quinta-feira, 5 de março de 2020

A formação do público evangélico no Brasil

Por Renata Nagamine e Aramis Luis Silva, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

Em coluna publicada no dia 4 de fevereiro no Estado de S. Paulo, Pedro Nery abordou um fenômeno que nomeou de “crentefobia“, em reflexão sobre a entrevista da cineasta Petra Costa ao programa Amanpour & Company, da PBS. Questionou falas de Petra e posicionamentos públicos diante de declarações biográficas e propostas políticas de Damares Alves, pastora evangélica que chefia o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Nery ilustrou o que entendia pelo inusitado termo, mas não o definiu. Em coluna publicada no dia 10 do mesmo mês, na Folha de S. Paulo, Thiago Amparo percorreu seus potenciais sentidos, apontando as armadilhas postas pelo que descreveu como sendo um uso sem rigor dos conceitos.

Entenderemos de partida que por “crentefobia” Nery pretendeu designar ora um pânico moral relacionado a evangélicos, ora o preconceito contra eles, assumindo a categoria, em regra, este último sentido. Longe da pretensão de estabilizar tal jogo semântico, partiremos, então, desse entendimento para tentar lançar luz sobre outros aspectos das intrincadas relações entre religioso e público no Brasil contemporâneo.

Para Nery, o preconceito contra evangélicos é difuso na sociedade brasileira e concentrado em sua “elite intelectual”, com destaque para “os progressistas”. Podemos concordar que evangélicos com frequência são representados como tendo uma religiosidade desmedida e sendo irracionais, ignorantes, obscurantistas, antimodernos numa sociedade que cultua a modernidade. Numa operação metonímica, podemos tomar pelo todo aqueles que aparecem defendendo o criacionismo e o tratamento da homossexualidade por terapia ou “libertação espiritual”.

Cissiparidade

Quando falamos de evangélicos no Brasil estamos nos referindo, no entanto, a cerca de um quarto da população, um grupo composto em sua maioria por pessoas das classes médias e baixas, heterogêneo, dinâmico, que tende à fragmentação. Ele abarca da calvinista e sóbria Congregação Cristã do Brasil aos ministérios dos estrondosos pastores assembleianos Marco Feliciano e Silas Malafaia, da neopentecostal Igreja Universal do Reino de Deus, há anos no centro do poder, à Batista da Lagoinha, uma potência da música gospel e ambiente de pregação da ministra Damares, sem falar nas milhares de pequenas igrejas independentes, instaladas em garagens periféricas ou em sobrelojas em áreas desvalorizadas dos centros urbanos. O nome “evangélicos” designa, assim, uma enorme gama de agrupamentos de sujeitos religiosos que se reconfiguram continuamente, e a própria expansão evangélica se sustenta por uma força motriz que leva ao chão análises homogeneizadoras: a cissiparidade, uma boa metáfora biológica para ilustrar a multiplicação de congregações constituídas em processo de diferenciação.

Compreender a ascensão política dos evangélicos e sua relação com o espaço público requer distinguir entre práticas de lideranças e as dos sujeitos religiosos e também entender que as lideranças para as quais tendemos a olhar são ícones talhados em processos comunicativos específicos e não necessariamente representantes do universo evangélico. Com isso queremos ponderar que, vistos de fora, agrupamentos evangélicos têm bordas e são estáveis, mas, vistos de dentro, encerram instabilidades, tensões e disputas que podem suscitar cismas ou criar condições para que grupos se mantenham em diplomática distância ou explícita tensão.

Nesta altura do argumento cabe frisar uma dimensão que nos parece crucial: nós podemos estar assistindo à estabilização do nome que dá forma e unidade a esses grupos, em um processo no qual tem lugar antagonismos aglutinadores. Em outras palavras, vale a pena olhar para a produção de ícones daqueles que o nome pode representar, pois, embora as lideranças mais conhecidas do público não representem o todo evangélico, podemos estar no bojo de um processo de consolidação do alinhamento entre sujeitos religiosos e discursos públicos de lideranças evangélicas icônicas. Não menos importante, podemos ser parte desse processo.

Já para entender como se dá a produção dessas lideranças propomos olhar para dois elementos: o investimento na visibilização e a configuração de controvérsias públicas. O pentecostalismo carismático é um fenômeno global, o que significa que algumas estratégias de atores políticos evangélicos brasileiros são compartilhadas em redes transnacionais de ativismo, enquanto outras são forjadas em contexto local. Estas passam pelos enquadramentos, ou a nomeação, e a retórica em que eles serão embalados.

No Brasil, o investimento na visibilização aparece como forma de ação para compensar a falta de tradição e influência nas instituições relativamente à Igreja Católica, o que nos ajuda a entender a invisibilidade do conservadorismo católico, do qual atores políticos evangélicos são aliados em instâncias nacionais e internacionais. A estratégia representa ganhos. Ela amplifica a voz de lideranças para muito além da congregação e intensifica a sua aparição pública, o que atrai gente para a igreja. Forma, ademais, uma audiência para seus programas de televisão e rádio, um público cuja sensibilidade é modelada por novas estéticas. Por um lado, a forma de aparição nesses programas contribui para determinada percepção social da religiosidade evangélica. Por outro, como há disputa por crentes dentro do campo religioso, o rendimento da aparição pública anima outros atores à imitação tanto das mensagens quanto da própria estratégia, e isso também se aplica à Igreja Católica, com seus grupos carismáticos e o canal Canção Nova.
Antagonização

No que se refere às controvérsias públicas, a produção de lideranças evangélicas icônicas passa pela antagonização com atores não-religiosos, em geral movimentos sociais, acerca de temas que, para elas, conflitam com a ética cristã. Não se trata apenas de persuadir através de ideias, mas de mover à ação numa espécie de batalha do bem contra o mal, o que implica iconizar pelo avesso o adversário, na forma de um inimigo público. Nesses casos, lideranças evangélicas podem assumir uma posição contrária à pluralidade de modos de vida – à qual a moral pública se abre nas democracias constitucionais -, e o antagonismo no debate surte efeitos: rende-lhes acesso a um público diferente e mais amplo, em função da participação em programas midiáticos e debates institucionais; incita a uma aglutinação de sujeitos religiosos em alianças defensivas; excita à produção de discursos, que circulam no espaço público.

Em seus engajamentos em controvérsias, atores políticos evangélicos usam a linguagem dos direitos, disputando os sentidos dos direitos humanos. Enquadram suas demandas como questões de “liberdade religiosa”, “liberdade de opinião” e “dignidade humana”. No espaço público não lançam mão de linguagem religiosa, daí a pertinência da pergunta de Nery: por que tomá-los por religiosos quando eles falam a língua da República em arena não-religiosa? Ocorre que o uso da linguagem dos direitos não torna o discurso secular, ou público em sentido moderno, se com ele se pretende alinhar a moral constitucional a uma visão cristã do mundo, cujo ideal de vida boa encerra prescrições concernentes aos usos do corpo e às relações entre os sexos/gêneros que as contrariam a ambas.

Estas prescrições – é fundamental levar em conta – são contestadas (i) por religiosos dissidentes dentro das chamadas “igrejas tradicionais”, (ii) por igrejas tradicionais na cena global (a Anglicana, a Metodista e a Presbiteriana norte-americanas) e (iii) por dissidências das tradicionais, as chamadas “igrejas inclusivas”.

Crentefobia

Outra estratégia do ativismo cristão é a nomeação. No caso da “crentefobia”, ela é usada para construir o preconceito contra evangélicos como um problema simétrico e concorrente com o da homofobia, atribuindo responsabilidade pelas práticas condenadas: no artigo de Nery, à esquerda e à “elite intelectual”. Circulando no Estado de S. Paulo, a categoria facilita a repetição acrítica do discurso, que negligencia a posição dos atores, as disputas em que estão envolvidos e as relações de poder. Uma questão no caso do artigo, por exemplo, é que o nome “crentefobia” desloca o foco de práticas de intolerância religiosa por evangélicos, recorrentes e não raro violentas, e as iguala ao que é mais comumente um preconceito difuso, que funde religião, classe e raça. Os problemas não se equivalem e o compromisso com a recusa da intolerância religiosa, da qual sofrem cristãos, implicaria condenar igualmente a incitação de evangélicos ao ódio.

Por isso, o uso de “crentefobia” causa espécie e convida à crítica daquilo que revela e escamoteia. O articulista toma o que antropólogos chamam de categoria êmica, aquela que usam agentes que observamos em pesquisa de campo, por categoria analítica. Com isso alinha-se a grupos envolvidos em disputas sobre direitos com minorias, em questões relacionadas com paridade nas interações sociais, negligenciando a possibilidade de que alguns deles estejam articulados em redes transnacionais de ativismo que patrocinam campanhas “anti-homossexualidade” e contra a “propaganda da homossexualidade”, além de se encontrarem no centro do poder no Brasil.

Para concluir, vale lembrar que a crítica de Nery ao que nomeou de “crentefobia” foi aplaudida inclusive por pessoas da “elite intelectual”, a despeito da menção no artigo ao suposto sucesso de políticas públicas baseadas na abstinência sexual, fato contestado por profissionais da saúde, e de o autor replicar estratégias do próprio ativismo evangélico, a começar pela nomeação, com o uso de uma categoria que desloca e embaça. O que poderia ilustrar melhor a habilidade de grupos evangélicos de configurar o debate e formar público para seus discursos do que a defesa de uma política como essa nas páginas de um jornal que se reivindica liberal e a recepção do artigo por liberais não-conservadores?

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