Por Vinícius dos Santos, na revista Teoria e Debate:
Não é novidade para ninguém que o governo Dilma Rousseff enfrenta seu pior momento. Na verdade, pode-se dizer que é o mais grave momento dos governos petistas desde que o partido chegou ao poder, em 2003 – talvez apenas comparável ao auge da crise do chamado “mensalão”. Contudo, alguns contornos da situação atual tornam este período ainda mais dramático do que aquele vivido nos idos de 2005.
Por um lado, é visível que Dilma se encontra acuada pelo fraco desempenho econômico, pelas manifestações de insatisfação de diversos setores da população (não apenas da classe média tradicional e da elite, é preciso admitir) e pela narrativa midiática que conseguiu pregar em seu governo, e no PT, a pecha da corrupção. Por outro, seu governo, inábil politicamente, não apresenta nenhuma estratégia clara de como sair das cordas em que se encontra desde a reeleição – fato, aliás, agravado após a desastrosa vitória de Eduardo Cunha à presidência da Câmara dos Deputados. Não por acaso, o Executivo está, por ora, completamente refém do Congresso mais conservador das últimas décadas e visivelmente pautado pela grande mídia, que hoje funciona como ponta de lança da oposição.
É hora de recompor a base social: contra o retrocesso, é preciso reorientar a política do governo e lutar pela reforma política
Nesse cenário, é evidente o risco à continuidade do projeto democrático-popular em curso há doze anos. Não se trata da panaceia do impeachment, que serve apenas para inflamar setores mais radicais da sociedade contrários ao programa petista, mas à opção exclusiva, abraçada até aqui, de ceder cada vez mais a um tosco pragmatismo do possível, em nome de uma quase inexistente “governabilidade” nos marcos institucionais atuais. Ora, a continuação dessa tática, na conjuntura presente, nada mais significará, na prática, do que reverter, uma a uma, todas as conquistas obtidas desde 2003. Isso, claro, para não falar no completo abandono da perspectiva de luta pelas mudanças estruturais de que o Brasil tanto necessita, que passariam por enfrentar interesses arraigados no Parlamento. Descaracterizam-se, com isso, tanto o governo quanto o partido da presidenta – e sem ganho algum, mesmo aquele mais imediato e eleitoreiro, para nenhum dos dois.
Não obstante, se poderia argumentar que, dada a fragilidade do governo (fragilidade que ele também ajudou a construir, convém pontuar), não haveria alternativa. Contudo, é exatamente o contrário que se coloca: se Dilma quiser deixar de ver seu governo sequestrado pela ofensiva conservadora do Congresso e pela mídia, a única saída é encontrar forças na sociedade civil para criar um contraponto mínimo aos dois poderes que, neste momento, ditam a agenda política do país [1]. Para isso, parece indispensável a atuação conjunta em duas frentes que, bem articuladas, poderiam criar um ambiente propício à recomposição da base social de apoio da presidenta – hoje desmotivada pela pressão dos meios de comunicação, pela configuração ministerial [2] e pelas contraditórias medidas adotadas nos últimos meses –, dando-lhe alguma força para, como dito, enfrentar as dificuldades políticas e econômicas atuais.
A primeira frente seria reorientar a política econômica do governo em direção à base que o elegeu, abandonando a ortodoxia do “ajuste fiscal” de Joaquim Levy e propondo uma linha de ação mais progressista. Por exemplo, se é preciso “fazer caixa” para reequilibrar o Orçamento, por que não retirar as famigeradas MPs 664 e 665 – cujo mote, sem tergiversações, é reduzir o montante gasto com benefícios a trabalhadores e aposentados – e encampar decididamente a proposta de taxação de grandes fortunas e heranças, que renderiam muito mais recursos aos cofres públicos? Por que também não exigir, sem reticências, a recuperação dos valores desviados por meio de sonegação fiscal, evasão de divisas, lavagem de dinheiro etc. de grandes empresas e de seus acionistas (o escândalo do HSBC e a Operação Zelotes estão aí...)? Medidas como essas não apenas renderiam dividendos à União como, ao mesmo tempo, sinalizariam uma inflexão no sentido esperado de um governo de viés democrático-popular, certamente revigorando o ânimo do bloco social que lhe garantiu a vitória em outubro passado.
A segunda frente, que está intrinsecamente vinculada à primeira e eu gostaria de abordar com maior atenção, é retomar a liderança no debate sobre a reforma política. É fato que boa parte dos problemas enfrentados por Dilma – e pelo PT – decorre do esgotamento do atual sistema político-eleitoral brasileiro. Em particular, da dificuldade em avançar nas reformas estruturais e no tema da corrupção. No entanto, a presidenta e seu governo parecem negligenciar a questão, abandonando sua resolução nas mãos de uma base cada vez menos aliada no Congresso. Não por acaso, até aqui, o que se vemos é o PMDB (e, em menor grau, os partidos de oposição) tomar as rédeas da discussão, tentando emplacar uma reforma à sua feição: sem participação popular e aprofundando os vícios do atual modelo. A ameaça é evidente.
O perigo da proposta de reforma política do PMDB: manutenção do financiamento privado e adoção do “distritão”
Com efeito, se por um lado é verdade que o Senado acaba de dar um passo progressista ao aprovar o fim das coligações em eleições proporcionais, por outro, o cerne da reforma política peemedebista – que, sem mobilização da sociedade, é a que deve ser aprovada no Congresso – é de um retrocesso atroz.
Primeiro, porque mantém o financiamento privado de campanhas. Ora, como todos sabemos (e a Operação Lava Jato é apenas mais uma prova desse fato), essa forma de financiamento é o principal combustível da corrupção no Estado brasileiro, bem como a maior fonte de distorção da soberania popular no Congresso. Afinal, cria uma inevitável relação de promiscuidade entre o capital privado e o poder público, fomentando a prática de atos ilícitos, pagamentos de propinas, “troca de favores” etc. Como consequência, sufoca os interesses públicos, na medida em que estes são preteridos pelas conveniências dos financiadores das campanhas. Ou seja, trata-se de uma influência indevida do poder econômico no poder político, cujo resultado óbvio e mais nocivo é o comprometimento da própria democracia: com o princípio do financiamento privado de campanhas, a vontade do povo é, via de regra, substituída pelo poder do capital.
Contudo, importa lembrar que essa relação é a fonte de poder da grande maioria dos partidos, em especial, o PMDB. Não surpreende, portanto, sua defesa enfática (e da maioria das atuais legendas do Congresso) da manutenção do atual modelo de financiamento eleitoral.
Ademais, o projeto encampado pelo partido do vice-presidente propõe mudar o modelo de representação atual através da adoção do voto distrital, o chamado “distritão”. Em consonância com a lógica do financiamento privado, também aqui se verifica um aumento da influência do poder econômico, que novamente favorece os setores historicamente privilegiados. Explica-se: pelo distritão, os partidos lançam seus candidatos em cada estado (ou distrito fixado previamente), e são eleitos os mais votados. Acaba-se com a regra vigente do quociente eleitoral, na qual a soma dos votos de todos os candidatos, além daqueles dados à legenda, é dividida por um quociente para estabelecer o número de vagas a serem ocupadas pelo partido. Numa palavra, pelo atual sistema entram os mais votados no partido, em uma representação proporcional, ao passo que, pelo distritão, entrariam os mais votados no estado (ou em cada distrito eleitoral), independentemente do partido ao qual pertençam.
Por trás da aparente justiça dessa regra (quem tem mais votos vence, não levando outros candidatos consigo), há pelo menos duas questões altamente problemáticas no distritão. Primeiro, como deixaria de valer a soma de votos obtidos pelos candidatos, cresceria a competição dentro das legendas por uma vaga. Entretanto, dado que a maioria dos partidos funciona sem eleição de seus dirigentes, é evidente que o “caciquismo” na arbitragem dessa disputa (ou seja, o poder das figuras mais fortes dentro do partido, os “caciques”) deverá aumentar. Mais importante do que isso, para o eleitor, é que, com o distritão, cresceria também o apelo para os partidos lançarem celebridades, líderes religiosos, empresários etc. sem representatividade política, mas cuja fama (e/ou fortuna) atrairia um contingente expressivo de eleitores menos preocupados com programas ou ideologias. Assim, em vez de aumentar o número de candidatos comprometidos com alguma causa ou representantes de algum grupo social, e fortalecer o caráter programático e ideológico dos partidos (algo tão essencial ao bom funcionamento de uma democracia), se instituiria a lógica das “legendas de aluguel”. Com isso, finalmente, a representação popular no Parlamento ficaria ainda mais distorcida, pois praticamente apenas os candidatos “turbinados” financeira ou midiaticamente teriam possibilidade de se eleger.
Assim, a soma financiamento privado e voto distrital seria altamente danosa: concentraria ainda mais as chances de disputa naqueles candidatos com maior poder econômico. Logo, acabaria com a representação proporcional, fatalmente eliminando as minorias no Parlamento, e enfraqueceria os partidos, na medida em que privilegiaria a figura individual do candidato e sua capacidade de atrair votos, e não o programa político que ele deveria representar. Ou seja, tudo o contrário daquilo que uma reforma democrática e popular exige.
Mas não é só. Também segundo a proposta que está sendo gerida no Congresso, o calendário eleitoral seria unificado, com eleições a cada cinco anos para todos os cargos (de vereador a presidente). Tal unificação diminuiria ainda mais uma das poucas oportunidades de a população mostrar seu descontentamento ou sua aprovação a um governo e/ou um partido. Por fim, Eduardo Cunha retomou a conversa de instaurar um modelo parlamentarista após o término do mandato de Dilma, em uma clara tentativa de evitar a continuação do projeto petista no plano federal. Afinal, dentre outras questões, se a reforma peemedebista for aprovada, será quase impossível à esquerda obter a maioria necessária para a indicação de um primeiro-ministro em um eventual regime parlamentarista.
Governo precisa sair da letargia e disputar a opinião pública
Ora, como se vê, sem resistência, o risco de uma verdadeira “contrarreforma” política ser aprovada é elevado. Com ela, somada à tática das infindáveis concessões aos “achacadores” do Congresso, assistiríamos à derrocada do projeto petista – mesmo com o Executivo ainda capitaneado por Dilma – e à restauração de um conservadorismo fortalecido pelos contornos da conjuntura presente. Diante dessa ameaça, a presidenta, o governo e o PT não podem permanecer inertes. Especialmente os dois primeiros devem sair de vez da letargia em que se encontram e assumir a liderança, perante a sociedade civil, da disputa por uma reforma política democrática e popular. Nesse sentido, por exemplo, por que não aproveitar a ampla mobilização do plebiscito pela constituinte do ano passado (que foi inclusive convocado durante a propaganda eleitoral de Dilma) e pensar uma campanha governamental, com site próprio, perfis em redes sociais, spots publicitários e inserções na TV, explicando a necessidade da reforma? Associando sem meias palavras o problema da corrupção ao sistema político vigente? Expondo didaticamente como funciona o financiamento atual e como seria o financiamento público? Dizendo claramente que não há reforma democrática sem participação ativa da sociedade? E que, por consequência, a convocação de uma assembleia constituinte, ou de um plebiscito, é indispensável? Ou seja, por que não enfrentar a questão abertamente, como um problema que concerne ao país, e não a determinado grupo ou partido?
É claro que a execução dessas duas frentes de iniciativas tenderia a aumentar a tensão – que já não é pequena – entre o governo e o Parlamento, ou com setores da oposição. E é sempre possível que as posições do governo sejam derrotadas perante a opinião pública, em especial no cenário de concentração da informação que vivemos no Brasil. Entretanto, convém reafirmar, tais ações também serviriam para tirar o governo do acuamento, na medida em que ajudariam a reorganizar uma força social contrária àquela que, mesmo derrotada nas urnas, tem se mostrado hegemônica desde outubro passado. Com efeito, embora inegavelmente complexo, esse movimento, como dito no início, parece ser a única possibilidade de a presidenta e seu governo se reerguerem e nortearem a agenda do país, trazendo a legítima divergência de interesses para o âmbito da discussão política madura, e não do ódio e do irracionalismo que se verificam hoje (dos quais os “panelaços” recentes e os gritos seletivos “contra a corrupção” são exemplos contundentes). E, de mais a mais, há que evitar a tentação de transformar o vício em virtude. É sempre preferível perder um combate lutando a se resignar e aceitar a derrota de antemão.
Notas
1. Naturalmente, isso não significa negligenciar a necessidade de recomposição de pontes entre Executivo e Legislativo. O que será defendido, na sequência, é que a sustentação do governo Dilma passa forçosamente por reconstruir sua força perante a sociedade civil, e não apenas por acordos com o Congresso e os partidos ali representados.
Não é novidade para ninguém que o governo Dilma Rousseff enfrenta seu pior momento. Na verdade, pode-se dizer que é o mais grave momento dos governos petistas desde que o partido chegou ao poder, em 2003 – talvez apenas comparável ao auge da crise do chamado “mensalão”. Contudo, alguns contornos da situação atual tornam este período ainda mais dramático do que aquele vivido nos idos de 2005.
Por um lado, é visível que Dilma se encontra acuada pelo fraco desempenho econômico, pelas manifestações de insatisfação de diversos setores da população (não apenas da classe média tradicional e da elite, é preciso admitir) e pela narrativa midiática que conseguiu pregar em seu governo, e no PT, a pecha da corrupção. Por outro, seu governo, inábil politicamente, não apresenta nenhuma estratégia clara de como sair das cordas em que se encontra desde a reeleição – fato, aliás, agravado após a desastrosa vitória de Eduardo Cunha à presidência da Câmara dos Deputados. Não por acaso, o Executivo está, por ora, completamente refém do Congresso mais conservador das últimas décadas e visivelmente pautado pela grande mídia, que hoje funciona como ponta de lança da oposição.
É hora de recompor a base social: contra o retrocesso, é preciso reorientar a política do governo e lutar pela reforma política
Nesse cenário, é evidente o risco à continuidade do projeto democrático-popular em curso há doze anos. Não se trata da panaceia do impeachment, que serve apenas para inflamar setores mais radicais da sociedade contrários ao programa petista, mas à opção exclusiva, abraçada até aqui, de ceder cada vez mais a um tosco pragmatismo do possível, em nome de uma quase inexistente “governabilidade” nos marcos institucionais atuais. Ora, a continuação dessa tática, na conjuntura presente, nada mais significará, na prática, do que reverter, uma a uma, todas as conquistas obtidas desde 2003. Isso, claro, para não falar no completo abandono da perspectiva de luta pelas mudanças estruturais de que o Brasil tanto necessita, que passariam por enfrentar interesses arraigados no Parlamento. Descaracterizam-se, com isso, tanto o governo quanto o partido da presidenta – e sem ganho algum, mesmo aquele mais imediato e eleitoreiro, para nenhum dos dois.
Não obstante, se poderia argumentar que, dada a fragilidade do governo (fragilidade que ele também ajudou a construir, convém pontuar), não haveria alternativa. Contudo, é exatamente o contrário que se coloca: se Dilma quiser deixar de ver seu governo sequestrado pela ofensiva conservadora do Congresso e pela mídia, a única saída é encontrar forças na sociedade civil para criar um contraponto mínimo aos dois poderes que, neste momento, ditam a agenda política do país [1]. Para isso, parece indispensável a atuação conjunta em duas frentes que, bem articuladas, poderiam criar um ambiente propício à recomposição da base social de apoio da presidenta – hoje desmotivada pela pressão dos meios de comunicação, pela configuração ministerial [2] e pelas contraditórias medidas adotadas nos últimos meses –, dando-lhe alguma força para, como dito, enfrentar as dificuldades políticas e econômicas atuais.
A primeira frente seria reorientar a política econômica do governo em direção à base que o elegeu, abandonando a ortodoxia do “ajuste fiscal” de Joaquim Levy e propondo uma linha de ação mais progressista. Por exemplo, se é preciso “fazer caixa” para reequilibrar o Orçamento, por que não retirar as famigeradas MPs 664 e 665 – cujo mote, sem tergiversações, é reduzir o montante gasto com benefícios a trabalhadores e aposentados – e encampar decididamente a proposta de taxação de grandes fortunas e heranças, que renderiam muito mais recursos aos cofres públicos? Por que também não exigir, sem reticências, a recuperação dos valores desviados por meio de sonegação fiscal, evasão de divisas, lavagem de dinheiro etc. de grandes empresas e de seus acionistas (o escândalo do HSBC e a Operação Zelotes estão aí...)? Medidas como essas não apenas renderiam dividendos à União como, ao mesmo tempo, sinalizariam uma inflexão no sentido esperado de um governo de viés democrático-popular, certamente revigorando o ânimo do bloco social que lhe garantiu a vitória em outubro passado.
A segunda frente, que está intrinsecamente vinculada à primeira e eu gostaria de abordar com maior atenção, é retomar a liderança no debate sobre a reforma política. É fato que boa parte dos problemas enfrentados por Dilma – e pelo PT – decorre do esgotamento do atual sistema político-eleitoral brasileiro. Em particular, da dificuldade em avançar nas reformas estruturais e no tema da corrupção. No entanto, a presidenta e seu governo parecem negligenciar a questão, abandonando sua resolução nas mãos de uma base cada vez menos aliada no Congresso. Não por acaso, até aqui, o que se vemos é o PMDB (e, em menor grau, os partidos de oposição) tomar as rédeas da discussão, tentando emplacar uma reforma à sua feição: sem participação popular e aprofundando os vícios do atual modelo. A ameaça é evidente.
O perigo da proposta de reforma política do PMDB: manutenção do financiamento privado e adoção do “distritão”
Com efeito, se por um lado é verdade que o Senado acaba de dar um passo progressista ao aprovar o fim das coligações em eleições proporcionais, por outro, o cerne da reforma política peemedebista – que, sem mobilização da sociedade, é a que deve ser aprovada no Congresso – é de um retrocesso atroz.
Primeiro, porque mantém o financiamento privado de campanhas. Ora, como todos sabemos (e a Operação Lava Jato é apenas mais uma prova desse fato), essa forma de financiamento é o principal combustível da corrupção no Estado brasileiro, bem como a maior fonte de distorção da soberania popular no Congresso. Afinal, cria uma inevitável relação de promiscuidade entre o capital privado e o poder público, fomentando a prática de atos ilícitos, pagamentos de propinas, “troca de favores” etc. Como consequência, sufoca os interesses públicos, na medida em que estes são preteridos pelas conveniências dos financiadores das campanhas. Ou seja, trata-se de uma influência indevida do poder econômico no poder político, cujo resultado óbvio e mais nocivo é o comprometimento da própria democracia: com o princípio do financiamento privado de campanhas, a vontade do povo é, via de regra, substituída pelo poder do capital.
Contudo, importa lembrar que essa relação é a fonte de poder da grande maioria dos partidos, em especial, o PMDB. Não surpreende, portanto, sua defesa enfática (e da maioria das atuais legendas do Congresso) da manutenção do atual modelo de financiamento eleitoral.
Ademais, o projeto encampado pelo partido do vice-presidente propõe mudar o modelo de representação atual através da adoção do voto distrital, o chamado “distritão”. Em consonância com a lógica do financiamento privado, também aqui se verifica um aumento da influência do poder econômico, que novamente favorece os setores historicamente privilegiados. Explica-se: pelo distritão, os partidos lançam seus candidatos em cada estado (ou distrito fixado previamente), e são eleitos os mais votados. Acaba-se com a regra vigente do quociente eleitoral, na qual a soma dos votos de todos os candidatos, além daqueles dados à legenda, é dividida por um quociente para estabelecer o número de vagas a serem ocupadas pelo partido. Numa palavra, pelo atual sistema entram os mais votados no partido, em uma representação proporcional, ao passo que, pelo distritão, entrariam os mais votados no estado (ou em cada distrito eleitoral), independentemente do partido ao qual pertençam.
Por trás da aparente justiça dessa regra (quem tem mais votos vence, não levando outros candidatos consigo), há pelo menos duas questões altamente problemáticas no distritão. Primeiro, como deixaria de valer a soma de votos obtidos pelos candidatos, cresceria a competição dentro das legendas por uma vaga. Entretanto, dado que a maioria dos partidos funciona sem eleição de seus dirigentes, é evidente que o “caciquismo” na arbitragem dessa disputa (ou seja, o poder das figuras mais fortes dentro do partido, os “caciques”) deverá aumentar. Mais importante do que isso, para o eleitor, é que, com o distritão, cresceria também o apelo para os partidos lançarem celebridades, líderes religiosos, empresários etc. sem representatividade política, mas cuja fama (e/ou fortuna) atrairia um contingente expressivo de eleitores menos preocupados com programas ou ideologias. Assim, em vez de aumentar o número de candidatos comprometidos com alguma causa ou representantes de algum grupo social, e fortalecer o caráter programático e ideológico dos partidos (algo tão essencial ao bom funcionamento de uma democracia), se instituiria a lógica das “legendas de aluguel”. Com isso, finalmente, a representação popular no Parlamento ficaria ainda mais distorcida, pois praticamente apenas os candidatos “turbinados” financeira ou midiaticamente teriam possibilidade de se eleger.
Assim, a soma financiamento privado e voto distrital seria altamente danosa: concentraria ainda mais as chances de disputa naqueles candidatos com maior poder econômico. Logo, acabaria com a representação proporcional, fatalmente eliminando as minorias no Parlamento, e enfraqueceria os partidos, na medida em que privilegiaria a figura individual do candidato e sua capacidade de atrair votos, e não o programa político que ele deveria representar. Ou seja, tudo o contrário daquilo que uma reforma democrática e popular exige.
Mas não é só. Também segundo a proposta que está sendo gerida no Congresso, o calendário eleitoral seria unificado, com eleições a cada cinco anos para todos os cargos (de vereador a presidente). Tal unificação diminuiria ainda mais uma das poucas oportunidades de a população mostrar seu descontentamento ou sua aprovação a um governo e/ou um partido. Por fim, Eduardo Cunha retomou a conversa de instaurar um modelo parlamentarista após o término do mandato de Dilma, em uma clara tentativa de evitar a continuação do projeto petista no plano federal. Afinal, dentre outras questões, se a reforma peemedebista for aprovada, será quase impossível à esquerda obter a maioria necessária para a indicação de um primeiro-ministro em um eventual regime parlamentarista.
Governo precisa sair da letargia e disputar a opinião pública
Ora, como se vê, sem resistência, o risco de uma verdadeira “contrarreforma” política ser aprovada é elevado. Com ela, somada à tática das infindáveis concessões aos “achacadores” do Congresso, assistiríamos à derrocada do projeto petista – mesmo com o Executivo ainda capitaneado por Dilma – e à restauração de um conservadorismo fortalecido pelos contornos da conjuntura presente. Diante dessa ameaça, a presidenta, o governo e o PT não podem permanecer inertes. Especialmente os dois primeiros devem sair de vez da letargia em que se encontram e assumir a liderança, perante a sociedade civil, da disputa por uma reforma política democrática e popular. Nesse sentido, por exemplo, por que não aproveitar a ampla mobilização do plebiscito pela constituinte do ano passado (que foi inclusive convocado durante a propaganda eleitoral de Dilma) e pensar uma campanha governamental, com site próprio, perfis em redes sociais, spots publicitários e inserções na TV, explicando a necessidade da reforma? Associando sem meias palavras o problema da corrupção ao sistema político vigente? Expondo didaticamente como funciona o financiamento atual e como seria o financiamento público? Dizendo claramente que não há reforma democrática sem participação ativa da sociedade? E que, por consequência, a convocação de uma assembleia constituinte, ou de um plebiscito, é indispensável? Ou seja, por que não enfrentar a questão abertamente, como um problema que concerne ao país, e não a determinado grupo ou partido?
É claro que a execução dessas duas frentes de iniciativas tenderia a aumentar a tensão – que já não é pequena – entre o governo e o Parlamento, ou com setores da oposição. E é sempre possível que as posições do governo sejam derrotadas perante a opinião pública, em especial no cenário de concentração da informação que vivemos no Brasil. Entretanto, convém reafirmar, tais ações também serviriam para tirar o governo do acuamento, na medida em que ajudariam a reorganizar uma força social contrária àquela que, mesmo derrotada nas urnas, tem se mostrado hegemônica desde outubro passado. Com efeito, embora inegavelmente complexo, esse movimento, como dito no início, parece ser a única possibilidade de a presidenta e seu governo se reerguerem e nortearem a agenda do país, trazendo a legítima divergência de interesses para o âmbito da discussão política madura, e não do ódio e do irracionalismo que se verificam hoje (dos quais os “panelaços” recentes e os gritos seletivos “contra a corrupção” são exemplos contundentes). E, de mais a mais, há que evitar a tentação de transformar o vício em virtude. É sempre preferível perder um combate lutando a se resignar e aceitar a derrota de antemão.
Notas
1. Naturalmente, isso não significa negligenciar a necessidade de recomposição de pontes entre Executivo e Legislativo. O que será defendido, na sequência, é que a sustentação do governo Dilma passa forçosamente por reconstruir sua força perante a sociedade civil, e não apenas por acordos com o Congresso e os partidos ali representados.
2. É preciso reconhecer que as indicações de Edinho Silva para ocupar a Secretaria de Comunicação Social, e de Renato Janine Ribeiro, para o Ministério da Educação, conquanto insuficientes, acenam positivamente para uma correção das deformações na montagem do atual ministério.
* Vinícius dos Santos é doutor em Filosofia e professor substituto do Departamento de Educação, Ciências Sociais e Políticas Públicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp – campus de Franca).
0 comentários:
Postar um comentário