Por Tatiana Carlotti, no site Carta Maior:
A atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) e o impacto de suas decisões (ou ausência delas) no processo político brasileiro, durante os últimos seis anos (2012 - 2018), são analisados por Andrei Koerner, professor de Ciência Política da Unicamp, nos últimos dois Cadernos Cedec, publicação do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea.
Pesquisador na área de direito e política, com livros e artigos sobre o sistema Judiciário brasileiro e norte-americano, Koerner reúne desde artigos publicados em veículos de mídia, portanto, focados na conjuntura e destinados ao público mais amplo, quanto artigos acadêmicos e de maior fôlego sobre o tribunal.
No primeiro volume, “O STF no processo político brasileiro” (confira a íntegra aqui), ele aborda o comportamento do STF entre os anos 2012 e 2016, abarcando desde o discurso de “moralização da política” ao golpe parlamentar do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. No segundo, trata das posições tomadas pelo tribunal entre 2017 a 2018, abrangendo o pós golpe e a eleição presidencial que culminou na subida ao poder de Jair Bolsonaro (confira o segundo volume aqui).
Koerner também é autor de "Política e Direito na Suprema Corte Norte Americana" (UEPG, 2017); “Habeas-Corpus, Prática Judicial e Controle Social no Brasil (1841-1920) (IBCCrim, 1999)”, “Judiciário e Cidadania na Constituição da República Brasileira” (Hucitec, 1998); e organizador de “Os Estados Unidos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos” (Funag, 2017) e “História da Justiça Penal no Brasil: Pesquisas e Análises” (IBCCrim, 2006).
Confiram a entrevista concedida pelo cientista político à Carta Maior.
Desde o período da redemocratização, não víamos no Brasil um governo tão vocacionado a posições antidemocráticas, autoritárias, anticonstitucionais. Qual a responsabilidade da Suprema Corte nisso?
O STF atuou para limitar o ritmo e o alcance da redemocratização durante a transição, especialmente ao rejeitar as teses da constituinte soberana e exclusiva, e exercer o controle das decisões da Assembleia Constituinte, tal como defendiam Sarney, os militares e os juristas a eles associados. Promulgada a Constituição, a sua jurisprudência foi nítida: por um lado, preservou a legislação, os interesses e as posições da centro-direita que apoiara os militares e, por outro, bloqueou as inovações que promoviam a democracia social.
Nos anos noventa, deu mão forte aos governos de Fernando Henrique Cardoso na promoção das chamadas reformas pró-mercado, tomando decisões complacentes com violações ou distorções da Constituição, em nome da intangibilidade dos poderes discricionários dos outros ramos do Estado e da prevalência do princípio da economia de mercado no ordenamento constitucional. No governo Lula o discurso e as ações dos ministros iriam mudar.
No primeiro caderno Cedec, você analisa várias das transformações perpetradas pelos governos do PT no Judiciário, entre 2005 e 2010. Muitos acusam o PT de ingenuidade política neste sentido, qual o impacto dessas transformações?
Aparentemente, o PT e o governo Lula não tinham uma estratégia política delineada para as questões referentes ao campo judicial. Aliás, a falta de programa estratégico para tratar as questões militar e judicial parece ser comum aos partidos e lideranças políticas. Os problemas são enfrentados topicamente, confiando-se na identificação de interlocutores confiáveis e na manutenção de relações amistosas com campos cuja lógica interna parece ser hermética à política. A minha avaliação é que, até o escândalo do mensalão e a implementação de controles sobre os juízes após a reforma judiciária, o governo Lula se associou com as carreiras jurídicas, assim como o fez com outros setores do funcionalismo, a fim de restaurar as capacidades do Estado e promover direitos, contornando as dificuldades de obter apoio no Congresso. A convergência com as carreiras jurídicas e o funcionalismo era positiva e tinha uma trajetória que vinha da resistência às políticas de Fernando Henrique Cardoso. O corporativismo dos juristas fez a sua parte, pois, se a reforma consensual do Judiciário visava garantir direitos, ela ao mesmo tempo reforçava os poderes das instituições judiciais (não só do Judiciário, mas também o Ministério Público, a Defensoria etc.) sem quebrar o seu insulamento burocrático. Juízes e promotores não queriam controles sobre si mesmos, e a pauta da corrupção foi a oportunidade para eles reverterem o sentido de controles que ressentidamente passaram a sofrer desde as denúncias que levaram à CPI do Judiciário de 1999.
No que diz respeito ao STF, o perfil dos nomeados no governo Lula parece refletir uma certa visão “ecumênica” de dar assento a juristas que simbolizassem diversos setores da sociedade, embora muitos tivessem vínculos bastante concretos, dada a lógica de distribuição dos postos entre parceiros da coalizão política, entre carreiras jurídicas etc. Outro ponto é que, em geral, os progressistas eram críticos do STF no que havia mitigado o alcance dos instrumentos conferidos pela Constituição de 1988 para assegurar os direitos. Considerava-se que o STF deveria superar as suas omissões, mas não para se tornar um órgão de controle, ou contramajoritário, como se diz, mas se esperava que sua atuação fosse convergente com os outros ramos do Estado no sentido da proteção dos direitos e a promoção dos objetivos constitucionais. Mas conceitos, argumentos, justificações são reversíveis e, pois, passíveis de múltiplos usos táticos. A partir de 2005 ou 2006, com o escândalo do chamado Mensalão, os conservadores se apropriaram do constitucionalismo progressista e passaram a fazer o elogio do ativismo judicial como instrumento contramajoritário e supostamente capaz de substituir os representantes eleitos na promoção da Constituição.
Fala-se muito da Lava Jato e pouco da Ação Penal n° 470. Você traz este primeiro processo nas suas análises. Por que ele é tão importante?
As tentativas de usar as acusações de corrupção para impedir ou de algum modo afetar a candidatura de Lula remontam às eleições de 2006. A partir da derrota eleitoral, o elogio do ativismo judicial foi a palavra de ordem para a qual convergiam juristas progressistas e conservadores, sem que, à época, se notasse a estranheza da situação. O nosso olhar estava voltado para os bloqueios institucionais e as amarras da tradição jurídica contra aquela potencial convergência entre o protagonismo dos juristas e o governo Lula. Certamente, tinha-se consciência das alianças conservadoras dos juristas, e dos seus movimentos contra o governo, mas a discussão era sobre o potencial progressista do Judiciário para a promoção de direitos de minorias, de temas “culturais” que provocavam resistências diante das quais os parlamentares tendiam a recuar.
Ao mesmo tempo, os vínculos de agentes judiciais com a mídia se tornaram muito mais fortes, com o que o elogio do ativismo passava a ter repercussão muito maior. Os nossos artigos de 2012-3 sobre a moralização da política refletiam essa preocupação, na medida em que expressávamos nosso ceticismo sobre a capacidade do Judiciário “cumprir” suas promessas e, portanto, o efetivo compromisso com aquele discurso. O julgamento da AP 470 foi um choque porque os mais diferentes setores se calaram diante das evidentes violações dos direitos dos acusados praticadas pelo Tribunal, ao mesmo tempo em que a mídia combinava a exaltação do protagonismo do aparato judicial no combate à corrupção, com os ataques cotidianos contra o PT e seus aliados. Certamente a combinação não era casual, uma vez que o objetivo da desqualificação ou destruição do adversário era a campanha de 2014, como foi destacado na época.
Você traz uma série de fatos que demonstram a recusa dos ministros do Supremo de “confessarem o direito”, “de garantirem a liberdade”, “de defenderem a Constituição”, durante o golpe de 2016. Como podemos avaliar o impacto dessa recusa?
Ela foi decisiva para o desfecho. Entre 2012 e 2015 a maioria dos ministros revelava uma espécie de volúpia interventiva sobre a política, mas ela era seletiva, afinada com os tempos e posicionamentos da política e, em determinado momento, ela arrefeceu. Os ministros lavaram as mãos em relação a vários pontos do direito de defesa da presidenta Dilma, eles ‘esqueceram’ de julgar o desvio de finalidade do ato de Eduardo Cunha ao admitir o pedido de impeachment, não controlaram os denominados ‘excessos’ da Operação Lava-Jato – o que continua até hoje – em suma, contradisseram toda a retórica do ativismo judicial que defendia o protagonismo da corte constitucional para a promoção da Constituição.
Você vê alguma mudança no posicionamento do Supremo agora?
O segundo caderno termina com um artigo inacabado, que começou a ser escrito no final de novembro de 2018. A frase final é que a resistência aos ataques à Constituição não encontraria no STF – nem nas demais instituições judiciais – apoio efetivo, pois ele está dilacerado e paralisado. Os ministros validaram a violação dos direitos políticos de Lula e aceitaram a tutela militar em nome da estabilidade. Desde então, o presidente Toffoli bloqueia o ingresso das questões politicamente relevantes na pauta do plenário do Tribunal. A primeira delas são os processos sobre o ex-presidente Lula, seguidos dos pedidos de anulação dos processos da Lava-Jato, as investigações sobre o senador Flávio Bolsonaro etc. Mas não se tem expectativa de que essas questões venham a ser julgadas sem mudanças na situação política.
A maioria formada no plenário em 26 de setembro pela anulação da sentença de condenação em primeira instância em virtude da violação do direito de defesa é um sinal importante de enfraquecimento de Moro e da Operação Lava-Jato em virtude das revelações do site Intercept Brasil. Elas podem indicar que o STF impõe algum controle sobre o aparato jurídico-policial em sintonia com as demais forças conservadoras que tomam suas distâncias com o núcleo do governo Bolsonaro. O próprio ingresso do tema na pauta do STF pode ser revelador nesse sentido, mas não temos expectativa que a decisão final do caso efetivamente ocorra na próxima semana, sendo possível que os efeitos da decisão venham a ser engenhosamente modulados para não beneficiarem – ou só parcialmente – o ex-presidente Lula.
A nossa Corte Suprema é muito diferente da Corte Suprema dos Estados Unidos?
Sim, a nossa corte é muito diferente da norte-americana, pois tem poderes muito mais amplos e instrumentos processuais que produzem efeitos mais imediatos e efetivos. Nos Estados Unidos e em outros países as interações de ministros e políticos são intensas. Muitas decisões foram determinadas por pressões políticas, e de certo modo é inevitável que, no limite, isso ocorra. Eu pesquisei o STF na Primeira República, quando o tribunal se assemelhava muito mais ao seu modelo do norte. O grande derrotado naquela época foi Rui Barbosa que, precisamente, tentou implantar um tribunal segundo o modelo norte-americano que assumisse de forma consistente e firme a defesa dos direitos constitucionais para instaurar uma ordem liberal no país. Mas a lógica da política oligárquica, baseada no jogo de apoios e rivalidades entre chefes estaduais, supunha um tribunal maleável, uma jurisprudência arbitrária e inconsistente e juízes envolvidos até o pescoço naquele jogo.
Qualquer semelhança com a situação atual não é coincidência. Nós não fomos capazes de impedir o golpe e também a instrumentalização dos tribunais, conduzida por uma coalizão política de ocasião que rompeu com a democracia e violou a Constituição para promover seus interesses. Juízes profissionais e tribunal constitucional não superam por si sós os problemas da política democrática. Eles podem ser apoios importantes, mas, como muitas coisas na vida, são perigosos, e por isso devemos estar atentos para que eles atuem com cautela e não se tornem apoios e aliados da política facciosa.
Por fim, um tema a pesquisar e refletir sobre a cultura jurídica brasileira. Nas situações críticas, falas e veredictos de juristas e tribunais sobre direitos, parecem derrisórios diante do torvelinho dos acontecimentos. Mas elas foram instituídas justamente para produzir efeitos sobre o real, e é nesse momento que elas podem tentar manter os marcos de referência da Constituição e preservar a própria instância de discurso que elas representam. Para isso, tornam-se mais relevantes fatores aparentemente internos aos julgamentos, tais como a apuração técnica dos procedimentos, a exaustividade de argumentos e razões de decidir, a consistência de decisões no tempo e entre temas conexos, a clareza e coerência das justificações. Com eles, o jurista afirma publicamente sua atuação segundo as disposições quase ascéticas do seu etos, cujo contraponto polêmico é o político. Mas não foi isso que vimos no STF e em boa parte dos juristas brasileiros. Assim, o processo que produziu a política tensa atual também coloca em questão as colusões de interesse, as alianças de classe e as práticas dos juristas brasileiros.
A atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) e o impacto de suas decisões (ou ausência delas) no processo político brasileiro, durante os últimos seis anos (2012 - 2018), são analisados por Andrei Koerner, professor de Ciência Política da Unicamp, nos últimos dois Cadernos Cedec, publicação do Centro de Estudos de Cultura Contemporânea.
Pesquisador na área de direito e política, com livros e artigos sobre o sistema Judiciário brasileiro e norte-americano, Koerner reúne desde artigos publicados em veículos de mídia, portanto, focados na conjuntura e destinados ao público mais amplo, quanto artigos acadêmicos e de maior fôlego sobre o tribunal.
No primeiro volume, “O STF no processo político brasileiro” (confira a íntegra aqui), ele aborda o comportamento do STF entre os anos 2012 e 2016, abarcando desde o discurso de “moralização da política” ao golpe parlamentar do impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. No segundo, trata das posições tomadas pelo tribunal entre 2017 a 2018, abrangendo o pós golpe e a eleição presidencial que culminou na subida ao poder de Jair Bolsonaro (confira o segundo volume aqui).
Koerner também é autor de "Política e Direito na Suprema Corte Norte Americana" (UEPG, 2017); “Habeas-Corpus, Prática Judicial e Controle Social no Brasil (1841-1920) (IBCCrim, 1999)”, “Judiciário e Cidadania na Constituição da República Brasileira” (Hucitec, 1998); e organizador de “Os Estados Unidos e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos” (Funag, 2017) e “História da Justiça Penal no Brasil: Pesquisas e Análises” (IBCCrim, 2006).
Confiram a entrevista concedida pelo cientista político à Carta Maior.
Desde o período da redemocratização, não víamos no Brasil um governo tão vocacionado a posições antidemocráticas, autoritárias, anticonstitucionais. Qual a responsabilidade da Suprema Corte nisso?
O STF atuou para limitar o ritmo e o alcance da redemocratização durante a transição, especialmente ao rejeitar as teses da constituinte soberana e exclusiva, e exercer o controle das decisões da Assembleia Constituinte, tal como defendiam Sarney, os militares e os juristas a eles associados. Promulgada a Constituição, a sua jurisprudência foi nítida: por um lado, preservou a legislação, os interesses e as posições da centro-direita que apoiara os militares e, por outro, bloqueou as inovações que promoviam a democracia social.
Nos anos noventa, deu mão forte aos governos de Fernando Henrique Cardoso na promoção das chamadas reformas pró-mercado, tomando decisões complacentes com violações ou distorções da Constituição, em nome da intangibilidade dos poderes discricionários dos outros ramos do Estado e da prevalência do princípio da economia de mercado no ordenamento constitucional. No governo Lula o discurso e as ações dos ministros iriam mudar.
No primeiro caderno Cedec, você analisa várias das transformações perpetradas pelos governos do PT no Judiciário, entre 2005 e 2010. Muitos acusam o PT de ingenuidade política neste sentido, qual o impacto dessas transformações?
Aparentemente, o PT e o governo Lula não tinham uma estratégia política delineada para as questões referentes ao campo judicial. Aliás, a falta de programa estratégico para tratar as questões militar e judicial parece ser comum aos partidos e lideranças políticas. Os problemas são enfrentados topicamente, confiando-se na identificação de interlocutores confiáveis e na manutenção de relações amistosas com campos cuja lógica interna parece ser hermética à política. A minha avaliação é que, até o escândalo do mensalão e a implementação de controles sobre os juízes após a reforma judiciária, o governo Lula se associou com as carreiras jurídicas, assim como o fez com outros setores do funcionalismo, a fim de restaurar as capacidades do Estado e promover direitos, contornando as dificuldades de obter apoio no Congresso. A convergência com as carreiras jurídicas e o funcionalismo era positiva e tinha uma trajetória que vinha da resistência às políticas de Fernando Henrique Cardoso. O corporativismo dos juristas fez a sua parte, pois, se a reforma consensual do Judiciário visava garantir direitos, ela ao mesmo tempo reforçava os poderes das instituições judiciais (não só do Judiciário, mas também o Ministério Público, a Defensoria etc.) sem quebrar o seu insulamento burocrático. Juízes e promotores não queriam controles sobre si mesmos, e a pauta da corrupção foi a oportunidade para eles reverterem o sentido de controles que ressentidamente passaram a sofrer desde as denúncias que levaram à CPI do Judiciário de 1999.
No que diz respeito ao STF, o perfil dos nomeados no governo Lula parece refletir uma certa visão “ecumênica” de dar assento a juristas que simbolizassem diversos setores da sociedade, embora muitos tivessem vínculos bastante concretos, dada a lógica de distribuição dos postos entre parceiros da coalizão política, entre carreiras jurídicas etc. Outro ponto é que, em geral, os progressistas eram críticos do STF no que havia mitigado o alcance dos instrumentos conferidos pela Constituição de 1988 para assegurar os direitos. Considerava-se que o STF deveria superar as suas omissões, mas não para se tornar um órgão de controle, ou contramajoritário, como se diz, mas se esperava que sua atuação fosse convergente com os outros ramos do Estado no sentido da proteção dos direitos e a promoção dos objetivos constitucionais. Mas conceitos, argumentos, justificações são reversíveis e, pois, passíveis de múltiplos usos táticos. A partir de 2005 ou 2006, com o escândalo do chamado Mensalão, os conservadores se apropriaram do constitucionalismo progressista e passaram a fazer o elogio do ativismo judicial como instrumento contramajoritário e supostamente capaz de substituir os representantes eleitos na promoção da Constituição.
Fala-se muito da Lava Jato e pouco da Ação Penal n° 470. Você traz este primeiro processo nas suas análises. Por que ele é tão importante?
As tentativas de usar as acusações de corrupção para impedir ou de algum modo afetar a candidatura de Lula remontam às eleições de 2006. A partir da derrota eleitoral, o elogio do ativismo judicial foi a palavra de ordem para a qual convergiam juristas progressistas e conservadores, sem que, à época, se notasse a estranheza da situação. O nosso olhar estava voltado para os bloqueios institucionais e as amarras da tradição jurídica contra aquela potencial convergência entre o protagonismo dos juristas e o governo Lula. Certamente, tinha-se consciência das alianças conservadoras dos juristas, e dos seus movimentos contra o governo, mas a discussão era sobre o potencial progressista do Judiciário para a promoção de direitos de minorias, de temas “culturais” que provocavam resistências diante das quais os parlamentares tendiam a recuar.
Ao mesmo tempo, os vínculos de agentes judiciais com a mídia se tornaram muito mais fortes, com o que o elogio do ativismo passava a ter repercussão muito maior. Os nossos artigos de 2012-3 sobre a moralização da política refletiam essa preocupação, na medida em que expressávamos nosso ceticismo sobre a capacidade do Judiciário “cumprir” suas promessas e, portanto, o efetivo compromisso com aquele discurso. O julgamento da AP 470 foi um choque porque os mais diferentes setores se calaram diante das evidentes violações dos direitos dos acusados praticadas pelo Tribunal, ao mesmo tempo em que a mídia combinava a exaltação do protagonismo do aparato judicial no combate à corrupção, com os ataques cotidianos contra o PT e seus aliados. Certamente a combinação não era casual, uma vez que o objetivo da desqualificação ou destruição do adversário era a campanha de 2014, como foi destacado na época.
Você traz uma série de fatos que demonstram a recusa dos ministros do Supremo de “confessarem o direito”, “de garantirem a liberdade”, “de defenderem a Constituição”, durante o golpe de 2016. Como podemos avaliar o impacto dessa recusa?
Ela foi decisiva para o desfecho. Entre 2012 e 2015 a maioria dos ministros revelava uma espécie de volúpia interventiva sobre a política, mas ela era seletiva, afinada com os tempos e posicionamentos da política e, em determinado momento, ela arrefeceu. Os ministros lavaram as mãos em relação a vários pontos do direito de defesa da presidenta Dilma, eles ‘esqueceram’ de julgar o desvio de finalidade do ato de Eduardo Cunha ao admitir o pedido de impeachment, não controlaram os denominados ‘excessos’ da Operação Lava-Jato – o que continua até hoje – em suma, contradisseram toda a retórica do ativismo judicial que defendia o protagonismo da corte constitucional para a promoção da Constituição.
Você vê alguma mudança no posicionamento do Supremo agora?
O segundo caderno termina com um artigo inacabado, que começou a ser escrito no final de novembro de 2018. A frase final é que a resistência aos ataques à Constituição não encontraria no STF – nem nas demais instituições judiciais – apoio efetivo, pois ele está dilacerado e paralisado. Os ministros validaram a violação dos direitos políticos de Lula e aceitaram a tutela militar em nome da estabilidade. Desde então, o presidente Toffoli bloqueia o ingresso das questões politicamente relevantes na pauta do plenário do Tribunal. A primeira delas são os processos sobre o ex-presidente Lula, seguidos dos pedidos de anulação dos processos da Lava-Jato, as investigações sobre o senador Flávio Bolsonaro etc. Mas não se tem expectativa de que essas questões venham a ser julgadas sem mudanças na situação política.
A maioria formada no plenário em 26 de setembro pela anulação da sentença de condenação em primeira instância em virtude da violação do direito de defesa é um sinal importante de enfraquecimento de Moro e da Operação Lava-Jato em virtude das revelações do site Intercept Brasil. Elas podem indicar que o STF impõe algum controle sobre o aparato jurídico-policial em sintonia com as demais forças conservadoras que tomam suas distâncias com o núcleo do governo Bolsonaro. O próprio ingresso do tema na pauta do STF pode ser revelador nesse sentido, mas não temos expectativa que a decisão final do caso efetivamente ocorra na próxima semana, sendo possível que os efeitos da decisão venham a ser engenhosamente modulados para não beneficiarem – ou só parcialmente – o ex-presidente Lula.
A nossa Corte Suprema é muito diferente da Corte Suprema dos Estados Unidos?
Sim, a nossa corte é muito diferente da norte-americana, pois tem poderes muito mais amplos e instrumentos processuais que produzem efeitos mais imediatos e efetivos. Nos Estados Unidos e em outros países as interações de ministros e políticos são intensas. Muitas decisões foram determinadas por pressões políticas, e de certo modo é inevitável que, no limite, isso ocorra. Eu pesquisei o STF na Primeira República, quando o tribunal se assemelhava muito mais ao seu modelo do norte. O grande derrotado naquela época foi Rui Barbosa que, precisamente, tentou implantar um tribunal segundo o modelo norte-americano que assumisse de forma consistente e firme a defesa dos direitos constitucionais para instaurar uma ordem liberal no país. Mas a lógica da política oligárquica, baseada no jogo de apoios e rivalidades entre chefes estaduais, supunha um tribunal maleável, uma jurisprudência arbitrária e inconsistente e juízes envolvidos até o pescoço naquele jogo.
Qualquer semelhança com a situação atual não é coincidência. Nós não fomos capazes de impedir o golpe e também a instrumentalização dos tribunais, conduzida por uma coalizão política de ocasião que rompeu com a democracia e violou a Constituição para promover seus interesses. Juízes profissionais e tribunal constitucional não superam por si sós os problemas da política democrática. Eles podem ser apoios importantes, mas, como muitas coisas na vida, são perigosos, e por isso devemos estar atentos para que eles atuem com cautela e não se tornem apoios e aliados da política facciosa.
Por fim, um tema a pesquisar e refletir sobre a cultura jurídica brasileira. Nas situações críticas, falas e veredictos de juristas e tribunais sobre direitos, parecem derrisórios diante do torvelinho dos acontecimentos. Mas elas foram instituídas justamente para produzir efeitos sobre o real, e é nesse momento que elas podem tentar manter os marcos de referência da Constituição e preservar a própria instância de discurso que elas representam. Para isso, tornam-se mais relevantes fatores aparentemente internos aos julgamentos, tais como a apuração técnica dos procedimentos, a exaustividade de argumentos e razões de decidir, a consistência de decisões no tempo e entre temas conexos, a clareza e coerência das justificações. Com eles, o jurista afirma publicamente sua atuação segundo as disposições quase ascéticas do seu etos, cujo contraponto polêmico é o político. Mas não foi isso que vimos no STF e em boa parte dos juristas brasileiros. Assim, o processo que produziu a política tensa atual também coloca em questão as colusões de interesse, as alianças de classe e as práticas dos juristas brasileiros.
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