quarta-feira, 22 de julho de 2015

A ideologia na obra de Gramsci

Por Augusto Buonicore, no site da Fundação Maurício Grabois:

O que é ideologia para Gramsci? Ele a concebe enquanto "uma concepção de mundo que se manifesta implicitamente na arte, no direito, nas atividades econômicas e em todas as manifestações da vida intelectual e coletiva" (1). No entanto, somente as "ideologias orgânicas" vinculadas a uma das classes fundamentais da sociedade capitalista – a burguesia ou o proletariado – jogariam um papel determinante.

Gramsci estabelece, então, diversos níveis entre a concepção de mundo produzida pelos intelectuais orgânicos das classes dominantes e as ideias, senso comum, predominantes nas classes subalternas, informadas por aquela concepção geral de mundo. Esta diferenciação é engendrada pelas contradições objetivas inerentes à sociedade dividida em classes sociais antagônicas.

As lutas de classes são as razões das constantes fissuras no campo hegemônico da ideologia burguesa. São responsáveis, em certo sentido, pela falta de homogeneidade entre os discursos de dominantes e dominados, apesar de este último, no fundamental, estar preso nos laços da ideologia burguesa que o informa e envolve. "A ideologia difundida nas camadas sociais dirigentes”, afirma Gramsci, “é evidentemente mais elaborada que os seus fragmentos encontrados na cultura popular (...). Na cúpula, a concepção de mundo mais elaborada é a filosofia, ao nível mais baixo, o folclore. Há entre esses dois níveis extremos, o senso comum" (2).

A filosofia, nível superior da ideologia, é sua "chave-mestra", a sua principal força coesiva. É ela que modela e dirige os demais níveis, em especial o senso comum. Dirige respeitando os limites estruturais de classe apresentados anteriormente. Mas se a filosofia deseja cumprir a sua função deve, necessariamente, manter-se ligada às classes subalternas, às massas populares. Sem isto perderia a sua capacidade de direção política e ideológica. Marx já afirmava que as ideias só adquirem força material quando penetram nas massas. Isso também serve para a ideologia burguesa.

O senso comum popular, por sua vez, revela-se um amálgama de diversas ideologias tradicionais e da ideologia da classe dominante. "Cada camada social possui seu próprio senso comum (...), seu traço fundamental mais característico é o de constituir (mesmo em nível de cada cérebro) uma concepção fragmentária, incoerente, inconsequente, conforme a situação social e cultural da multidão", diz Gramsci (3). Em outra passagem escreve: "Na consciência do homem, abandonado à própria espontaneidade, não ainda criticamente consciente de si mesmo, vivem ao mesmo tempo influências ideológicas diferentes, elementos díspares, que se acumularam através das estratificações sociais e culturais diversas." (4).

Gramsci procura, então, compreender os meios pelos quais a ideologia das classes dominantes penetra e ajuda a coesionar as classes subalternas sob a sua direção, impedindo a ruptura violenta do status quo, mantendo coeso o edifício social.

Toda sociedade constitui a sua própria "estrutura ideológica", que é "destinada a manter, defender e desenvolver a frente teórica". Esta estrutura, por sua vez, se compõe de diversos aparelhos, dentre os quais os principais são: a Igreja, a Escola e a Imprensa. Os aparelhos ideológicos são instrumentos de produção e de reprodução da ideologia, são aparelhos que, de uma forma ou de outra, "podem influir, direta ou indiretamente, sobre a opinião pública", sobre o pensar e o fazer das classes sociais subalternas.

Hegemonia e a ideologia

Gramsci tem clareza de que a formação da consciência de classe dos trabalhadores, a construção da ideologia socialista, só pode ser fruto de determinadas relações sociais e históricas concretas. Sabe também da enorme capacidade que tem a ideologia das classes dominantes de influenciar as classes subalternas. Como já dissemos, é a ideologia dominante (burguesa) que, no fundamental, informa e forma a consciência das classes sociais dominadas em tempos normais.

Já Marx afirmava em sua obra A Ideologia Alemã (1845) que as ideias dominantes são as ideias das classes economicamente (e, portanto, politicamente) dominantes, pelo menos, como ressalva Gramsci, nos momentos em que não existe uma crise de hegemonia, ou seja, nos momentos em que a revolução não se apresenta como um problema imediato a ser resolvido pelas massas trabalhadoras. Nesse caso, a ideologia das classes dominantes perde em grande parte a capacidade de coesionar as classes populares.

A preocupação de Gramsci é também a preocupação de Lênin. Para os dois, os trabalhadores precisariam superar a consciência e as práticas exclusivamente econômicas, ou corporativo-sindicais. Seria preciso não deixá-los presos ao espontaneísmo das lutas reivindicatórias imediatas, pois não seria através delas que adviria a sua consciência de classe — a consciência socialista.

"Mas por que o movimento espontâneo, que se dirige no sentido do mínimo esforço (leia-se luta econômica sindical-corporativa), conduz exatamente à dominação da ideologia burguesa? Pela simples razão de que a ideologia burguesa é muito mais antiga que a ideologia socialista e está completamente elaborada e possui meios de difusão infinitamente maiores (...) a ideologia burguesa mais difundida (ressuscitada sob as mais diversas formas) é aquela que se impõe espontaneamente, sobretudo aos operários", afirma Lênin (5). A luta sindical pode estar subsumida à ideologia burguesa.

Não precisamos fazer aqui um minucioso trabalho de comparação entre as obras dos dois autores para notarmos o débito de Gramsci para com as formulações Lênin, particularmente no que diz respeito ao papel desempenhado pela ideologia dominante junto às classes sociais exploradas (ou subalternas) no sentido de enquadrá-las no complexo processo de reprodução das relações capitalistas. Gramsci, no entanto, avança ao descobrir que entre a concepção de mundo compartilhada pelas classes populares, "imposta" pela burguesia, e sua prática social, enquanto classes exploradas, existem contradições insolúveis, pois a sua condição objetiva de classe explorada leva-a cotidianamente a colocar em xeque a hegemonia (o predomínio ideológico) das classes dominantes, ameaçando superá-la.

O problema central dos comunistas é de tornar explícitas, através da “filosofia da práxis” (marxismo), as condições de opressão e exploração que, de uma forma ou de outra, já se deixam transparecer na ação das classes populares, criticando a concepção de mundo burguesa a elas imposta através dos aparelhos ideológicos, estabelecendo enfim a "unidade entre a teoria e a prática, entre a política e a filosofia".

Esta nova e revolucionária concepção de mundo, representada pelo marxismo, deve partir das experiências concretas das massas. Deve partir da sua compreensão, ainda que fragmentária, da realidade, do senso comum, não para mantê-las presas nele, mas para criticá-lo, depurá-lo das influências burguesas, para unificá-las e elevá-las a um nível superior, ao “bom senso” (concepção proletária), construindo uma "visão crítica de mundo".
Para Gramsci, "somente a filosofia da práxis é capaz de unificar e elevar as pessoas simples ao nível de uma visão de mundo superior", pois, ao contrário das outras filosofias, em especial a católica, "ela não tende a manter as pessoas simples em sua filosofia primitiva, o senso comum, mas tende a conduzi-las a uma concepção superior de vida” (6).

Uma pergunta ainda fica: Se a nova concepção de mundo, a ideologia socialista, como nos diz Lênin, não nasce espontaneamente das lutas econômicas dos operários, de onde ela vem? Ela só poderia vir de fora da relação direta entre operário e patrão no interior da fábrica. O líder da socialdemocracia alemã, Karl Kautsky, já afirmava: "A consciência socialista de hoje não pode surgir senão de um profundo conhecimento científico (...). Assim, a consciência socialista é um elemento importado de fora (...) e não algo que surgiu espontaneamente" (7).
Mas, quem são os portadores desta nova ideologia? São os teóricos do socialismo, os intelectuais orgânicos da classe operária. Neste processo, os operários socialistas participam, mas não na qualidade de simples operários e sim como intelectuais orgânicos da sua própria classe (8).

A tarefa de construção de uma hegemonia socialista, acredita Gramsci, não poderá ser obra de um homem, de uma pessoa singular, mas de "um organismo no qual já tenha tido início a concretização de uma vontade coletiva reconhecida e afirmada parcialmente na ação. Esse organismo já foi dado pelo desenvolvimento histórico e é o partido político, a primeira célula onde estão contidos os germes da vontade coletiva que tendem a tornar-se universais." (9). Refere-se aqui ao Partido Comunista.

Todavia, a grande diferenciação entre a estrutura de um partido comunista e das demais organizações é que ele, apesar de dividido em níveis, busca superar esta divisão entre dirigentes e dirigidos, entre os grandes e pequenos intelectuais. Se, na sociedade, a filosofia da práxis busca elevar as classes subalternas do senso comum ao nível do bom senso (a filosofia), no seio do partido comunista ela busca capacitar os militantes de base a exercerem funções de dirigentes políticos.

Por isto, uma das tarefas principais desse partido consiste em superar os resíduos corporativos (os momentos egoístico-passionais) através de um "processo catártico". Superar os interesses mesquinhos, o estreito "espírito de corpo", através da ação política independente de classe. "No partido político os elementos de um grupo social econômico superam esse momento (corporativo, egoístico-passional) de seu desenvolvimento histórico e se tornam agentes de atividades gerais, de caráter nacional e internacional" (9). Continua: "Um comerciante não entra num partido para fazer comércio, nem um industrial para produzir nada." (10).

Os intelectuais e o problema da hegemonia

O destaque que Gramsci dá aos intelectuais está intimamente ligado à importância que tem para ele o problema da hegemonia. Não é à toa que ele os vê como "funcionários da hegemonia". Eles “não são um grupo social autônomo (...). (Os intelectuais) dão homogeneidade à classe dominante (...). Todo grupo social deve elaborar a sua própria hegemonia político-cultural, deve criar (...) seus próprios intelectuais" (11).

Mas qual é o conceito de intelectual para Gramsci? Em um texto bastante conhecido chega a afirmar: "Todos os homens são intelectuais (...), mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectual"; segue ele: "quando se distingue entre intelectuais e não intelectuais faz-se referência, na realidade, tão somente à imediata função social da categoria profissional específica, se na elaboração intelectual ou se no esforço muscular nervoso" (12). Busca assim captar o homem nas suas múltiplas dimensões, pois seria impossível separar o "homo faber" do "homo sapiens", embora tenha sido esta a tentativa da burguesia industrial e seus ideólogos durante todo o século XX.

"Mesmo no mais mecânico e degradado (trabalho físico) existe um mínimo de qualificação técnica, isto é, um mínimo de atividade intelectual criadora" (13). Portanto, Gramsci superou a visão tradicional de intelectual que sempre foi traduzida na figura do grande literato, do filósofo e do artista, ou seja, um elemento da elite cultural. Pare ele, em todo trabalho humano, até no mais mecânico deles, está presente a necessidade de certo esforço intelectual, por isso todo homem (e mulher) é também um(a) intelectual.

Entretanto, acredito que o conceito de intelectual de Gramsci não está imune a certas ambiguidades – ou antinomias, como afirmaria Perry Anderson. Numa leitura atenta podemos notar que: ao mesmo tempo em que amplia ao infinito o conceito de intelectual (homem = intelectual), ele sente necessidade de lhe impor alguns limites. Primeiro explode o conceito tradicional para depois resgatá-lo em outro patamar. Nesta passagem fica mais claro que antinomia seja essa: "Todos os homens são intelectuais (...), mas nem todos desempenham na sociedade a função de intelectual’, e mesmo esses poucos se dividem numa verdadeira hierarquia de 'intelectuais'". E continua: "Existe uma hierarquia qualitativa entre os intelectuais, essa hierarquia exclui aqueles que (...) não exercem funções de intelectual: os agentes subalternos, que não têm função de direção” (14). Estes setores, os agentes subalternos, não teriam o papel central na construção da hegemonia.

Referindo-se ao Partido Comunista, afirmou que "todos os seus membros devem ser considerados como intelectuais (...), pois importa sim a função que é diretiva e organizativa, isto é, educativa e intelectual." (15). Ou seja, aqui também relaciona o conceito de intelectual a uma função dirigente. Qualquer elemento que exerça na sociedade o papel de educador e de direção pode ser considerado um intelectual.

Os intelectuais propriamente ditos dividem-se segundo o grau de eficiência enquanto agentes da hegemonia: na cúpula, os criadores da nova concepção de mundo e dos seus diversos ramos, como as ciências, filosofia, arte, direito; no escalão inferior, aqueles que estão encarregados de administrar ou divulgar esta ideologia (16). Gramsci faz uma divisão entre aqueles que produzem a teoria e a cultura e aqueles que, de uma forma ou de outra, as reproduzem. Isto tem consequência na elaboração de uma estratégia de luta ideológica realizada pelos comunistas para superação da hegemonia das classes exploradoras.

"Na frente ideológica a derrota dos auxiliares e adeptos menores tem uma consequência quase negligenciável, é uma luta em que é preciso reservar os golpes para os mais eminentes. Senão confunde-se o jornal como o trabalho científico. É preciso abandonar as casuísticas da política que toca os jornais" (17). Mais uma vez podemos sentir a influência do pensamento de Lênin. Em uma de suas cartas endereçadas a seu amigo Máximo Gorki, o revolucionário russo afirma: "Se os pequenos artigos, periódicos (semanais ou quinzenais) nada vos dizem, se vos sentis bem trabalhar numa grande obra, naturalmente que não vos aconselharei a interrompê-lo. Ela será mais útil" (18).

Obs. A bibliografia seguirá na segunda e última parte deste artigo.

* Este texto foi escrito no início da década de 1980 e teve uma de suas versões reduzidas publicada na revista Princípios nº21, de maio-julho de 1991.

** Augusto Buonicore é historiador, secretário-geral da Fundação Maurício Grabois. E autor dos livros Marxismo, história e revolução brasileira: encontros e desencontros e Meu verbo é lutar: a vida e o pensamento de João Amazonas, ambos pela Editora Anita Garibaldi.


Notas

(1) GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História, p. 16.
(2) PORTELLI, Hugues. Gramsci e o Bloco Histórico, p. 23.
(3) GRAMSCI, A. apud H. PORTELLI. Gramsci e o Bloco Histórico, p. 26.
(4) GRUPPI, L. O Conceito de Hegemonia, p.6.
(5) LÊNIN, V. I. Que Fazer?, p. 33
(6) GRAMSCI, A. Concepção Dialética da História, p. 10-11.
(7) KAUTSKY, K. apud, LÊNIN, V. I. Que Fazer?, p. 31.
(8) LÊNIN, V. I. Que Fazer?, p. 31.
(9) GRAMSCI, A. Maquiavel, a Política do Estado Moderno, p. 208.
(10) Ibid.
(11) GRUPPI, L. O Conceito de Hegemonia em Gramsci, p. 80.
(12) GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura, p. 7
(13) GRUPPI, L. Tudo começou com Maquiavel, p. 84.
(14) PORTELLI, H. Gramsci e o Bloco Histórico, p. 96.
(15) GRAMSCI, A. Os intelectuais e a organização da cultura, p. 15.
(16) Idem, p. 97.
(17) GRAMSCI, A. A Concepção Dialética da História, p. 157.
(18) LÊNIN, V. I. apud PALMER, J. M. Lenine: Arte e a Revolução, p. 177.

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