Por Reginaldo Moraes, no site Brasil Debate:
A frase de John Maynard Keynes é bem conhecida: “Quando os eventos reais de um século não perturbaram suas ilusões, o homem normal considera o que foi normal durante três gerações como parte do contexto social permanente”.
Não, não é necessário pensar a partir de um período tão longo assim – um século. Quando os eventos reais dos últimos doze anos não perturbavam as expectativas, o homem normal achava que aquilo que foi normal nesse período era parte do contexto social permanente. Mas não é. E vamos percebendo isso rapidinho, rapidinho.
Pensemos neste quadro abaixo:
Ou, representando em um gráfico:
A frase de John Maynard Keynes é bem conhecida: “Quando os eventos reais de um século não perturbaram suas ilusões, o homem normal considera o que foi normal durante três gerações como parte do contexto social permanente”.
Não, não é necessário pensar a partir de um período tão longo assim – um século. Quando os eventos reais dos últimos doze anos não perturbavam as expectativas, o homem normal achava que aquilo que foi normal nesse período era parte do contexto social permanente. Mas não é. E vamos percebendo isso rapidinho, rapidinho.
Pensemos neste quadro abaixo:
Ou, representando em um gráfico:
Reparar. Entre 16 e 34 anos temos 40,7%!
Isso quer dizer que, para 41% do eleitorado, a ‘era FHC” é uma ligeira lembrança. Ou nenhuma lembrança. Para 41% do eleitorado, é meio abstrato dizer que saímos de um período de trevas, em que o patrimônio público era vendido para saldar dívidas e manter inflação quase zero. Parece que falamos de tempos imemoriais. E falamos mesmo: existencialmente imemoriais. Não foram vividos. Para 41% do eleitorado, dizer que em 2001 tínhamos 10 milhões de desempregados, a maior parte deles com desemprego de longo prazo (18 meses) é falar de outro país, até ontem inimaginável e descartado como realidade próxima.
Dizer que milhões de pessoas perdiam o emprego e só tinham esperança de conseguir um novo emprego um ano e meio depois – bem, isso deve levar a pensamentos assim: coitados deles, estavam ferrados. Eles. Nunca “nós”.
Passado aquele tempo, tivemos uns doze anos de redução de tensões sociais e de pobreza, crescimento regular de emprego e renda, taxas de desemprego baixas, oportunidades escolares crescentes, sonhos de ascensão para uma alardeada ‘nova classe média’, cortejada pelo comércio, bancos, seguradoras, financeiras.
Para grande parte desse eleitorado, então, a perspectiva de um retrocesso era, até anteontem, uma coisa algo vaga, pouco crível. Grande parte desse eleitorado tomava aquilo que foi normal como algo garantido, sem recuo possível. Não estaria existencialmente motivado a ‘defender essas conquistas’. Elas estão “dadas”. O que tem aí “está garantido”.
Uma escritora americana certa vez reproduziu comentário de seu pai, um ativista sindical: é muito difícil mobilizar as pessoas para conquistar algo novo, elas acham impossível ou algo a que não têm direito. E ela completava: a classe média americana não está nessa situação. Ela teve direitos e conquistas e os perdeu – é outra situação. Em certa medida, estamos nessa mesma trilha quando falamos da tal “nova classe média”, isto é, da parte da classe trabalhadora que “subiu de vida”. E para aqueles que saíram da crônica situação de miséria. Só que esse não é o único fator a mexer nas suas preferências políticas nem nas suas decisões de tomar partido.
O cenário “demográfico-histórico” estampado naqueles dados acima pode alicerçar, sim, o fim de um ciclo político. E pode propiciar, sim, algum tipo de “normalização” do novo regime, o regime criado pelo consórcio político que tomou a iniciativa do impeachment.
Até as eleições de 2014, parecia-me possível (quase provável) uma possível vitória de uma coligação mais à direita, mais liberal-conservadora, disposta a dar um “freio de arrumação” no “populismo” anterior. Era minha previsão no final de 2013, em nota que escrevi para o grupo de conjuntura da Fundação Perseu Abramo. E que compartilhei com vários amigos militantes. A nota tinha como título “Do jeito que o diabo gosta”. Gostou.
Na ocasião, temperei a coisa, lembrando que essa previsão “pessimista” trabalhava com algo que parecia um cenário “morto”, não levava em conta a ação política, que pode atuar sobre as ideias e expectativas. Os outros fatores, que mencionei, seguiram ativos – e ainda mais ativos. De um lado, uma martelagem insistente da mídia conservadora, uma novelização bem-sucedida da disputa política, com a criação de personagens pausterizados muito convenientes – mocinhos, bandidos, heróis, vilões.
Ironicamente, essa ofensiva era auxiliada por não-conservadores equivocados e oportunistas, míopes e mais interessados no seu nicho de mercado. Aqueles que acham que podem “tirar uma casquinha” da ofensiva conservadora. De outro lado, uma notável inércia e baixa reatividade do governo e de seu partido, que pareciam preferir ficar nas ‘cordas’ do ringue. E se tudo continuasse assim (e continuou)? E se, além disso, o cenário econômico ficasse menos favorável? Daí estaria preparado o cenário para uma possível vitória da oposição conservadora, até mesmo para uma provável vitória, se ela conseguisse eliminar suas divisões internas. Era minha previsão, ali no final de 2013. Ainda me parece que o quadro geral está certo. Creio ter errado em pelo menos dois pontos: o prazo (não foi em outubro de 2014) e a intensidade (foi muito mais do que um freio de arrumação).
Ao mesmo tempo, a fúria demolidora revelou-se uma notável abafadora de demolições. O sonhado “que se vayan todos” dos mais ingênuos (ou oportunistas) virou um “volveran casi todos”. Na Argentina, depois que a classe média conseguiu seus dólares do corralito, deixou os piqueteros a ver navios. Na Espanha, depois de meses de acampamento na Puerta del Sol, o resultado foi uma vitória da ultradireita e um programa de arrocho tremendo nos interesses populares – e aos indignados, aparentemente, restou a indignação impotente das suas ‘microutopias’ bem comportadas. Riscos como esses sempre existem, repetiram-se muitas vezes. Aqui, à fúria do “não nos representam” de 2013 se seguiu um “tanto faz” cada vez mais intenso (mas também incerto). E aqueles que pretendiam “tirar uma casquinha” foram varridos do mapa.
É saudável olhar de novo para aqueles quadros de eleitores, que reproduzi mais acima. Não apenas como eleitores. Também como indivíduos colocados em situações vitais precárias e absolutamente indefinidas. O desemprego aumenta assustadoramente – e, como de costume, aumenta em dobro entre os jovens. A pulverização da classe trabalhadora – com a individualização dos contratos, cada vez mais curtos – acelera-se ainda mais com as reformas legislativas. A precariedade de acesso a redes de segurança social piora, por conta também de reformas restritivas, a tal “austeridade”. Nada tem rotina e nenhum animal vive sem alguma rotina.
Esse grande público está hoje disponível para quase tudo, inclusive para o nada, isto é, para o “tanto faz”, a apatia e a recusa de participar em qualquer atividade associativa ou política, inclusive o voto. Criar propostas críveis que canalizem suas demandas é um desafio para os progressistas. Saberemos entendê-lo e inventar saídas? Voltaremos ao tema…
Isso quer dizer que, para 41% do eleitorado, a ‘era FHC” é uma ligeira lembrança. Ou nenhuma lembrança. Para 41% do eleitorado, é meio abstrato dizer que saímos de um período de trevas, em que o patrimônio público era vendido para saldar dívidas e manter inflação quase zero. Parece que falamos de tempos imemoriais. E falamos mesmo: existencialmente imemoriais. Não foram vividos. Para 41% do eleitorado, dizer que em 2001 tínhamos 10 milhões de desempregados, a maior parte deles com desemprego de longo prazo (18 meses) é falar de outro país, até ontem inimaginável e descartado como realidade próxima.
Dizer que milhões de pessoas perdiam o emprego e só tinham esperança de conseguir um novo emprego um ano e meio depois – bem, isso deve levar a pensamentos assim: coitados deles, estavam ferrados. Eles. Nunca “nós”.
Passado aquele tempo, tivemos uns doze anos de redução de tensões sociais e de pobreza, crescimento regular de emprego e renda, taxas de desemprego baixas, oportunidades escolares crescentes, sonhos de ascensão para uma alardeada ‘nova classe média’, cortejada pelo comércio, bancos, seguradoras, financeiras.
Para grande parte desse eleitorado, então, a perspectiva de um retrocesso era, até anteontem, uma coisa algo vaga, pouco crível. Grande parte desse eleitorado tomava aquilo que foi normal como algo garantido, sem recuo possível. Não estaria existencialmente motivado a ‘defender essas conquistas’. Elas estão “dadas”. O que tem aí “está garantido”.
Uma escritora americana certa vez reproduziu comentário de seu pai, um ativista sindical: é muito difícil mobilizar as pessoas para conquistar algo novo, elas acham impossível ou algo a que não têm direito. E ela completava: a classe média americana não está nessa situação. Ela teve direitos e conquistas e os perdeu – é outra situação. Em certa medida, estamos nessa mesma trilha quando falamos da tal “nova classe média”, isto é, da parte da classe trabalhadora que “subiu de vida”. E para aqueles que saíram da crônica situação de miséria. Só que esse não é o único fator a mexer nas suas preferências políticas nem nas suas decisões de tomar partido.
O cenário “demográfico-histórico” estampado naqueles dados acima pode alicerçar, sim, o fim de um ciclo político. E pode propiciar, sim, algum tipo de “normalização” do novo regime, o regime criado pelo consórcio político que tomou a iniciativa do impeachment.
Até as eleições de 2014, parecia-me possível (quase provável) uma possível vitória de uma coligação mais à direita, mais liberal-conservadora, disposta a dar um “freio de arrumação” no “populismo” anterior. Era minha previsão no final de 2013, em nota que escrevi para o grupo de conjuntura da Fundação Perseu Abramo. E que compartilhei com vários amigos militantes. A nota tinha como título “Do jeito que o diabo gosta”. Gostou.
Na ocasião, temperei a coisa, lembrando que essa previsão “pessimista” trabalhava com algo que parecia um cenário “morto”, não levava em conta a ação política, que pode atuar sobre as ideias e expectativas. Os outros fatores, que mencionei, seguiram ativos – e ainda mais ativos. De um lado, uma martelagem insistente da mídia conservadora, uma novelização bem-sucedida da disputa política, com a criação de personagens pausterizados muito convenientes – mocinhos, bandidos, heróis, vilões.
Ironicamente, essa ofensiva era auxiliada por não-conservadores equivocados e oportunistas, míopes e mais interessados no seu nicho de mercado. Aqueles que acham que podem “tirar uma casquinha” da ofensiva conservadora. De outro lado, uma notável inércia e baixa reatividade do governo e de seu partido, que pareciam preferir ficar nas ‘cordas’ do ringue. E se tudo continuasse assim (e continuou)? E se, além disso, o cenário econômico ficasse menos favorável? Daí estaria preparado o cenário para uma possível vitória da oposição conservadora, até mesmo para uma provável vitória, se ela conseguisse eliminar suas divisões internas. Era minha previsão, ali no final de 2013. Ainda me parece que o quadro geral está certo. Creio ter errado em pelo menos dois pontos: o prazo (não foi em outubro de 2014) e a intensidade (foi muito mais do que um freio de arrumação).
Ao mesmo tempo, a fúria demolidora revelou-se uma notável abafadora de demolições. O sonhado “que se vayan todos” dos mais ingênuos (ou oportunistas) virou um “volveran casi todos”. Na Argentina, depois que a classe média conseguiu seus dólares do corralito, deixou os piqueteros a ver navios. Na Espanha, depois de meses de acampamento na Puerta del Sol, o resultado foi uma vitória da ultradireita e um programa de arrocho tremendo nos interesses populares – e aos indignados, aparentemente, restou a indignação impotente das suas ‘microutopias’ bem comportadas. Riscos como esses sempre existem, repetiram-se muitas vezes. Aqui, à fúria do “não nos representam” de 2013 se seguiu um “tanto faz” cada vez mais intenso (mas também incerto). E aqueles que pretendiam “tirar uma casquinha” foram varridos do mapa.
É saudável olhar de novo para aqueles quadros de eleitores, que reproduzi mais acima. Não apenas como eleitores. Também como indivíduos colocados em situações vitais precárias e absolutamente indefinidas. O desemprego aumenta assustadoramente – e, como de costume, aumenta em dobro entre os jovens. A pulverização da classe trabalhadora – com a individualização dos contratos, cada vez mais curtos – acelera-se ainda mais com as reformas legislativas. A precariedade de acesso a redes de segurança social piora, por conta também de reformas restritivas, a tal “austeridade”. Nada tem rotina e nenhum animal vive sem alguma rotina.
Esse grande público está hoje disponível para quase tudo, inclusive para o nada, isto é, para o “tanto faz”, a apatia e a recusa de participar em qualquer atividade associativa ou política, inclusive o voto. Criar propostas críveis que canalizem suas demandas é um desafio para os progressistas. Saberemos entendê-lo e inventar saídas? Voltaremos ao tema…
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