociedade brasileira: de um lado, a sociedade civil mobilizada em comitês que pleiteavam anistia ampla, derrotada; de outro, baionetas e maiorias forjadas por atos institucionais e Pacote de Abril. A autora da tese de doutorado cita, a propósito, uma frase do jornalista Aparício Torelly, o Barão de Itararé: "Anistia é um ato pelo qual os governos resolvem perdoar generosamente as injustiças e os crimes que eles mesmos cometeram". Foi isso.
O Brasil vai sentar no banco dos réus da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos por conta dos crimes cometidos pela ditadura. A OEA pode condenar o país a anular a sua lei de anistia, a exemplo do que já fez com o Chile e o Peru, para punir os que torturaram e mataram. O STF que explique direitinho para a OEA esse complicado pacto em que a ditadura resolveu tudo sozinha.
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sexta-feira, 7 de maio de 2010
Vietnã defende sistema de partido único
Décimo e último artigo da excelente série de reportagens de Breno Altman sobre o Vietnã. A série, com uma recheada galeria de fotos e vídeos, está disponível no sítio Opera Mundi:
A Academia Nacional de Política e Administração Pública Ho Chi Minh ocupa amplo espaço no distrito Cau Giay, zona noroeste de Hanói, capital do Vietnã. O conjunto de prédios cor de tomate se distribui ao redor de uma praça vigiada pela estátua do líder comunista. Mas não é um estabelecimento de ensino qualquer. Nenhum vietnamita pode ocupar cargo de direção no Partido Comunista ou no Estado sem passar pelos bancos dessa escola.
Fundada em 1949, a instituição pertence à organização partidária que dirige o Vietnã desde a independência. Mas também presta serviços à gestão governamental. Sua missão primordial é garantir a formação político-ideológica de quem comanda o país. Até mesmo daqueles que tenham cursado o ensino superior, não importa qual estágio.
Um mecanismo dessa natureza seria impensável em democracias ocidentais. A verdade, de todo modo, é que o sistema político vietnamita não bebe na fonte das idéias liberais de Monstesquieu, o pai da teoria de separação dos poderes. A começar porque a Constituição nacional consagra o Partido Comunista do Vietnã (PCV) como único e dirigente.
“O Vietnã não é uma ditadura”, afirma o professor Le Huu Nghia, presidente da academia e membro do comitê central do PCV. “Nosso sistema político possui regras de funcionamento democrático e participativo que são produtos de nossa história e tradição. O que não aceitamos é a imposição de outros modelos, baseados na vinculação entre poder político e poder econômico.”
O alvo aparente das críticas do dirigente comunista é o multipartidarismo existente nas democracias representativas, no qual os recursos financeiros e o acesso à mídia são instrumentos decisivos. No caso vietnamita, após a implantação da economia de mercado, esse tema é mais do que uma discussão filosófica.
Afinal, o que aconteceria com a revolução liderada por Ho Chi Minh se os novos ricos e o capital estrangeiro, engordados durante o período de renovação, pudessem ter seus próprios partidos e veículos de comunicação? Essa talvez seja uma das grandes preocupações entre os comunistas.
“Os grupos empresariais podem ganhar dinheiro, mas não lhes é permitido almejar o poder de Estado”, explica o professor Vo Daí Luoc, presidente do Centro Econômico Vietnã, Ásia e Pacífico. “O multipartidarismo tradicional é uma fórmula pela qual os destinos de um país são submetidos à ditadura de quem tem dinheiro e mídia para apoiar as campanhas eleitorais.”
Fusões partidárias
Mas nem sempre essa rejeição à liberdade partidária foi tão explícita. A independência vietnamita, por exemplo, foi conquistada por uma coalizão de partidos, denominada Vietminh, na qual os comunistas eram a corrente majoritária. As outras duas agremiações mais importantes, democratas e socialistas, foram incorporadas pelos comunistas apenas em 1988.
O próprio PCV surgiu de uma fusão, ocorrida em 1976, entre o Partido dos Trabalhadores, que dirigia o norte do país até o final da guerra, e o Partido Revolucionário do Povo, que combatia no sul o regime apoiado pelos norte-americanos.
O conflito militar é importante para entender o que ocorreu depois da expulsão dos franceses. Os grupos direitistas, fortes abaixo do paralelo 17 e vinculados às forças colonialistas, desrespeitaram os acordos de Genebra, que previam eleições gerais para 1956 com o objetivo de reunificar o país. Esses setores constituíram ilegalmente a República do Vietnã, ao sul, e se subordinaram a sucessivos governos norte-americanos.
A disputa entre os diversos partidos deixava, assim, de ser uma questão institucional. As correntes conservadoras tinham se aliado à agressão externa e rompido com o pacto de 1954, recorrendo à repressão contra os simpatizantes do Vietminh. Os comunistas passaram a ver na sua liquidação política e militar uma questão de sobrevivência nacional.
Esses grupos, derrotados em 1975, praticamente deixaram de atuar no Vietnã. Suas principais lideranças fugiram para o exterior, particularmente para os Estados Unidos. Lá fundaram diversos partidos e organizações dissidentes, financiados por empresários que apoiavam o regime de Saigon. Seu objetivo é reingressar na vida política do país.
Algumas entidades defensoras dos direitos humanos reclamam que há presos de consciência no país. O governo rechaça a denúncia, alegando que os eventuais prisioneiros participaram de conspiração financiada por potências estrangeiras e foram julgados como terroristas.
Há fatos que parecem dar sentido à posição oficial. Na véspera do desfile pelos 35 anos do final da guerra, uma mulher foi presa em Ho Chi Minh com bombas, armas e um plano de sabotagem contra a manifestação. Morava na Califórnia e ingressara clandestinamente pela fronteira do Camboja. Declarou pertencer a uma célula oposicionista criada em São Francisco.
Financiamento público
Esses acontecimentos eventualmente reforçam a opção pelo partido único. Mas o que se ouve dos dirigentes comunistas é a convicção das benesses democráticas de seu sistema se comparado com os paradigmas ocidentais.
“Qualquer cidadão, filiado ou não ao partido, pode se apresentar como candidato às eleições”, explica o professor Le Huu. “Não terá que se preocupar com recursos, marketing ou imprensa. Todos os candidatos têm as mesmas oportunidades de propaganda. O que os diferencia são suas biografias e suas ligações com a comunidade que querem representar.”
A Assembléia Nacional é o topo da pirâmide. Seus deputados elegem o primeiro-ministro, os membros do governo e o presidente da República, além dos integrantes do poder judiciário. Cada parlamentar representa uma das 493 zonas eleitorais. As 63 províncias possuem instituições equivalentes: o Conselho Popular, que faz às vezes de parlamento regional, e o Comitê Popular, que funciona como governo local. Também os distritos e as aldeias se organizam desse modo.
Nas últimas eleições quinquenais, realizadas em maio de 2007, 492 dos deputados nacionais eleitos pertenciam à Frente da Pátria, que inclui o PCV, diversas organizações sociais não partidárias e até grupos religiosos. Desses, 43 não eram filiados comunistas. Um dos parlamentares foi eleito avulsamente.
A Constituição de 1992, que fixou o sistema institucional atual, também elencou mecanismos automáticos de renovação. O presidente e o primeiro-ministro só podem permanecer nas respectivas funções por dois mandatos de cinco anos. O PCV adotou a mesma regra em relação a seu secretário-geral.
Várias reformas e programas foram implementados para oxigenar a vida política. Uma dessas iniciativas é a transmissão dos debates da Assembléia Nacional por televisão, rádio e internet. Atualmente é comum que distintas comissões do parlamento chamem os ministros, discutam propostas e cobrem resultados sob a luz das câmeras.
Imprensa
Há alguns anos também foi aprovada uma nova legislação sobre imprensa. A propriedade individual dos meios de comunicação continua proibida, mas as organizações sociais passaram a receber licença e financiamento público para desenvolver seus próprios veículos. O Vietnã tem hoje mais de quatrocentos jornais periódicos, além de uma centena de estações de rádio, setenta de televisão e 170 mil sítios de internet.
Algumas das publicações e páginas eletrônicas apresentam versão em língua estrangeira. Não é incomum matérias de denúncia sobre problemas nacionais e erros cometidos pelas autoridades. A abordagem direta e informativa não fica nada a dever aos melhores manuais ocidentais de mídia. Ao menos para inglês ver. Ou brasileiro.
Tampouco parece haver controle sobre o acesso à rede mundial. Existem centenas de lan houses nas ruas de Hanói e Ho Chi Minh. Ao contrário do que se diz sobre a China, por exemplo, não há evidências de proibição a algum sitio no Vietnã. As biroscas de internet estão sempre lotadas de jovens loucos por um mouse. A reportagem testou dez diferentes páginas eletrônicas, incluindo endereços de grupos dissidentes, em três lans aleatórias
“Nosso esforço é desenvolver nosso sistema, não abandoná-lo”, afirma Le Huu. “Queremos aumentar a participação política, especialmente dos não comunistas.” Essa lógica, de fato, tem atropelado dogmas. Disposto a influir sobre diferentes setores sociais, o PCV permite, desde 2006, a filiação de empresários. Muita gente deve ter ficado de cabelo em pé.
Os dirigentes do país costumam associar a natureza de suas instituições à estratégia militar que adotaram nos embates contra franceses e norte-americanos. "Nosso conceito era o de guerra de todo o povo", diz o major-general Bui Thanh Son, da direção do Instituto de Defesa Nacional. "Não eram apenas as forças armadas que combatiam. Todos os cidadãos estavam engajados, em cada aldeia ou povoado. Nossa política de defesa continua baseada nas mesmas idéias. Nosso sistema político também."
Sua declaração não deve ser lida como bravata. Todo vietnamita que ocupa cargo de chefia, dos menores municípios até o poder central, deve fazer um treinamento militar especial, do qual sai como oficial de milícia. Essas pequenas unidades de autodefesa organizam milhões de vietnamitas. Nenhum cidadão está autorizado a possuir armas. Mesmo os policiais trabalham apenas com um bastonete, o que faz do país uma das nações menos violentas do planeta.
Mas a história ensina a seus adversários que deveriam pensar duas vezes antes de querer impor seu próprio modo de vida ao povo de Ho Chi Minh.
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A queda da pobreza absoluta no Vietnã
Nono artigo de Breno Altman, publicado no sítio Opera Mundi:
Hoa Binh é uma província montanhosa no nordeste do Vietnã. A capital, de mesmo nome, fica a 63 quilômetros de Hanói. Ali foi travada uma das batalhas mais importantes da guerra de independência contra os franceses. As tropas do general Vo Nguyen Giap expulsaram os colonizadores em fevereiro de 1952.
Mas os feitos militares não contam toda a história local. A província é uma das mais pobres do Vietnã. A renda per capita não ultrapassa os 300 dólares anuais. As terras de Hoa Binh são pouco férteis e irregulares. Os moradores, na maioria de etnia muong, sobrevivem com dificuldades.
A camponesa Dinh Thi Sy, 51 anos, vive na comuna de Xom Mo, composta por duas aldeias pequenas e habitada por 700 agricultores. Viúva, abriga em casa o filho e sua esposa, além de dois netos. Quando começou o período de renovação, a família recebeu mil metros quadrados descontínuos para plantar arroz. A duras penas, produzem para subsistência.
Para complementar renda, desenvolvem uma modesta lavoura de bambu em terra pública cedida pela comuna. Vendem o miolo da planta como alimento e da casca extraem varetas para as indústrias que fabricam palitos de dente. Mesmo assim, o dinheiro não é suficiente. O filho de Sy trabalha em uma pedreira. A nora dela está cumprindo um contrato de três anos em Taipé, capital de Taiwan.
O filho de Sy está empregado em uma pedreira. A nora está cumprindo um contrato de trabalho em Taiwan, de três anos. Aliás, como outros centenas de milhares, que são escolhidos pelo governo entre os mais pobres, contratados para suprir demanda por mão de obra em outros países.
Mas a camponesa acha que a vida está melhor. “Depois da guerra, passamos fome”, lembra Sy. “Durante anos trabalhamos em uma cooperativa sem receber nem para a comida. Agora tenho casa e televisão. E posso pagar pelos estudos de meus netos, para que eles possam ter melhores chances de progredir”.
As peripécias dessa sorridente muong fazem parte da trajetória de muitos vietnamitas nas últimas décadas. As dificuldades são imensas. Mas o prolongado ciclo de crescimento econômico, depois das reformas realizadas no final dos anos 1980, criou um clima de prosperidade.
Números
Os números ajudam a entender essa situação. Enquanto a miséria extrema (menos de 1 dólar por dia) despencou de 53% para 12,3% nos primeiros 20 anos de dao moi (renovação, em vietnamita), a pobreza absoluta (menos de 2 dólares por dia) caiu de 58% para 22% entre 1993 e 2007. O Vietnã apresenta, portanto, proporção de pobreza máxima semelhante ao Brasil (com 20%). Os dados são do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento.
Mais de 90% da população adulta é alfabetizada. O índice de mortalidade infantil situa-se em 22,26 natimortos por mil. Novamente dados muito parecidos com os brasileiros. Mas a expectativa de vida ao nascer, de 74 anos, é quase 3% superior. São indicadores, enfim, de um país que já se encontra entre as nações com grau médio de desenvolvimento. Com a diferença que nenhum outro sócio desse clube teve trinta anos de guerra nos últimos sessenta.
Apesar da abertura à economia de mercado, o nível de concentração da renda – medido pelo índice Gini, que registra a distribuição da renda familiar – o situa na 78ª posição no ranking da desigualdade. Está melhor que Brasil (10º lugar), Rússia (53º) e China (54º), os três grandes do quarteto BRIC. E apenas um posto pior que a Índia.
O programa mais importante para esses resultados talvez tenha sido a reforma agrária, que aumentou a produtividade e a renda no campo. Também contra a tradição, da maioria das famílias, inclusive nas cidades, de plantar parte do que come. O ritmo de industrialização foi igualmente decisivo: gerou empregos e salários para milhões de camponeses sem perspectiva na atividade rural.
O processo de urbanização atualmente atinge a taxa de 3% ao ano sobre o total da população. Vinte e oito por cento dos vietnamitas já vivem nas cidades. Alguns fatos curiosos decoram essa transição. O Vietnã é o 11º país em número de telefones fixos, o 13º em celulares e o 18º em acesso à internet. Não é pouca coisa.
Saúde e educação
Mas as reformas também trouxeram malefícios sociais. Os serviços de educação e saúde, antes públicos e gratuitos, passaram a cobrar parcialmente dos usuários, além de portas terem sido abertas à iniciativa privada.
“O orçamento do Estado não suporta manter integralmente a gratuidade desses direitos e os programas de desenvolvimento”, explica Dinh Duang Thi, assessor teórico da direção do Partido Comunista. “Adotamos um sistema misto, que protege os mais pobres e cobra dos mais ricos.”
O mecanismo é de anuidade progressiva. Quem estuda em escolas estatais não paga nada até o fim do ensino primário. Mas é obrigado a arcar com 10% das despesas escolares depois disso, até completar o ensino secundário. A mensalidade sobe na universidade. O governo oferece créditos educacionais que os alunos deverão honrar depois de ingressados no mercado de trabalho.
A estrutura de saúde segue modelo semelhante. As redes básicas de atendimento médico-hospitalar são gratuitas, mas tratamentos mais sofisticados requerem que o paciente coloque a mão no bolso.
Nem sempre isso é possível. O marido da camponesa Sy, por exemplo, que morreu de câncer no fígado, teve de vender os animais de criação para pagar a conta de médicos e remédios.
Universidades e hospitais privados foram autorizados a funcionar. O governo alega que essa medida desafoga o Estado, pois empresas que operam no Vietnã estariam obrigadas a garantir para os empregados, nessas instituições particulares, tanto educação quanto cuidados médicos. Outra coisa, no entanto, é assegurar que essas companhias cumpram regras e acordos.
Subsídios
O governo tem aumentado consistentemente o orçamento para educação e saúde em relação ao produto interno, declarando o compromisso em sustentar a universalização paulatina dos serviços estatais. Resultados importantes têm sido alcançados. Por exemplo: 93% dos jovens com 15 anos ou mais estão na escola, contra uma média mundial de 84%. Mas, por ora, os esforços estão focados no campesinato.
O Estado subsidia cerca de 90% os planos de aposentadoria e saúde dos agricultores, que correspondem a 72% da população nacional. A diferença é paga pelos próprios camponeses. Geralmente com sacrifício, que muitas vezes é insuficiente para mantê-los em dia com o sistema de seguridade social.
Outro problema social grave são os mutilados de guerra e descendentes. Quase cinco milhões de vietnamitas, nessas condições, estão parcial ou totalmente impedidos de trabalhar. Centros humanitários disseminam-se por todo o território, apoiados por campanhas permanentes de solidariedade. Trabalham nesses locais as famílias vitimadas pela guerra, que produzem artesanato e roupas cujas vendas complementam a pensão paga pelo Estado.
Próximas batalhas
As dificuldades de transpor certos obstáculos no combate à miséria têm levado os vietnamitas a estudar projetos para transferência de renda, como o Bolsa Família brasileiro. Alguns de seus especialistas acham que seria um caminho possível para atender as minorias étnicas, que vivem em zonas inóspitas ao desenvolvimento econômico e respondem por um terço da pobreza absoluta.
No final de abril, uma missão de estudos da Academia de Ciências Sociais do Vietnã visitou a cidade de Formosa, em Goiás, para conhecer uma experiência concreta de implantação do programa. Levaram para casa novas ideias, que talvez orientem as próximas batalhas sociais.
Aliás, batalhas que têm sido vitoriosas. Em 1990, a ONU fixou a meta de reduzir a miséria pela metade até 2015. A decisão foi ratificada, em 2000, pela Declaração do Milênio. O Vietnã terminou sua lição de casa em 2006.
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Música latina faz sucesso em Ho Chi Minh
O oitavo artigo de Breno Altman sobre o Vietnã, publicado no sítio Opera Mundi:
O Hotel Caravelle abriga lembranças fabulosas. Ali pousavam, durante a guerra, correspondentes de importantes jornais e militares de alta patente. Era também alvo de ataques. Um de seus andares foi explodido por um comando guerrilheiro em 1964, quando ganhava força a escalada de Washington contra o Vietnã. Dois soldados norte-americanos morreram e 78 ficaram feridos.
Atualmente, o Caravelle é a torre de babel mais badalada de Ho Chi Minh. Principalmente por causa de seu famoso bar, o Saigon, Saigon. Localizado no nono andar, atrai estrangeiros e nacionais. Seus frequentadores apreciam o elogiado cardápio de comes e bebes, além da oportunidade de ver as ruas e edifícios iluminados do centro da cidade.
Mais que tudo, porém, gostam mesmo é de ouvir música ao vivo e se esbaldar na aconchegante pista de dança. Ali a festa entra pela madrugada. A animação da noite, de terça a domingo, desde setembro de 2008, está aos cuidados do grupo cubano Warapo. Seus ritmos latinos – salsa, merengue, chá-chá-chá, cumbia – fazem ferver a casa.
O quinteto tem uma formação eclética. O bandleader Alexei González, 31 anos, toca teclado e canta. O percussionista e vocalista Elder González, 38 anos, é apenas parcialmente homônimo de Alexei. O guitarrista Armando Lopez, 28 anos, que está de mudança para a Indonésia e dará lugar a outro músico de percussão, Raul Lopez, que não é seu irmão nem parente. E duas cantoras-bailarinas, Madelin Corona e Lissette Garcia, 23 e 22 anos, que deixam muitos clientes sem ar.
Formado em 1998 na Universidade de Las Villas, em Santa Clara, interior de Cuba, o Warapo é uma invenção de González e González. Alexei estudou cibernética. Elder era aluno de filologia. Não demoraram a se aventurar em Havana. Arrebentaram. Gravaram dois CDs, participaram de festivais e realizaram apresentações concorridas. Sempre com músicas de autoria dos fundadores da banda.
Ida para o Vietnã
Mas um dia resolveram se arriscar pelo mundo. Mandaram músicas e histórias para vários países. A proposta mais concreta veio do distante Vietnã. Um convite para assumir a noite em um dos mais importantes hotéis de Ho Chi Minh. Alguns meses depois estavam com contrato assinado e malas prontas. O acerto inicial era de um ano. Prorrogaram por outro mais.
“Somos o único grupo latino por aqui”, conta Alexei, que acabou conhecendo, na antiga Saigón, a também cubana Janet Leyva, 22 anos, uma rara estrangeira fluente em vietnamita. Casaram-se e o primeiro filho nascerá nos próximos meses. “No início, quem vinha ao bar ouvir nosso grupo eram turistas e residentes de outras nacionalidades. Mas pouco a pouco os vietnamitas começaram a aparecer”, conta.
“Eles sentavam nas mesas mais tranquilas e afastadas do palco”, lembra-se Elder. “Muitas vezes vinham famílias inteiras. Pareciam impressionados tanto com a batida das músicas quanto com o bailado de Madelin e Lissette. Não demorou muito para alguns deles darem suas primeiras requebradas latinas.”
Os cubanos também foram descobrindo que havia, em Ho Chi Minh, escolas de dança de salão. Os alunos, informados da nova atração no Saigon, Saigon, tinham encontrado um lugar para praticar os passos aprendidos. O boca-a-boca fez a fama do Warapo na cidade. Acabaram atraindo também a atenção da imprensa local.
O repertório do grupo inclui canções famosas de vários rincões, mescladas com algumas às quais eles próprios deram vida. Até sambas saem de suas vozes e instrumentos. O público vai ao delírio.
A adesão dos vietnamitas à música quente dos latinos não é a única surpresa cultural que reservam aos estrangeiros desavisados. Possivelmente dez em dez turistas apostariam que o ping-pong ou alguma luta marcial seria o esporte nacional. Perderiam feio. Eles gostam mesmo é de futebol, o bong dá, acompanhado com fanatismo por homens e mulheres. Vários brasileiros jogam e são ídolos no país.
Esse ambiente aberto a descobertas estimulou o Warapo a vôos mais altos. Quando acabar o contrato com o Caravelle, em julho, continuarão no Vietnã. A banda tem convites para tocar em várias cidades, o que ainda não foi possível por conta do compromisso de exclusividade que os prende ao Saigon, Saigon. Mas já se decidiram a pegar estrada.
“Nós ainda vamos encher as praças e os estádios daqui com o som do Caribe”, aposta Alexei. “Os vietnamitas não têm medo de experimentar o novo.”
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O Hotel Caravelle abriga lembranças fabulosas. Ali pousavam, durante a guerra, correspondentes de importantes jornais e militares de alta patente. Era também alvo de ataques. Um de seus andares foi explodido por um comando guerrilheiro em 1964, quando ganhava força a escalada de Washington contra o Vietnã. Dois soldados norte-americanos morreram e 78 ficaram feridos.
Atualmente, o Caravelle é a torre de babel mais badalada de Ho Chi Minh. Principalmente por causa de seu famoso bar, o Saigon, Saigon. Localizado no nono andar, atrai estrangeiros e nacionais. Seus frequentadores apreciam o elogiado cardápio de comes e bebes, além da oportunidade de ver as ruas e edifícios iluminados do centro da cidade.
Mais que tudo, porém, gostam mesmo é de ouvir música ao vivo e se esbaldar na aconchegante pista de dança. Ali a festa entra pela madrugada. A animação da noite, de terça a domingo, desde setembro de 2008, está aos cuidados do grupo cubano Warapo. Seus ritmos latinos – salsa, merengue, chá-chá-chá, cumbia – fazem ferver a casa.
O quinteto tem uma formação eclética. O bandleader Alexei González, 31 anos, toca teclado e canta. O percussionista e vocalista Elder González, 38 anos, é apenas parcialmente homônimo de Alexei. O guitarrista Armando Lopez, 28 anos, que está de mudança para a Indonésia e dará lugar a outro músico de percussão, Raul Lopez, que não é seu irmão nem parente. E duas cantoras-bailarinas, Madelin Corona e Lissette Garcia, 23 e 22 anos, que deixam muitos clientes sem ar.
Formado em 1998 na Universidade de Las Villas, em Santa Clara, interior de Cuba, o Warapo é uma invenção de González e González. Alexei estudou cibernética. Elder era aluno de filologia. Não demoraram a se aventurar em Havana. Arrebentaram. Gravaram dois CDs, participaram de festivais e realizaram apresentações concorridas. Sempre com músicas de autoria dos fundadores da banda.
Ida para o Vietnã
Mas um dia resolveram se arriscar pelo mundo. Mandaram músicas e histórias para vários países. A proposta mais concreta veio do distante Vietnã. Um convite para assumir a noite em um dos mais importantes hotéis de Ho Chi Minh. Alguns meses depois estavam com contrato assinado e malas prontas. O acerto inicial era de um ano. Prorrogaram por outro mais.
“Somos o único grupo latino por aqui”, conta Alexei, que acabou conhecendo, na antiga Saigón, a também cubana Janet Leyva, 22 anos, uma rara estrangeira fluente em vietnamita. Casaram-se e o primeiro filho nascerá nos próximos meses. “No início, quem vinha ao bar ouvir nosso grupo eram turistas e residentes de outras nacionalidades. Mas pouco a pouco os vietnamitas começaram a aparecer”, conta.
“Eles sentavam nas mesas mais tranquilas e afastadas do palco”, lembra-se Elder. “Muitas vezes vinham famílias inteiras. Pareciam impressionados tanto com a batida das músicas quanto com o bailado de Madelin e Lissette. Não demorou muito para alguns deles darem suas primeiras requebradas latinas.”
Os cubanos também foram descobrindo que havia, em Ho Chi Minh, escolas de dança de salão. Os alunos, informados da nova atração no Saigon, Saigon, tinham encontrado um lugar para praticar os passos aprendidos. O boca-a-boca fez a fama do Warapo na cidade. Acabaram atraindo também a atenção da imprensa local.
O repertório do grupo inclui canções famosas de vários rincões, mescladas com algumas às quais eles próprios deram vida. Até sambas saem de suas vozes e instrumentos. O público vai ao delírio.
A adesão dos vietnamitas à música quente dos latinos não é a única surpresa cultural que reservam aos estrangeiros desavisados. Possivelmente dez em dez turistas apostariam que o ping-pong ou alguma luta marcial seria o esporte nacional. Perderiam feio. Eles gostam mesmo é de futebol, o bong dá, acompanhado com fanatismo por homens e mulheres. Vários brasileiros jogam e são ídolos no país.
Esse ambiente aberto a descobertas estimulou o Warapo a vôos mais altos. Quando acabar o contrato com o Caravelle, em julho, continuarão no Vietnã. A banda tem convites para tocar em várias cidades, o que ainda não foi possível por conta do compromisso de exclusividade que os prende ao Saigon, Saigon. Mas já se decidiram a pegar estrada.
“Nós ainda vamos encher as praças e os estádios daqui com o som do Caribe”, aposta Alexei. “Os vietnamitas não têm medo de experimentar o novo.”
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