Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Elaborado nos últimos dias de 2015, o relatório do Senador Acir Gurgacz (PDT-RO) está destinado a se transformar no primeiro texto base da política brasileira em 2016. Resposta à resolução do Tribunal de Contas da União que propõe a rejeição das contas do governo Dilma em 2014, o documento é uma aula de administração pública, conhecimento jurídico – e respeito pelas regras do Estado Democrático de Direito. Também oferece novidades fulminantes contra a decisão do TCU.
Lembrando que qualquer acusação de irregularidade contra a presidente da República “ deve ser comprovada, e não presumida”, ele observa na página 67: “apesar de recomendar a rejeição (das contas), em nenhum momento do TCU especificou o efetivo prejuízo causado às contas públicas pela conduta presidencial.” Não é uma omissão qualquer.
Entre as quatro hipóteses previstas legalmente para a rejeição das contas da presidente, três se referem a desfalques, desvios e atos de natureza criminal ou pelo menos ilegal. (A outra hipótese pune o governante que simples deixar de enviar ao Congresso um relatório sobre suas contas). Ao se mostrar incapaz de definir sequer o “efetivo prejuízo causado às contas públicas pela gestão presidencial,” o documento do TCU valoriza uma narrativa que pretende descrever um suposto sistema de desvios e irregularidades, mas não aponta fatos para justificar o que pretende. Privilegia a trama, sem apresentar a prova.
Com paciência e detalhamento – o relatório tem 243 páginas, com gráficos e tabelas que tornam a argumentação mais compreensível – Gurgacz sustenta que as contas de Dilma em 2014 devem ser aprovadas “com ressalvas.”
Essa classificação é um termo técnico, usado para definir uma gestão onde podem ter ocorrido falhas e deslizes de natureza formal, mas que não causaram prejuízo aos cofres públicos. Para permitir um debate ponderado sobre as contas, o documento recorda que em 2011 o TCU apontou 25 falhas e deslizes formais, quase o dobro daquilo que se aponta nas contas de 2014 – e nem por isso concluiu que as contas deveriam ser rejeitadas, como agora se pretende.
A principal crítica de Gurgacz envolve a postura do TCU, que acusa de tentar assumir um papel de protagonista num debate no qual deveria manter-se em função secundária, de assessoramento do Legislativo, como determina a Constituição. Com essa observação, o senador coloca o debate no plano correto – da democracia.
Diz que, ao pedir a rejeição das contas de Dilma, o TCU de extrapola suas atribuições legais, de órgão de assessoria do Legislativo, fugindo ao espírito da Constituição democrática de 1988. Chega a denunciar, na página 63, uma “quebra de princípios da igualdade e independência entre os poderes.” Lembra que, não cabe ao TCU julgar um governo e muito menos fazer recomendações a deputados e senadores, pois seu trabalho é muito mais modesto, de outra natureza: apenas emitir um “parecer prévio”, apoiado em fatos objetivos e dados técnicos, sem tentar “influenciar” a decisão dos parlamentares. Sem demonstrar, em nenhum momento, o mais leve desrespeito pelo tribunal e sua atividade, empregando, por todo tempo, uma linguagem adequada, ele recorda, entre outras, uma observação de Marco Aurélio Mello, em 1992, que define o TCU como “simples órgão auxiliar da esfera opinativa.”
As diversas referências à Constituição de 1988 não constituem um truque retórico. Sem esconder-se atrás de eufemismos que poderiam prejudicar a clareza do raciocínio, o senador argumenta que com a postura assumida no exame das contas de 2014 o TCU em 2015 permitiu-se “julgar tudo o que considera conveniente.”
Diz, por exemplo, que o tribunal chega a “reinterpretar” as normas internas do Banco Central, num esforço destinado a contestar a metodologia tradicional da instituição para produzir suas próprias estatísticas fiscais, num exercício padronizado há décadas, e aceito internacionalmente.
O texto localiza a origem desse comportamento de quem ignora fronteiras legais a suas atribuições num período lamentável de nossa história, no Brasil que vivia sob o AI-5. Lembra que o TCU foi usado pelo regime dos generais para funcionar como um instrumento de pressão permanente para enquadrar o Congresso, visto como principal foco de discórdia e atitudes de contestação que, mesmo limitadas, pretendia-se evitar a qualquer custo.
Num necessário serviço de reconstituição da memória histórica, o relatório recorda que, nos primórdios da Constituinte de 1988, quando os rumos da democratização ainda não estavam claros, fez-se uma tentativa de assegurar que o TCU mantivesse os poderes políticos acumulados no período anterior. Esse movimento chegou a prosperar no início dos trabalhos, como um dos diversos entulhos autoritários – até que, numa reação compreensível da maioria dos parlamentares, o texto definitivo assegurou as devidas prerrogativas dos representantes eleitos, aos quais o TCU deve prestar uma assessoria, limitada a “aspectos meramente formais,” como ensina o mestre Celso Bandeiro de Mello, uma das vozes mais respeitadas do direito administrativo brasileiro.
Para sublinhar que o debate real não envolve problemas de contabilidade, mas opções de política econômica que dizem respeito ao destino de um país com mais de 200 milhões de habitantes, a ser resolvido em urnas, pelos eleitores, Gurgacz recorda, na página 8, uma observação antológica deixada por Aliomar Baleeiro (1905-1978), um parlamentar da UDN que chegou ao Supremo por indicação de Castello Branco, primeiro presidente do golpe 64 mas, com o passar dos anos, tornou-se uma referência liberal na mais alta corte do país.
Em obra clássica sobre administração pública e sobre o papel dos governantes, Baleeiro observou que é preciso considerar as mudanças de conjuntura de cada país – e de cada governo – para entender o ordenamento de despesas e definição de prioridades, o que só reforça a necessidade de reservar o trabalho de julgar as contas da presidente da República a um poder político, o Legislativo, e não a um órgão de assessoria técnica.
“Num país dominado por uma elite requintada, esta exigirá do governo obras de luxo e de conforto,” escreveu Baleeiro. Falecido no mesmo ano em que ocorreram as grandes greves que projetaram a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva no plano nacional, o jurista acrescentou: “se as circunstâncias mudam, e as massas humildes conseguem a partilha do poder político, as despesas públicas se dirigirão para a construção de hospitais, maternidades, postos de puericultura, escolas primárias e outros serviços que de modo geral interessam ao proletariado.”
É nesse contexto, observa o senador, que cabe ao Congresso examinar se a presidente “procedeu como devia e, ainda, como prometeu.”
Pela consistência, o trabalho, intitulado “Contas Prestadas pela Excelentíssima Senhora Presidente da República (Exercício 2014)” representa, no plano político, aquilo que o voto do ministro Luiz Roberto Barroso, do STF, representou no plano jurídico, ao desmontar, linha por linha, argumento por argumento, o projeto de Eduardo Cunha, que encaminhava a proposta de impeachment por uma via rápida, leviana e irresponsável.
Pela qualidade de sua argumentação, pela importância dos dados que apresenta, é de se imaginar que possa vir a ter um impacto semelhante entre seus pares, contribuindo para assegurar uma discussão de bom nível, fundamentada em conhecimento de caso e dados consolidados.
(Este é o primeiro de um conjunto de artigos sobre as contas do governo que planejo publicar nas próximas semanas).
Elaborado nos últimos dias de 2015, o relatório do Senador Acir Gurgacz (PDT-RO) está destinado a se transformar no primeiro texto base da política brasileira em 2016. Resposta à resolução do Tribunal de Contas da União que propõe a rejeição das contas do governo Dilma em 2014, o documento é uma aula de administração pública, conhecimento jurídico – e respeito pelas regras do Estado Democrático de Direito. Também oferece novidades fulminantes contra a decisão do TCU.
Lembrando que qualquer acusação de irregularidade contra a presidente da República “ deve ser comprovada, e não presumida”, ele observa na página 67: “apesar de recomendar a rejeição (das contas), em nenhum momento do TCU especificou o efetivo prejuízo causado às contas públicas pela conduta presidencial.” Não é uma omissão qualquer.
Entre as quatro hipóteses previstas legalmente para a rejeição das contas da presidente, três se referem a desfalques, desvios e atos de natureza criminal ou pelo menos ilegal. (A outra hipótese pune o governante que simples deixar de enviar ao Congresso um relatório sobre suas contas). Ao se mostrar incapaz de definir sequer o “efetivo prejuízo causado às contas públicas pela gestão presidencial,” o documento do TCU valoriza uma narrativa que pretende descrever um suposto sistema de desvios e irregularidades, mas não aponta fatos para justificar o que pretende. Privilegia a trama, sem apresentar a prova.
Com paciência e detalhamento – o relatório tem 243 páginas, com gráficos e tabelas que tornam a argumentação mais compreensível – Gurgacz sustenta que as contas de Dilma em 2014 devem ser aprovadas “com ressalvas.”
Essa classificação é um termo técnico, usado para definir uma gestão onde podem ter ocorrido falhas e deslizes de natureza formal, mas que não causaram prejuízo aos cofres públicos. Para permitir um debate ponderado sobre as contas, o documento recorda que em 2011 o TCU apontou 25 falhas e deslizes formais, quase o dobro daquilo que se aponta nas contas de 2014 – e nem por isso concluiu que as contas deveriam ser rejeitadas, como agora se pretende.
A principal crítica de Gurgacz envolve a postura do TCU, que acusa de tentar assumir um papel de protagonista num debate no qual deveria manter-se em função secundária, de assessoramento do Legislativo, como determina a Constituição. Com essa observação, o senador coloca o debate no plano correto – da democracia.
Diz que, ao pedir a rejeição das contas de Dilma, o TCU de extrapola suas atribuições legais, de órgão de assessoria do Legislativo, fugindo ao espírito da Constituição democrática de 1988. Chega a denunciar, na página 63, uma “quebra de princípios da igualdade e independência entre os poderes.” Lembra que, não cabe ao TCU julgar um governo e muito menos fazer recomendações a deputados e senadores, pois seu trabalho é muito mais modesto, de outra natureza: apenas emitir um “parecer prévio”, apoiado em fatos objetivos e dados técnicos, sem tentar “influenciar” a decisão dos parlamentares. Sem demonstrar, em nenhum momento, o mais leve desrespeito pelo tribunal e sua atividade, empregando, por todo tempo, uma linguagem adequada, ele recorda, entre outras, uma observação de Marco Aurélio Mello, em 1992, que define o TCU como “simples órgão auxiliar da esfera opinativa.”
As diversas referências à Constituição de 1988 não constituem um truque retórico. Sem esconder-se atrás de eufemismos que poderiam prejudicar a clareza do raciocínio, o senador argumenta que com a postura assumida no exame das contas de 2014 o TCU em 2015 permitiu-se “julgar tudo o que considera conveniente.”
Diz, por exemplo, que o tribunal chega a “reinterpretar” as normas internas do Banco Central, num esforço destinado a contestar a metodologia tradicional da instituição para produzir suas próprias estatísticas fiscais, num exercício padronizado há décadas, e aceito internacionalmente.
O texto localiza a origem desse comportamento de quem ignora fronteiras legais a suas atribuições num período lamentável de nossa história, no Brasil que vivia sob o AI-5. Lembra que o TCU foi usado pelo regime dos generais para funcionar como um instrumento de pressão permanente para enquadrar o Congresso, visto como principal foco de discórdia e atitudes de contestação que, mesmo limitadas, pretendia-se evitar a qualquer custo.
Num necessário serviço de reconstituição da memória histórica, o relatório recorda que, nos primórdios da Constituinte de 1988, quando os rumos da democratização ainda não estavam claros, fez-se uma tentativa de assegurar que o TCU mantivesse os poderes políticos acumulados no período anterior. Esse movimento chegou a prosperar no início dos trabalhos, como um dos diversos entulhos autoritários – até que, numa reação compreensível da maioria dos parlamentares, o texto definitivo assegurou as devidas prerrogativas dos representantes eleitos, aos quais o TCU deve prestar uma assessoria, limitada a “aspectos meramente formais,” como ensina o mestre Celso Bandeiro de Mello, uma das vozes mais respeitadas do direito administrativo brasileiro.
Para sublinhar que o debate real não envolve problemas de contabilidade, mas opções de política econômica que dizem respeito ao destino de um país com mais de 200 milhões de habitantes, a ser resolvido em urnas, pelos eleitores, Gurgacz recorda, na página 8, uma observação antológica deixada por Aliomar Baleeiro (1905-1978), um parlamentar da UDN que chegou ao Supremo por indicação de Castello Branco, primeiro presidente do golpe 64 mas, com o passar dos anos, tornou-se uma referência liberal na mais alta corte do país.
Em obra clássica sobre administração pública e sobre o papel dos governantes, Baleeiro observou que é preciso considerar as mudanças de conjuntura de cada país – e de cada governo – para entender o ordenamento de despesas e definição de prioridades, o que só reforça a necessidade de reservar o trabalho de julgar as contas da presidente da República a um poder político, o Legislativo, e não a um órgão de assessoria técnica.
“Num país dominado por uma elite requintada, esta exigirá do governo obras de luxo e de conforto,” escreveu Baleeiro. Falecido no mesmo ano em que ocorreram as grandes greves que projetaram a liderança de Luiz Inácio Lula da Silva no plano nacional, o jurista acrescentou: “se as circunstâncias mudam, e as massas humildes conseguem a partilha do poder político, as despesas públicas se dirigirão para a construção de hospitais, maternidades, postos de puericultura, escolas primárias e outros serviços que de modo geral interessam ao proletariado.”
É nesse contexto, observa o senador, que cabe ao Congresso examinar se a presidente “procedeu como devia e, ainda, como prometeu.”
Pela consistência, o trabalho, intitulado “Contas Prestadas pela Excelentíssima Senhora Presidente da República (Exercício 2014)” representa, no plano político, aquilo que o voto do ministro Luiz Roberto Barroso, do STF, representou no plano jurídico, ao desmontar, linha por linha, argumento por argumento, o projeto de Eduardo Cunha, que encaminhava a proposta de impeachment por uma via rápida, leviana e irresponsável.
Pela qualidade de sua argumentação, pela importância dos dados que apresenta, é de se imaginar que possa vir a ter um impacto semelhante entre seus pares, contribuindo para assegurar uma discussão de bom nível, fundamentada em conhecimento de caso e dados consolidados.
(Este é o primeiro de um conjunto de artigos sobre as contas do governo que planejo publicar nas próximas semanas).
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