segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Informalidade aumenta e emprego piora

Por Clemente Ganz Lúcio

A recessão trouxe novamente desemprego, precarização, informalidade, insegurança laboral e arrocho salarial. A atual situação econômica favorece a conformação desse quadro como o novo “normal”

A economia brasileira rasteja depois de passar por uma das mais graves crises econômicas da sua história. O país experimenta a mais lenta saída de uma recessão com um crescimento econômico anêmico em torno de 1% ao ano, inclusive em 2019. Ao contrário do que bradam e insistem os otimistas agentes econômicos e governamentais, ao final de cada ano frustrado e no início do ano novo, “agora vai!”, a economia patina.

Para os trabalhadores a recessão trouxe novamente o desemprego elevado e de longa duração, a precarização ampliada, a informalidade crescente, o torturante desalento, a insegurança laboral e o arrocho salarial. A situação econômica presente favorece a conformação desse quadro como o novo normal.

Essa afirmação parece contraditória em relação aos últimos indicadores do mercado de trabalho que mostram o aumento das ocupações e dos salários, o que tem sido comemorado como alvissareiro a lastrear uma nova onda de “agora vai, mesmo!”. Vamos conferir os dados [1].

A população brasileira é 209 milhões de habitantes e cresce a uma taxa anual de 0,8%, portanto qualquer crescimento econômico em torno de 1% é praticamente vegetativo, ou seja, o PIB per capita fica praticamente estagnado. Trata-se de uma tragédia para um país com enormes desigualdades e mazelas sociais e econômicas, e que passa por profundas mudanças demográficas.

A população em idade de trabalhar, pessoas com 14 anos ou mais, é de 171 milhões e cresce a uma taxa de 1,0% a.a. Entre 2012 e 2019 essa população aumentou 9,3%. A mudança demográfica fica clara agora: nesse mesmo período a população com até 14 anos diminuiu – 6,7%! Quando a força em idade de trabalho cresce acima do total da população cria-se a oportunidade para que a nação produza um excedente que lhe permite alçar à condição de desenvolvida, produzindo bem-estar e qualidade de vida para todos. Essa janela ou bônus demográfico se fechou.

Compõem atualmente a força de trabalho ativa 106 milhões de pessoas, 92,4 milhões ocupados e 12,6 milhões desempregados (dados médios de 2019). Há ainda em idade para trabalhar, mas fora da força de trabalho ativa, 65 milhões de pessoas. A maioria são jovens que deveriam estudar, aposentados e mulheres responsáveis pelo cuidado dos filhos, dos idosos, dos doentes e da casa, porque os homens não compartilham essas atividades e não há creche e escola em tempo integral, ou política pública de saúde ou de cuidados dos idosos suficientes de qualidade. Pessoas que são obrigadas, pelo desemprego na família e/ou pelas ocupações precárias, arrocho salarial ou aumento do custo de vida, a procurar ocupação e renda no mercado de trabalho. Essa situação faz o contingente da força de trabalho ativa crescer 1, 5% a.a, o que exige criar 1,6 milhão de empregos a cada ano para que o desemprego não cresça.

Depois de uma década (2004-2014) de crescimento econômico e de resistência à crise internacional (2008), a desocupação foi reduzida para patamares médios de 6,8% em 2014 (6,2% em dezembro de 2014), com o aumento continuado do emprego protegido, diminuição da informalidade e crescimento dos salários. A crise econômica transformada em recessão reverte essa dinâmica e a taxa média de desemprego cresce 27% (2014/15), 37% (2016/17) e 13% (2017/18), atinge o pico de 12,7% em 2017 e a maior taxa mensal em março daquele ano, 13,7%. Em dois anos o desemprego dobra e atinge 13 milhões de trabalhadores.

Nesse período, o desemprego torna-se de longa duração, dada as características da grave recessão e da lenta saída da crise. Ao mesmo tempo, segue a sanha da desindustrialização precoce do país e de perda dos empregos de melhor qualidade; os efeitos destrutivos de empresas e do emprego decorrente do combate à corrupção – mais de 1 milhão de empregos diretos destruídos; a mudança patrimonial das empresas cuja reestruturação ceifam postos de trabalho; a inovação tecnológica que impacta na quantidade e nas características dos postos de trabalho. Ao mesmo tempo, as reformas trabalhistas vieram para dar enorme flexibilidade ao sistema de relações de trabalho para demitir e ajustar o custo da força de trabalho, garantindo legalidade às mais variadas formas precárias de contratação e de redução salarial.

Entre 2017 e 2019 a economia criou 3,1 milhões de ocupações, 1,3 (2017-18) e 1,8 (2018-19), um crescimento nada desprezível de 42%, ainda mais diante da baixa dinâmica econômica efetiva. Deve-se considerar que o ajuste feito no emprego durante a recessão foi severo e coerente com o aumento da capacidade ociosa do sistema produtivo. De outro lado, atualmente, qualquer aumento da produção requererá o crescimento das horas extras, o que em geral vem primeiro, seguido pelo aumento da contratação. Também a dramática situação econômica das famílias tem lançado mais pessoas no trabalho por conta própria, no assalariamento sem registro em carteira ou no emprego doméstico, predominantemente informais.

O desemprego médio reduziu -2,9% (2017-18) e -1,7% (2018-19) porque a ocupação cresceu 1,4% e 2,0% nos mesmos períodos. Isso representou a redução de 386 mil e 125 mil desempregados respectivamente no período 2017-18 e 2018-19. A entrada de novas pessoas na força de trabalho ativa aumenta a pressão pelo emprego, diminuindo o efeito do aumento da ocupação na redução do desemprego. Quanto pior é a qualidade dos postos de trabalho gerado, mais persistente é o aumento da demanda pela ocupação. A título de exemplo, se essa dinâmica de redução do desemprego observada entre 2017-19 fosse mantida, o país levaria cerca de 20 anos para voltar a ter uma taxa de desemprego de 6,5%. Portanto, seriam necessárias mais de duas décadas para repor os empregos destruídos em dois anos e retomar o nível de ocupação de 2014.

A taxa de desemprego média de 2019 foi de 11,9%, a segunda redução anual consecutiva. No último trimestre a taxa foi de 11%, uma redução de 1,7 p.p. ao longo do ano na taxa trimestral. Um resultado quantitativo surpreendente com qualidade ruim.

Os empregados são 62,6 milhões (67%), os por conta própria são 24,2 milhões (26%), os empregadores, 4,4 milhões (4,7%) e o trabalhador familiar auxiliar, 2,1 milhões (2,3%). O contingente de empregados cresceu 0,7% e 1,5% anualmente entre 2017-19, mas ainda permanece -2,3 % abaixo de 2014.

Já o contingente de trabalhadores por conta própria cresceu 3,0% e 4,1% no mesmo biênio e está 14,3% acima do patamar de 2014. Isso representa mais de 3 milhões de postos criados nessa condição entre 2014 e 2019, a grande maioria sem proteção social e laboral. O ano de 2019 termina com 19,4 milhões de trabalhadores por conta própria na informalidade, crescimento de 2% em relação a 2018 e cerca de 5,1 milhões de microempreendedores individual (MEI), aumento de 5,1%.

Os assalariados empregados no setor privado são 44,8 milhões (74%), sendo 33,2 milhões assalariados com carteira de trabalho assinada e 11,6 milhões (26%) assalariados sem registro em carteira de trabalho. O contingente contratado ilegalmente cresceu 4,5% e 4,0% no biênio 2017-19 e está 12,3% acima do patamar de 2014. Foram quase 1,3 milhões de assalariados contratados precariamente e de forma ilegal. Já os assalariados com carteira assinada tiveram queda de -1,2% e aumento de 1,1% no mesmo biênio, permanecendo -8,9% abaixo do patamar de 2014, ou seja, com um volume de postos de trabalho menor na ordem de 3,2 milhões. Mantida a dinâmica positiva observada no último ano, criação de 350 postos assalariados com carteira, a economia levaria 10 anos para repor o patamar de emprego protegido de 2014!

O IBGE produz uma aproximação do que se denomina a população ocupada informal, ou seja, sem a proteção social da seguridade laboral e previdenciária. Essa taxa diminuiu até atingir 39% em 2016, mas voltou a crescer com a crise e atingiu 41,4% no trimestre julho/setembro de 2019. A estimativa média da população ocupada informal continuou a aumentar até atingir 41,1% em 2019.

A qualidade dos postos de trabalho pode ser medida pela proteção social relacionada à contribuição para a Previdência social. Enquanto as ocupações sem proteção cresceram 12% (2016-19), as ocupações protegidas cresceram 1,4% no mesmo período. No ano de 2016 a população ocupada e protegida era de 65,6% dos ocupados. Em 2019 esse percentual caiu para 62,9%, havendo, portanto, atualmente quase 37% de ocupados sem proteção social.

O IBGE identificou que em 2019 cerca de 7 milhões estavam subocupados por insuficiência de horas trabalhadas (7,5% dos ocupados), ou seja, trabalhavam jornada parcial com remuneração equivalente. Esse contingente era de 4,7 milhões em 2016 e aumenta 49% até 2019.

A força de trabalho potencial não ativa é estimada em 8 milhões em 2019, aumentando 82% entre 2014 e 2019 de maneira continuada ao longo do período. Destaca-se o aumento de 213% do desalento (2014/19), pessoas que declaram precisar de uma ocupação, mas que desistem da procura por esta se mostrar infrutífera e com custos que não suportam financiar, hoje totalizam 4,7 milhões2. O total da força de trabalho subutilizada (desocupados, desalentados, subocupados por insuficiência de horas e força de trabalho potencial) salta de 15,4 milhões em 2014 para 27,6 milhões em 2019, aumento de 79%. Mesmo quando há uma recuperação da ocupação, como observado em 2018 e 2019, todos os componentes d a for&cc edil;a de trabalho subutilizada continuam a crescer ou se estabilizam, mas não recuam.

O rendimento médio mensal habitual de todos os trabalhos chegou a R$ 2.330,00, recuperando o valor médio observado em 2014 (R$ 2.327,00) depois das quedas em 2015 e 2016. Observa-se, contudo, que a recuperação média de 2019 em relação a 2018 foi de 0,4%, muito abaixo das recuperações de 2018 (1,5%) e 2017 (1,6%), sempre em relação aos anos anteriores.

O IBGE distribui os ocupados em dez grupos de atividade que em 2019 eram:

• 17,7 milhões (19%) de ocupados no setor de comércio, reparação de veículos automotores e bicicletas. Observou-se o crescimento de 1% no último ano e em um patamar de 2% acima da situação observada em 2014. A remuneração média caiu -0,5% no último ano e -8,1% desde 2014.

• 16,4 milhões (18%) são trabalhadores do setor público, defesa, seguridade, educação, saúde humana e serviços sociais. Aumento da ocupação de 2,1% em 2019 e em patamar 8,8% acima da situação observada em 2014. A remuneração média cresceu 1,5% no último ano e 6,8% desde 2014.

• 12 milhões (13%) ocupados na indústria em geral. Crescimento de 1,7% na ocupação nesse setor em 2019, mas ainda posicionado -9,2% abaixo do nível observado em 2014. Esse emprego foi gravemente afetado pela crise e seus efeitos diretos e indiretos sobre a estrutura ocupacional são gravíssimos. Foi nesse setor que houve o maior aumento do contingente ocupado no último ano, 388 mil trabalhadores a mais, mas são na maioria trabalhadores autônomos ou assalariados sem carteira assinada. A remuneração média caiu -0,5% no último ano e cresceu 0,3% desde 2014.

• 10,5 milhões (11%) ocupados nas atividades de informação, comunicação e atividades financeiras, imobiliárias, profissionais e administrativas. Em 2019 observou-se crescimento de 2,1% na ocupação, 2,4% acima de 2014. A remuneração média caiu -1,8% no último ano e -1,1% desde 2014.

• 8,5 milhões (9%) ocupados na agricultura, pecuária, produção florestal, pesca e agricultura. Queda de -0,6% em 2019 e -10,9% abaixo do nível de 2014. Esse segmento vem perdendo continuadamente volume de postos de trabalho (-17,4% em relação à 2012), fenômeno explicado pela inovação tecnológica, concentração fundiária e queda na ocupação na agricultura familiar. A remuneração média cresceu 2,1% no último ano e 4,0% desde 2014 (11,8% desde 2012).

• 6,7 milhões (7%) ocupados na construção, que cresceu 0,5% em 2019, mas que se encontra quase -14% abaixo do patamar de 2014, cerca de 1,1 milhão de postos de trabalho a menos. A remuneração média caiu -1,3% no último ano e -7,3% desde 2014. Gravemente impactada pelos ataques às empreiteiras e aos investimentos públicos em obras.

• 6,3 milhões (7%) ocupados em serviços domésticos, mais de 95% são mulheres, predominantemente negras. Até 2013 esse tipo de ocupação estava em queda porque a qualidade do mercado de trabalho mobilizava principalmente as meninas para novas ocupações. Desde 2014 volta a crescer, 0,9% em 2019, situado 5,8% acima do nível de ocupação observado em 2014. A remuneração média caiu -0,7% no último ano e -0,1% desde 2014 (aumento de 9,6% desde 2012).

• 5,5 milhões (6%) ocupados no setor de alojamento e alimentação, que observou aumento de 3,7% em 2019 e está mais de 30% acima do nível de ocupação de 2014, 44% acima do patamar de 2012. Aplicativos de alimentação e hospedagem, pequenos negócios e ambulantes explicam esse crescimento. A remuneração média caiu -3,8% no último ano e -14,4% desde 2014. Ocupação que se expande com a precarização.

• 4,9 milhões (5%) estão ocupados no setor de transporte, armazenagem e correios que cresceu 4,6% em 2019, situado 16,2% acima do patamar ocupacional de 2014 e 18,4% acima de 2012. Novamente os aplicativos explicam parte considerável desse movimento. A remuneração média caiu -0,5% no último ano e -8,1% desde 2014.

• 5 milhões (5%) em outros serviços (artes, cultura, esportes, recreação; organizações associativas e internacionais; reparação de equipamentos elétricos e eletrônicos pessoais e domésticos; outros serviços pessoais), cresceu 3,9% em 2019 e está 20% acima de 2014 e 31% acima de 2012. A remuneração média cresceu 0,7%, mas com queda de -5,8% desde 2014.

Em síntese, a dinâmica recessiva, aliada aos fatores acima indicados, destruiu intensamente postos de trabalho no campo, na indústria e na construção, que entre 2017 e 2019 não foram recuperados. Os demais setores sofreram os impactos da recessão, mas, principalmente com a ocupação por conta própria e o assalariamento sem carteira de trabalho assinada, conseguiram recuperar o nível de emprego. Desde 2014 somente os rendimentos médios no campo e serviço público tiveram aumento real; a ocupação na indústria e nos serviços domésticos mantiveram a renda média estável e todos os demais agrupamentos ocupacionais por atividade tiveram perda real nos rendimentos médios entre 2014 e 2019.

Por fim, o rendimento médio real do trabalho principal dos empregados no setor privado com carteira de trabalho assinada caiu -0,5% entre 2018 e 2019 e -0,4% entre 2014 e 2019. O rendimento dos assalariados sem carteira cresceu 2,8% entre 2018 e 2019 e 5,8% entre 2014 e 2019, evidenciando deslocamento do assalariamento com carteira assinada para vínculos informais. Já o rendimento dos ocupados por conta própria caiu -0,1% entre 2018 e 2019 e -6,8% entre 2014 e 2019. A massa de rendimentos em 2019 foi estimada em R$ 212,4 bilhões subiu 2,5% em relação a 2018, aumento puxado predominantemente pelo crescimento da ocupação (2,0%).

Para os desempregados uma nova ocupação é um alívio sentido no imediato. Mas há mudanças qualitativas em curso no mundo do trabalho, às vezes encobertas pela crise e pelo desemprego, que precarizam os postos de trabalho, tornam os vínculos laborais informais e sem proteção. Mais pessoas precisam trabalhar, a jornada de trabalho na família aumenta sem o correspondente na renda do trabalho. Compreender a natureza e profundidade das transformações no mundo do trabalho é um enorme desafio.

* Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, foi diretor técnico do Dieese de 2004 a 2019.

Notas

1. Os dados utilizados nesta análise são da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados para o ano de 2019 e relacionados com as mesmas bases para anos anteriores.

2. Se o desalento fosse incluído no contingente de desempregado como faz a metodologia da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED), a taxa de desemprego subiria para 15,6%.

0 comentários: