Por Felipe Moda, no site Outras Palavras:
Na última terça feira (24/9), mais de 500 motoristas por aplicativos encheram o Auditório Franco Montoro, da Assembleia Legislativa de São Paulo, para a audiência pública #MotoristasPelaVida, que tinha como foco principal debater a segurança dos/as trabalhadores/as. De forma a dar continuidade às análises iniciadas na manifestação global da categoria, realizada em maio deste ano, acompanhamos toda a construção da audiência, realizando mais uma incursão etnográfica com intuito de mapear as formas de articulação destes trabalhadores em sua luta contra as chamadas empresas-aplicativos.
De maio a setembro de 2019 diversas manifestações públicas foram realizadas pelos motoristas em São Paulo, tendo como foco principal o embate contra o que eles nomeiam de excessos promovidos pela prefeitura na fiscalização da atividade. Porém, decidimos centrar nossas análises nesta audiência pública por se tratar, mais uma vez, de uma ação dos trabalhadores contra as empresas e não sobre a regulação do seu trabalho junto ao poder público.
A audiência contou com a presença de representantes das empresas Uber, 99, Lady Drivers, Garupa e Sity e foi organizada pelos/as motoristas, contando com apoio da deputada estadual Isa Penna (PSOL) e do vereador Police Neto (PSD). Na ocasião, motoristas entregaram para as plataformas uma carta de reivindicações com propostas para melhorar a segurança no trabalho e as empresas e os parlamentares presentes assinaram um termo se comprometendo em realizar uma nova audiência, no prazo de 30 dias, para responder às reivindicações. A secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e a Polícia Militar também foram convidadas, mas não compareceram.
Nas entrevistas que realizamos em maio com os motoristas por aplicativo, o tema da segurança já era uma das reivindicações centrais dos/as trabalhadores/as, junto com a questão da remuneração. Diversos estudos e matérias já escancaram alguns dos aspectos da precarização deste trabalho, denunciando as longas jornadas, a baixa remuneração e a falta de direitos trabalhistas para quem se engaja nesta profissão. Porém, a temática da falta de segurança no trabalho, um assunto caro a estes profissionais e que demonstra mais um aspecto da precarização no trabalho, ainda é pouco debatido pela opinião pública.
Para ilustrarmos a gravidade da questão, dados divulgados pela secretaria de Segurança Pública mostram que em 2017 tivemos 3.952 casos de roubos a motoristas enquanto desempenhavam a sua atividade. No primeiro trimestre de 2018 esse número já era 18,5% maior que o mesmo período do ano anterior. Um levantamento realizado pelos próprios motoristas aponta que 55 trabalhadores foram assassinados no estado nos últimos 3 anos. Importante salientarmos que em grande parte destes casos a ação foi realizada por passageiros utilizando contas fakes cadastradas nas plataformas. Por isso, a revolta dos trabalhadores não são dirigidas apenas aos órgãos de segurança pública, mas também contra as empresas. A principal motivação para a realização da atividade foi a triste notícia do assassinato de três motoristas na última semana na Grande São Paulo.
Apesar da audiência ter acontecido apenas no início da noite, o dia todo foi marcado por ações dos motoristas, com concentrações para carreatas em diversos pontos da capital e em municípios do interior. A maior delas contou com a presença de cerca de 200 motoristas, saindo da porta da Rede Globo e se dirigindo à Assembleia Legislativa, local da audiência — onde se juntaram a outras centenas de motoristas que foram se aglomerando na Assembleia desde às 14h.
As articulações dos motoristas e a construção da audiência
Sempre que analisamos as formas de articulação dos/as trabalhadores/as por aplicativos temos que levar em conta aspectos intrínsecos a essas novas categorias baseadas no trabalho mediados por aplicativos, aspectos que decorrem da forma pela qual estes trabalhos são organizados, além de elementos mais estruturais referentes à organização da classe trabalhadora brasileira nas últimas décadas.
No que tange a própria forma de organização deste tipo de trabalho, alguns fatores são importantes de serem considerados. O primeiro deles é fato dos motoristas não serem reconhecidos enquanto trabalhadores pelas empresas-aplicativo, mas como prestadores terceiros autônomos. Desta forma, necessitam romper com a extrema individualização e competição de todos contra todos promovida pelas corporações e se compreender como parte de uma mesma categoria profissional para se organizar — além de reconhecer o papel das empresas como agentes que organizam e coordenam este trabalho e que, portanto, devem ser responsabilizadas em suas consequências. Ao não assumirem a condição de contratantes destes profissionais, as empresas buscam burlar a legislação trabalhista. Ao mesmo tempo, tentam construir nos trabalhadores a visão de que são responsáveis por tudo o que ocorre em seu trabalho, mistificando assim o grau de exploração existente.
Um segundo aspecto é a heterogeneidade interna da categoria, com muitos motoristas tendo esta profissão como renda principal e outros dirigindo apenas poucas horas por dia como forma de complemento de renda — dificultando que muitos se reconheçam enquanto trabalhadores submetidos a uma mesma lógica de trabalho. Por fim, outro aspecto central é a inexistência de uma uma estrutura fabril física que permita maior interação entre os trabalhadores, com a atividade de cada um marcada por forte isolamento dentro dos seus veículos.
Além destes aspectos intrínsecos à própria categoria, é importante destacar o grande descrédito em que se encontram as formas históricas de organização da classe trabalhadora, tal como os sindicatos. Nas últimas décadas, em especial nos últimos anos, uma forte ofensiva do capital contra os trabalhadores refletiu-se em campanhas públicas que identificam seus instrumentos de ação coletiva como ultrapassados, inúteis ou fontes de corrupção. O enfraquecimento dos sindicatos foi coroado com a aprovação da “Reforma “Trabalhista de 2017. Ela inclui uma série de mudanças legais que diminuíram o poder dessas entidades, dificultando-lhes a captação de recursos, reduzindo seu papel na regulamentação do trabalho e rompendo com acordos coletivos realizados pelas categorias.
Neste cenário, típico do início do século XXI, a articulação de ações coletivas se altera. Diferentes atores, repertórios de ação e formas de organização ganham destaque, substituindo as anteriores ao menos em parte. No caso dos motoristas por aplicativos, tanto na mobilização global de maio quanto na construção da audiência recente, chamou a atenção a grande quantidade de associações de motoristas (no estado de São Paulo existem cerca de 20), cooperativas de trabalhadores, representantes de grupos de WhatsApp e Youtubers considerados lideranças da categoria, participando e organizando os protestos. A pluralidade de sujeitos e de visões questiona o antigo formato de entidade representativa das categorias profissionais e traz novos desafios para organizar ações. Surgem muitas vezes disputas internas na categoria; porém, aparentemente, avança a organização de parte destes trabalhadores, algo bastante difícil devido às características já citadas.
Na articulação específica para a construção desta audiência, foram realizadas 6 reuniões preparatórias, com participação de cerca de 25 pessoas destes diferentes segmentos. No intervalo entre as reuniões, muitas trocas de mensagens em grupos de WhatsApp, que crescem e se multiplicam cotidianamente, sendo esta a principal forma de articulação entre os/as trabalhadores/as. A realização destas reuniões superou um dos problemas observado no protesto de maio, que foi as diferentes convocatórias realizadas por cada grupo para o protesto, indicando horários e locais diferentes, dificultando o próprio início da manifestação. Os/as motoristas que construíram esta audiência comentaram que há anos não sentavam em uma mesma mesa para pensar ações unitárias e que, desta vez, conseguiram superar suas diferenças e realizar uma convocatória única para o protesto, bem como consensuar uma carta de reivindicações. Um importante sinal de amadurecimento do movimento.
Toda a mobilização para a audiência foi realizada a partir das centenas de grupos de troca de mensagens existentes na categoria e por vídeos postados no Youtube, um novo formato de divulgação de protestos quando comparamos ao que vinha sendo realizado no último período, com os “eventos” no Facebook, por exemplo. Desta forma, mais uma vez observamos como as Novas Tecnologias de Informação e Controle, baseadas na internet e na conexão em rede, são contraditórias. Elas, que foram fundamentais para ampliar a capacidade de controle das empresas, através do fracionamento e da individualização do trabalho, também estão possibilitando aos trabalhadores/as novas alternativas para romper o isolamento característico deste setor e realizar articulações dos seus interesses. A criação destes espaços virtuais de articulação está revertendo o isolamento dos/as trabalhadores/as após o desmantelamento das grandes fábricas fordistas, recriando espaços de diálogo, trocas de informação e ajuda-mútua entre eles/as, ações fundamentais para a construção de sentimentos de identidade.
As reivindicações dos trabalhadores e as ações das empresas para garantir a segurança
O arranjo tecnológico característico do trabalho mediado por aplicativos é o fato de as empresas mascararem seu verdadeiro papel. Eles se registram como “de tecnologia” e se reivindicam como meras administradoras de plataformas que mediam o encontro entre os prestadores de serviço e os consumidores, cobrando uma porcentagem financeira pela realização deste encontro. Desta forma, julgam que é de sua responsabilidade apenas prover a infraestrutura necessária para os trabalhadores executarem seus serviços e para o encontro deles com uma multidão de consumidores. Muitas vezes não se responsabilizam com o que ocorre antes, durante e após a prestação do serviço, o que acarreta inúmeros problemas para trabalhadores/as e usuários/as.
Para as empresas, a confiabilidade do ato de uma pessoa estranha entrar no veículo de um desconhecido e se locomover pelas ruas das cidades é garantida apenas pela média de pontuação que ela recebe por suas outras viagens. Todos os motoristas com que conversamos acreditam ser falho e insuficiente este sistema de classificação por estrelas, já que os critérios de avaliação são extremamente subjetivos e as novas contas criadas nos serviços são automaticamente premiadas com a nota máxima. Segundo os trabalhadores, a maioria dos crimes são cometidos por usuários servindo-se destes novos cadastros. Ou seja, cria-se um paradoxo onde consumidores com notas altas são vistos como não confiáveis.
Apesar deste texto e da própria audiência terem como foco a violência contra os motoristas, é importante salientar que inúmeros casos de violência contra usuários/as do serviço já ocorreram, em especial contra as mulheres. Após inúmeras reclamações de violência de gênero envolvendo motoristas e passageiras, a Uber passou a realizar campanhas de conscientização sobre a temática e redigiu um compromisso com as mulheres brasileiras, modificando assim a sua postura de não envolvimento na relação motorista versus passageiros. Apesar disso, a insegurança ainda é um tema bastante relatado pelas mulheres que usam os aplicativos. O fato é que as plataformas continuam a fazer muito pouco para ajudar as vítimas de violência, em especial após o momento da realização do crime. As empresas seguem não se responsabilizando por pensar políticas públicas sobre tema ou por acompanhar a solução dos casos. Além disso, não praticam nenhuma forma de apoio aos familiares das vítimas, sejam elas motoristas ou usuários/as.
Visando pensar medidas que atuem na prevenção dos casos de violência e nos desdobramentos posteriores ao acontecimento, os e as motoristas levantaram as seguintes propostas: 1) permissão de comunicação de roubo por motorista por meio da internet para complementação posterior em delegacia responsável; 2) reconhecimento facial dos passageiros; 3) foto nítida de cadastro dos passageiros; 4) criação de botão de emergência nos aplicativos; 5) colocação de câmara nos veículos; 6) remoção dos adesivos de identificação; 7) acompanhamento maior, por parte das empresas, dos casos de violência já ocorridos; 8) delegacia especializada de crimes contra profissionais de aplicativo; 9) aparecer o destino exato dos passageiros quando solicitam a viagem; 10) anulação da cláusula contratual que exclui os motoristas por cancelamento de viagens; 11) criação de pontos de embarques nas comunidades; 12) campanhas de conscientização para que os passageiros tenham hábito de embarque imediato, em especial no período noturno e 13) tornar opcional para os motoristas o recebimento de corridas em dinheiro.
O quanto cada um destes pontos são efetivos para a prevenção de acidentes ou só servem para reforçar preconceitos existentes em nossa sociedade é um tema de debate, porém os/as motoristas alegam que a maioria destas questões já são obrigatórias para eles/as trabalharem. /Como as empresas se colocam como mera intermediadoras entre dois sujeitos terceiros, as regras deveriam ser iguais para os dois lados. De todo modo, é importante relacionar todas as propostas levantadas por refletirem a consciência existente neste momento dos trabalhadores sobre as causas dos seus problemas.
Pelo lado das empresas, a representante da Uber salientou que recentemente foi criado um centro de desenvolvimento tecnológico da empresa em São Paulo, sendo o primeiro do mundo voltado para a questão da segurança. Além disso, diversas medidas já estariam sendo realizadas para aumentar a segurança no trabalho, tal como cadastro mais completo dos/as passageiros/as que pedem corridas em dinheiro e a análise, via algoritmos, em tempo real das viagens visando mapear os riscos envolvidos. Já a 99 alegou que muitos dos pontos da carta de reivindicação já estão sendo atendidos por eles — como ser opcional receber viagens em dinheiro, a identificação de áreas de riscos e a não punição em casos de cancelamento de viagens nestas regiões. De todo modo, daqui a 30 dias teremos um novo encontro entre aplicativos e trabalhadores.
Na última terça feira (24/9), mais de 500 motoristas por aplicativos encheram o Auditório Franco Montoro, da Assembleia Legislativa de São Paulo, para a audiência pública #MotoristasPelaVida, que tinha como foco principal debater a segurança dos/as trabalhadores/as. De forma a dar continuidade às análises iniciadas na manifestação global da categoria, realizada em maio deste ano, acompanhamos toda a construção da audiência, realizando mais uma incursão etnográfica com intuito de mapear as formas de articulação destes trabalhadores em sua luta contra as chamadas empresas-aplicativos.
De maio a setembro de 2019 diversas manifestações públicas foram realizadas pelos motoristas em São Paulo, tendo como foco principal o embate contra o que eles nomeiam de excessos promovidos pela prefeitura na fiscalização da atividade. Porém, decidimos centrar nossas análises nesta audiência pública por se tratar, mais uma vez, de uma ação dos trabalhadores contra as empresas e não sobre a regulação do seu trabalho junto ao poder público.
A audiência contou com a presença de representantes das empresas Uber, 99, Lady Drivers, Garupa e Sity e foi organizada pelos/as motoristas, contando com apoio da deputada estadual Isa Penna (PSOL) e do vereador Police Neto (PSD). Na ocasião, motoristas entregaram para as plataformas uma carta de reivindicações com propostas para melhorar a segurança no trabalho e as empresas e os parlamentares presentes assinaram um termo se comprometendo em realizar uma nova audiência, no prazo de 30 dias, para responder às reivindicações. A secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e a Polícia Militar também foram convidadas, mas não compareceram.
Nas entrevistas que realizamos em maio com os motoristas por aplicativo, o tema da segurança já era uma das reivindicações centrais dos/as trabalhadores/as, junto com a questão da remuneração. Diversos estudos e matérias já escancaram alguns dos aspectos da precarização deste trabalho, denunciando as longas jornadas, a baixa remuneração e a falta de direitos trabalhistas para quem se engaja nesta profissão. Porém, a temática da falta de segurança no trabalho, um assunto caro a estes profissionais e que demonstra mais um aspecto da precarização no trabalho, ainda é pouco debatido pela opinião pública.
Para ilustrarmos a gravidade da questão, dados divulgados pela secretaria de Segurança Pública mostram que em 2017 tivemos 3.952 casos de roubos a motoristas enquanto desempenhavam a sua atividade. No primeiro trimestre de 2018 esse número já era 18,5% maior que o mesmo período do ano anterior. Um levantamento realizado pelos próprios motoristas aponta que 55 trabalhadores foram assassinados no estado nos últimos 3 anos. Importante salientarmos que em grande parte destes casos a ação foi realizada por passageiros utilizando contas fakes cadastradas nas plataformas. Por isso, a revolta dos trabalhadores não são dirigidas apenas aos órgãos de segurança pública, mas também contra as empresas. A principal motivação para a realização da atividade foi a triste notícia do assassinato de três motoristas na última semana na Grande São Paulo.
Apesar da audiência ter acontecido apenas no início da noite, o dia todo foi marcado por ações dos motoristas, com concentrações para carreatas em diversos pontos da capital e em municípios do interior. A maior delas contou com a presença de cerca de 200 motoristas, saindo da porta da Rede Globo e se dirigindo à Assembleia Legislativa, local da audiência — onde se juntaram a outras centenas de motoristas que foram se aglomerando na Assembleia desde às 14h.
As articulações dos motoristas e a construção da audiência
Sempre que analisamos as formas de articulação dos/as trabalhadores/as por aplicativos temos que levar em conta aspectos intrínsecos a essas novas categorias baseadas no trabalho mediados por aplicativos, aspectos que decorrem da forma pela qual estes trabalhos são organizados, além de elementos mais estruturais referentes à organização da classe trabalhadora brasileira nas últimas décadas.
No que tange a própria forma de organização deste tipo de trabalho, alguns fatores são importantes de serem considerados. O primeiro deles é fato dos motoristas não serem reconhecidos enquanto trabalhadores pelas empresas-aplicativo, mas como prestadores terceiros autônomos. Desta forma, necessitam romper com a extrema individualização e competição de todos contra todos promovida pelas corporações e se compreender como parte de uma mesma categoria profissional para se organizar — além de reconhecer o papel das empresas como agentes que organizam e coordenam este trabalho e que, portanto, devem ser responsabilizadas em suas consequências. Ao não assumirem a condição de contratantes destes profissionais, as empresas buscam burlar a legislação trabalhista. Ao mesmo tempo, tentam construir nos trabalhadores a visão de que são responsáveis por tudo o que ocorre em seu trabalho, mistificando assim o grau de exploração existente.
Um segundo aspecto é a heterogeneidade interna da categoria, com muitos motoristas tendo esta profissão como renda principal e outros dirigindo apenas poucas horas por dia como forma de complemento de renda — dificultando que muitos se reconheçam enquanto trabalhadores submetidos a uma mesma lógica de trabalho. Por fim, outro aspecto central é a inexistência de uma uma estrutura fabril física que permita maior interação entre os trabalhadores, com a atividade de cada um marcada por forte isolamento dentro dos seus veículos.
Além destes aspectos intrínsecos à própria categoria, é importante destacar o grande descrédito em que se encontram as formas históricas de organização da classe trabalhadora, tal como os sindicatos. Nas últimas décadas, em especial nos últimos anos, uma forte ofensiva do capital contra os trabalhadores refletiu-se em campanhas públicas que identificam seus instrumentos de ação coletiva como ultrapassados, inúteis ou fontes de corrupção. O enfraquecimento dos sindicatos foi coroado com a aprovação da “Reforma “Trabalhista de 2017. Ela inclui uma série de mudanças legais que diminuíram o poder dessas entidades, dificultando-lhes a captação de recursos, reduzindo seu papel na regulamentação do trabalho e rompendo com acordos coletivos realizados pelas categorias.
Neste cenário, típico do início do século XXI, a articulação de ações coletivas se altera. Diferentes atores, repertórios de ação e formas de organização ganham destaque, substituindo as anteriores ao menos em parte. No caso dos motoristas por aplicativos, tanto na mobilização global de maio quanto na construção da audiência recente, chamou a atenção a grande quantidade de associações de motoristas (no estado de São Paulo existem cerca de 20), cooperativas de trabalhadores, representantes de grupos de WhatsApp e Youtubers considerados lideranças da categoria, participando e organizando os protestos. A pluralidade de sujeitos e de visões questiona o antigo formato de entidade representativa das categorias profissionais e traz novos desafios para organizar ações. Surgem muitas vezes disputas internas na categoria; porém, aparentemente, avança a organização de parte destes trabalhadores, algo bastante difícil devido às características já citadas.
Na articulação específica para a construção desta audiência, foram realizadas 6 reuniões preparatórias, com participação de cerca de 25 pessoas destes diferentes segmentos. No intervalo entre as reuniões, muitas trocas de mensagens em grupos de WhatsApp, que crescem e se multiplicam cotidianamente, sendo esta a principal forma de articulação entre os/as trabalhadores/as. A realização destas reuniões superou um dos problemas observado no protesto de maio, que foi as diferentes convocatórias realizadas por cada grupo para o protesto, indicando horários e locais diferentes, dificultando o próprio início da manifestação. Os/as motoristas que construíram esta audiência comentaram que há anos não sentavam em uma mesma mesa para pensar ações unitárias e que, desta vez, conseguiram superar suas diferenças e realizar uma convocatória única para o protesto, bem como consensuar uma carta de reivindicações. Um importante sinal de amadurecimento do movimento.
Toda a mobilização para a audiência foi realizada a partir das centenas de grupos de troca de mensagens existentes na categoria e por vídeos postados no Youtube, um novo formato de divulgação de protestos quando comparamos ao que vinha sendo realizado no último período, com os “eventos” no Facebook, por exemplo. Desta forma, mais uma vez observamos como as Novas Tecnologias de Informação e Controle, baseadas na internet e na conexão em rede, são contraditórias. Elas, que foram fundamentais para ampliar a capacidade de controle das empresas, através do fracionamento e da individualização do trabalho, também estão possibilitando aos trabalhadores/as novas alternativas para romper o isolamento característico deste setor e realizar articulações dos seus interesses. A criação destes espaços virtuais de articulação está revertendo o isolamento dos/as trabalhadores/as após o desmantelamento das grandes fábricas fordistas, recriando espaços de diálogo, trocas de informação e ajuda-mútua entre eles/as, ações fundamentais para a construção de sentimentos de identidade.
As reivindicações dos trabalhadores e as ações das empresas para garantir a segurança
O arranjo tecnológico característico do trabalho mediado por aplicativos é o fato de as empresas mascararem seu verdadeiro papel. Eles se registram como “de tecnologia” e se reivindicam como meras administradoras de plataformas que mediam o encontro entre os prestadores de serviço e os consumidores, cobrando uma porcentagem financeira pela realização deste encontro. Desta forma, julgam que é de sua responsabilidade apenas prover a infraestrutura necessária para os trabalhadores executarem seus serviços e para o encontro deles com uma multidão de consumidores. Muitas vezes não se responsabilizam com o que ocorre antes, durante e após a prestação do serviço, o que acarreta inúmeros problemas para trabalhadores/as e usuários/as.
Para as empresas, a confiabilidade do ato de uma pessoa estranha entrar no veículo de um desconhecido e se locomover pelas ruas das cidades é garantida apenas pela média de pontuação que ela recebe por suas outras viagens. Todos os motoristas com que conversamos acreditam ser falho e insuficiente este sistema de classificação por estrelas, já que os critérios de avaliação são extremamente subjetivos e as novas contas criadas nos serviços são automaticamente premiadas com a nota máxima. Segundo os trabalhadores, a maioria dos crimes são cometidos por usuários servindo-se destes novos cadastros. Ou seja, cria-se um paradoxo onde consumidores com notas altas são vistos como não confiáveis.
Apesar deste texto e da própria audiência terem como foco a violência contra os motoristas, é importante salientar que inúmeros casos de violência contra usuários/as do serviço já ocorreram, em especial contra as mulheres. Após inúmeras reclamações de violência de gênero envolvendo motoristas e passageiras, a Uber passou a realizar campanhas de conscientização sobre a temática e redigiu um compromisso com as mulheres brasileiras, modificando assim a sua postura de não envolvimento na relação motorista versus passageiros. Apesar disso, a insegurança ainda é um tema bastante relatado pelas mulheres que usam os aplicativos. O fato é que as plataformas continuam a fazer muito pouco para ajudar as vítimas de violência, em especial após o momento da realização do crime. As empresas seguem não se responsabilizando por pensar políticas públicas sobre tema ou por acompanhar a solução dos casos. Além disso, não praticam nenhuma forma de apoio aos familiares das vítimas, sejam elas motoristas ou usuários/as.
Visando pensar medidas que atuem na prevenção dos casos de violência e nos desdobramentos posteriores ao acontecimento, os e as motoristas levantaram as seguintes propostas: 1) permissão de comunicação de roubo por motorista por meio da internet para complementação posterior em delegacia responsável; 2) reconhecimento facial dos passageiros; 3) foto nítida de cadastro dos passageiros; 4) criação de botão de emergência nos aplicativos; 5) colocação de câmara nos veículos; 6) remoção dos adesivos de identificação; 7) acompanhamento maior, por parte das empresas, dos casos de violência já ocorridos; 8) delegacia especializada de crimes contra profissionais de aplicativo; 9) aparecer o destino exato dos passageiros quando solicitam a viagem; 10) anulação da cláusula contratual que exclui os motoristas por cancelamento de viagens; 11) criação de pontos de embarques nas comunidades; 12) campanhas de conscientização para que os passageiros tenham hábito de embarque imediato, em especial no período noturno e 13) tornar opcional para os motoristas o recebimento de corridas em dinheiro.
O quanto cada um destes pontos são efetivos para a prevenção de acidentes ou só servem para reforçar preconceitos existentes em nossa sociedade é um tema de debate, porém os/as motoristas alegam que a maioria destas questões já são obrigatórias para eles/as trabalharem. /Como as empresas se colocam como mera intermediadoras entre dois sujeitos terceiros, as regras deveriam ser iguais para os dois lados. De todo modo, é importante relacionar todas as propostas levantadas por refletirem a consciência existente neste momento dos trabalhadores sobre as causas dos seus problemas.
Pelo lado das empresas, a representante da Uber salientou que recentemente foi criado um centro de desenvolvimento tecnológico da empresa em São Paulo, sendo o primeiro do mundo voltado para a questão da segurança. Além disso, diversas medidas já estariam sendo realizadas para aumentar a segurança no trabalho, tal como cadastro mais completo dos/as passageiros/as que pedem corridas em dinheiro e a análise, via algoritmos, em tempo real das viagens visando mapear os riscos envolvidos. Já a 99 alegou que muitos dos pontos da carta de reivindicação já estão sendo atendidos por eles — como ser opcional receber viagens em dinheiro, a identificação de áreas de riscos e a não punição em casos de cancelamento de viagens nestas regiões. De todo modo, daqui a 30 dias teremos um novo encontro entre aplicativos e trabalhadores.
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