Por Vinícius Gomes Melo, na revista Caros Amigos:
Lobby. A própria palavra parece trazer em si uma carga negativa, como se os profissionais da área — os “infames” lobistas — fossem os responsáveis por eventuais relacionamentos pecaminosos entre os setores público e privado de um país, ao se esgueirarem, na imaginação popular, nos bastidores da política por entre os corredores do poder e atrás de portas fechadas.
Há certa discordância quanto às origens do termo, que pode ser datado em séculos atrás. Algumas das teorias têm o Hotel Willard, em Washington, D.C., como cenário — mais precisamente, seu lobby. Reza a lenda que o então presidente Ulysses S. Grant costumava frequentá-lo às noites para apreciar um conhaque e fumar seus cigarros. Nisso, muitos representantes de variados setores de interesse passaram a também visitar o local para ter acesso ao presidente e, assim, buscar influenciar suas decisões políticas. Todavia, a origem mais provável veio da Inglaterra, onde os corredores - ou lobbies - das casas legislativas do Parlamento britânico eram frequentados pelos cidadãos que encontravam-se com os parlamentares, antes ou depois das sessões, buscando persuadi -los e influenciar suas posições para aprovarem ou reprovarem determinadas ações públicas.
Para escapar de eventuais perseguições, o termo “Relações Governamentais” veio para trazer um verniz mais agradável aos olhos e menos ofensivo aos ouvidos. Até mesmo nos Estados Unidos, um dos países mais antigos e abertos à prática, a Liga Americana dos Lobistas decidiu, em fins de 2013, mudar seu nome para Associação de Profissionais de Relações com Governos. No Brasil, o termo foi adotado seis anos antes dos norte-americanos, com a fundação da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig).
Entretanto, com um olhar mais atento e livre de um julgamento prévio, pode-se perceber que a prática do lobby não significa, necessariamente, algo prejudicial à sociedade. No filme Lincoln, de Steven Spielberg, há uma cena em que o presidente norte-americano, interpretado por Daniel Day-Lewis, encontra-se secretamente com três homens e conversam sobre alguns congressistas que poderiam ser influenciados a votarem a favor de uma emenda constitucional encabeçada pelo presidente. Essa era a 13ª Emenda, que aboliu a escravidão em todos os estados do País.
Mas então por que o lobby parece ser a personificação da má influência nas decisões políticas de uma cidade, estado ou país?
“Talvez a resposta mais apropriada seja ao que ele está associado, que são as ações de corrupção e o tráfico de influência”, afirma Manoel Santos, professor de Ciências Políticas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Por isso o termo lobby acaba ganhando uma conotação pejorativa. Mas uma reflexão minimamente informada deveria levar a conclusão de que nem todas as ações políticas podem ser classificadas dessa maneira.”
“Primeiramente, é preciso esclarecer que o tráfico de influência é crime”, explica Andréa Cristina Oliveira Gozetto, coordenadora Acadêmica do MBA em Relações Governamentais da FGV MGM e autora de diversos artigos sobre o tema. “Esse delito ocorre quando alguém, usufruindo de sua influência sobre ato praticado por funcionário público no exercício de sua função, solicita, exige, cobra ou obtém vantagem ou promessa de vantagem, para si ou para terceiros.” Segundo os especialistas, tal descrição não corresponde à atividade lobista.
Para que toda essa política de bastidores não esteja além do escrutínio da sociedade, e para que se lance luz à ação dos grupos de interesse, a saída mais aceita é a sua regulamentação. De acordo com o deputado Carlos Zarattini (PT-SP), autor da PL 1202/2007, considerada, até o momento, o projeto mais completo sobre a regulamentação do lobby, a aprovação da lei é de extrema necessidade, pois o fato é que o “lobby existe, assim como a relação entre o setor público e as empresas privadas de diferentes setores econômicos. E essa relação precisa ser transparente e toda sociedade precisa saber que ela existe”, afirma o deputado.
Zarattini reconhece que é tênue a linha que separa essas relações governamentais e o tráfico de influência, por isso, ele prefere dividir a ação de grupos de interesse como atos políticos e atos de corrupção.
“Vou te dar um exemplo, imagina um deputado que é ligado intrinsecamente a um setor econômico, digamos um empresário rural que se elegeu deputado. Evidentemente que ele tentará aprovar leis que interessam ao seu setor, mas nós precisamos entender isso como um ato político. Se a gente entender que ele está legislando em causa própria, nós entenderemos isso como um ato irregular e até criminoso. Então, uma coisa é quando um deputado atua de forma legítima em torno de questões que ele acha que são melhores para o País, para a economia, para o povo. Outra é quando ele age, às vezes até sem ter concordância com o projeto, em benefício de um determinado setor, com o objetivo de receber algum pagamento em troca”, explica Zarattini.
Assim sendo, o maior objetivo de uma lei que regulamente o lobby é trazer transparência a algo que já faz parte do meio político do País. “Dependendo dos moldes que se desse a essa regulamentação, ela seria simplesmente prestar informações sobre o que estão fazendo”, afirma o professor Manoel Santos.
Andréa Gozetto concorda: “Com a regulamentação do lobby, os agentes privados informariam quais agentes públicos estariam acessando e com que propósito. Um simples registro daqueles que pretendem influenciar o curso do processo decisório estatal já garantiria maior transparência, possibilitando, assim, alguma prestação de contas à sociedade como um todo”.
Ou seja, a regulamentação não pretende ser uma ferramenta de combate ao tráfico de influência nem à corrupção. “O que vai impedir isso é o cumprimento do que já está tipificado na lei penal e aspectos relacionados à investigação de quem, porventura, tenha sua conduta identificada como tal”, explica Santos.
Outro argumento em defesa do lobby é que sua própria existência torna as esferas públicas mais acessíveis à população, em termos de aumentar a representatividade de variados setores. Entretanto, é nessa questão que se gera outra discussão: alguns grupos com recursos financeiros maiores não conseguiriam ser mais influentes no meio político?
A configuração de tal cenário se dá por uma assimetria informacional. Ou seja, em um mundo em que é possível contar com uma informação antecipada — que é diferente de “informação privilegiada” — por ter contatos em pontos estratégicos da administração pública, pressupõe-se que grupos com maiores financiamentos para suas ações possam ser mais efetivos ao defenderem seus interesses. Para Gozetto, todavia, os deficits de ação coletiva dos grupos não serão resolvidos com a regulamentação do lobby. “Nenhuma regulamentação tem esse poder e nem esse propósito. Os grupos não são igualmente capazes de se organizar e arregimentar recursos para a defesa de interesses”, explica. “É verdade também que alguns grupos possuem maior financiamento para suas ações que outros. Quando se conjuga essas duas questões, podemos ter um desequilíbrio de influência em favor de lobbies que defendem interesses particularistas. Este desequilíbrio pode levar os tomadores de decisão a conceder privilégios injustificáveis — ainda que não ilegais — a esses grupos”.
No entanto, Gozetto ressalta que é de responsabilidade do membro do poder público tomar a melhor decisão. Afinal, em última instância, o profissional que exerce a atividade de lobby não possui e nunca possuirá a mesma legitimidade de um representante eleito. “Se o tomador de decisão leva em consideração todos os interesses legítimos e relevantes em jogo, esse desequilíbrio não deveria existir”, afirma. Entretanto, essa preocupação não se limita ao Brasil. “Há experiên cias de lobby no Parlamento Europeu que procuram exatamente minimizar essa assimetria de poder, que está ligada a capacidade econômica de seus atores”, afirma Santos. “Por exemplo, uma das formas, se dá financiando determinados grupos hipossuficientes em termos financeiros e com baixo grau de organização para que estes também participem do processo.”
Segundo o professor, nesse sentido, a regulamentação pode caminhar para uma direção de, pelo menos, facilitar o acesso à informação acerca das relações políticas e das interações dos diferentes interesses em torno de uma determinada questão. “Ao facilitar o acesso a informação, cria-se também oportunidades para que um determinado grupo ou setor da sociedade com menor capacidade financeira possa participar do processo decisório”, afirma.
No Brasil
Teoricamente, o lobby é quase um direito constitucional de todo cidadão e cidadã. Nos incisos do Artigo 5º da Constituição de 1988, há uma série de direitos que legalizam a atividade lobista — apesar de não contar com dispositivos regulamentários. Como exemplo, o inciso XVII, diz que “é plena a liberdade de associação para fins lícitos”, seguindo para o XXI, que estabelece que “as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente”.
Todavia, a primeira tentativa de se regulamentar a atividade do lobby no Brasil veio do senador Marco Maciel, em 1984, antecedendo a Constituição. Mas após idas e vindas ao longo dos anos, o projeto acabou por ser arquivado em 2003. Levaria mais quatro anos até que um novo projeto de lei sobre o tema tivesse sua tramitação iniciada, a PL de Zarattini — apesar de só voltar a ganhar atenção quase dez anos depois, após receber um substitutivo da deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ), relatora do projeto.
Tal regulamentação também tem sido tema de debate no Senado Federal. Em setembro passado, o senador Romero Jucá apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 47/2016) que já foi enviada à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), onde ainda aguarda um relator ser designado.
No mundo
“Em tese, todo debate (sobre o tema) é marcado pelo primeiro modelo de regulamentação, que é o norte-americano”, afirma Santos. “Mas esse modelo já começa a apresentar problemas nos próprios Estado Unidos. A Lei de Transparência do Lobby (LDA, sigla em inglês) é de 1995 e sua última revisão foi feita em 2007. De lá pra cá, não só o número de registros diminuiu, mas também o valor declarado das atividades — nos Estados Unidos, é necessário declarar quanto se gastou com essas atividades. Em 2013, o número de lobistas registrados estava em pouco mais de 12 mil — o menor número desde 2002. “Desconfia- -se que uma regulamentação muito rigorosa acabe virando um incentivo para a indústria do lobby e da representação de interesses, fazendo com que estas migrem para a informalidade”, pondera Santos, ou como o jornalista Lee Fang, em matéria para a revista The Nation, descreveu: tornado-se subterrâneo.
Enquanto trabalhava para se tornar presidente, em 2008, Barack Obama discursou várias vezes prometendo diminuir o poder dos lobistas: “Nós estamos contra a crença que está tudo bem lobistas dominarem nosso governo; que eles são apenas parte do sistema em Washington. Mas nós sabemos que a má influência dos lobistas é parte do problema e essa eleição é nossa chance para dizer que nós não os deixaremos mais ficar em nosso caminho”.
Em seu primeiro mês como presidente, Obama assinou uma ordem executiva dizendo que lobistas registrados não seriam bem-vindos em sua administração. Mas ele logo precisou voltar atrás, emitindo, ao longo dos anos, diversas exceções para tornar os não registrados em personas non grata na Casa Branca. Essa foi a única ação significativa de Obama para coibir a influência dos lobistas. Todavia, ela foi vista como um fracasso — na realidade, acabou tornando as coisas piores, pois encorajou muitos lobistas a simplesmente se desregistrarem, liberando-os da obrigatoriedade de prestação de contas.
Então, se no papel os números sugerem que a indústria dos lobistas está desaparecendo, a realidade na capital mostra que ela está crescendo, porém, nas “sombras”. Um dos exemplos mais claros dado por Fang foi que, durante a paralisação do governo forçada pelos republicanos, no final de 2013, observava-se, nos degraus do Capitólio, pequenos grupos compostos de homens e mulheres usando uma indumentária executiva, trocando cortesias com membros do Congresso. “A cidade — com suas centenas de milhares de funcionários públicos enviados para casa por não poderem trabalhar — estava longe de estar morta: no Capitólio, a verdadeira máquina financeira de Washington e a venda de acesso e influência política iam juntos em velocidade máxima.” A maioria dessas pessoas, não eram lobistas registrados. Entre eles, escreveu Fang, estava Tom Daschle, ex-congressista por Dakota do Sul, que se tornou um dos mais famosos lobistas não registrados da cidade — tanto que até mesmo criou-se um termo para a tecnicidade que permite esse “conselheiro político” ser a ponte entre líderes políticos e variados grupos de interesses corporativos: chama-se a “Brecha Daschle”.
Em 2008, Daschle era o principal nome para tornar-se o secretário da Saúde e Serviços Humanos da administração Obama, mas as questões levantadas sobre seus impostos implodiram tal pretensão. Isso não impediu, porém, que o ex-congressista continuasse a fazer política — chegando a participar de reuniões na Casa Branca e atuando com legisladores na formulação de políticas para o atendimento médico. Daschle possui uma consultoria, a DLA Piper, que tem em sua cartela de clientes algumas das principais corporações médicas do país. Ele, no entanto, se recusa a registrar suas atividades — e a parte mais irônica sobre isso, é que ele tem amparo legal para fazer isso.
Quando a lei foi formulada, ela incluiu em sua exigência para registrar-se como lobista um teste de tripla abordagem. De acordo com o teste, um lobista é um indivíduo que recebe pelo menos US$ 2,5 mil por seus serviços de lobby, durante três meses; tem mais de um contato lobista por seus serviços e, por fim, gasta no mínimo 20% de seu tempo, durante três meses, fazendo “contatos para lobby”.
Ironicamente, esse teste permite que os maiores defensores de grupos de interesse ignorem a lei de transparência. Se um lobista puder argumentar que pelo menos um dos três prognósticos não é aplicado a ele, ele não é obrigado a se registrar. Além do mais, se eles estão apenas coletando informações, eles não podem ser, pela lei, considerados lobistas.
Não é à toa que, enquanto lobistas registrados reportam seus pagamentos, aqueles que desviam do sistema recebem os melhores pagamentos. “Uma lei sujeita a brechas; fraca supervisão; o crescente desenvolvimento de sofisticadas estratégias que contrata terceiros ‘validadores’ e cria companhias artificiais; junto de uma ordem executiva da administração Obama que deu a muitos na profissão o desincentivo para se registrar — todas essas forças juntas produziram um quase total colapso do sistema que foi criado para manter o controle do lobby em nível federal. Como resultado, o povo norte-americano está ficando cada vez mais no escuro sobre quem está mandando dentro do governo”, resumiu Fang.
Isso não é só um problema nos EUA. De uma maneira ou de outra, em todo sistema político que tentou regulamentar a atividade, algumas partes desse segmento ficaram fora do radar. Para Santos, o Brasil não será exceção. “Até porque o contato com um político, com um gestor público, é um direito previsto pela Constituição. Então não se pode impedir que essas pessoas se encontrem. Numa democracia, é desejável que setores da sociedade interajam com agentes públicos — que um parlamentar, quando for tomar uma decisão, ouça opiniões de diferentes grupos.”
Por isso, os especialistas não usam o modelo norte-americano como o melhor exemplo a ser replicado. Para o professor, o Chile é um caso interessante a ser estudado pelas autoridades brasileiras. “O Chile regulamentou essa atividade em 2014 e é uma regulamentação que não é rígida, mas atende a um aspecto importante: ela registra todas as reuniões entre setores privados ou organizações da sociedade civil com os agentes públicos, e disponibiliza essas informações”, afirma Santos. “Assim, fica claro quem encontrou com quem, quem falou sobre o quê e isso aumenta a informação de como se dá a relação entre grupos de interesses e o setor público”.
Foi um longo debate e ainda há muita controvérsia sobre o assunto, porém, para o professor, não há dúvida de que hoje existe muito mais transparência em como são realizadas as relações governamentais do que se tinha antes no país vizinho. “Então se se cria uma lei que induz à informalidade — como dos Estados Unidos —, ao invés de uma que ajude a produzir informação, estamos indo na contramão”, diz Santos. Mas se, à primeira vista, a defesa pela falta de rigor quanto aos requerimentos para a prática da atividade sugere uma regulamentação frágil, o modelo de regulamentação canadense — um consenso entre os especialistas sobre modelo ideal —, indica o contrário. No Canadá, o objetivo principal da regulamentação é o registro dos lobistas. “Como o seu foco não é o monitoramento da atividade dos lobistas, a legislação não requer a divulgação de toda a informação financeira fornecida pelos lobbies, assim como também não responsabiliza os políticos por assegurar que aqueles que tentem influenciá-los se registrem”, explica Gozetto.
“Todos os lobistas são obrigados a fornecer informações detalhadas acerca de si mesmos e de seus clientes. O registro é feito pela internet e eles pagam uma taxa para registrar-se. Aos cidadãos é permitido acesso livre aos registros de todos os lobistas”. Ou seja, qualquer pessoa pode saber o nome e o endereço comercial do lobista e de seus clientes, assim como das filiais e subsidiárias. Se o indivíduo for um ex-dirigente estatal, constará uma descrição dos órgãos que dirigiu e em que período; descrição exaustiva sobre as matérias de seu interesse, incluindo a proposta legislativa específica; o nome de cada departamento ou outra instituição governamental que seja alvo de seu lobby; a fonte e quantia de dinheiro concedida ao cliente pelo governo e as técnicas de comunicação utilizadas. “Quanto à regulamentação do lobby, eu tenho apenas uma certeza: se vamos regulamentar a atividade, que seja a nossa maneira. Respeitando o desenho de nossas instituições, de nossa história e de nossa cultura. O grande desafio que está posto é o de construir uma regulamentação genuinamente brasileira”, conclui Gozetto.
Lobby. A própria palavra parece trazer em si uma carga negativa, como se os profissionais da área — os “infames” lobistas — fossem os responsáveis por eventuais relacionamentos pecaminosos entre os setores público e privado de um país, ao se esgueirarem, na imaginação popular, nos bastidores da política por entre os corredores do poder e atrás de portas fechadas.
Há certa discordância quanto às origens do termo, que pode ser datado em séculos atrás. Algumas das teorias têm o Hotel Willard, em Washington, D.C., como cenário — mais precisamente, seu lobby. Reza a lenda que o então presidente Ulysses S. Grant costumava frequentá-lo às noites para apreciar um conhaque e fumar seus cigarros. Nisso, muitos representantes de variados setores de interesse passaram a também visitar o local para ter acesso ao presidente e, assim, buscar influenciar suas decisões políticas. Todavia, a origem mais provável veio da Inglaterra, onde os corredores - ou lobbies - das casas legislativas do Parlamento britânico eram frequentados pelos cidadãos que encontravam-se com os parlamentares, antes ou depois das sessões, buscando persuadi -los e influenciar suas posições para aprovarem ou reprovarem determinadas ações públicas.
Para escapar de eventuais perseguições, o termo “Relações Governamentais” veio para trazer um verniz mais agradável aos olhos e menos ofensivo aos ouvidos. Até mesmo nos Estados Unidos, um dos países mais antigos e abertos à prática, a Liga Americana dos Lobistas decidiu, em fins de 2013, mudar seu nome para Associação de Profissionais de Relações com Governos. No Brasil, o termo foi adotado seis anos antes dos norte-americanos, com a fundação da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig).
Entretanto, com um olhar mais atento e livre de um julgamento prévio, pode-se perceber que a prática do lobby não significa, necessariamente, algo prejudicial à sociedade. No filme Lincoln, de Steven Spielberg, há uma cena em que o presidente norte-americano, interpretado por Daniel Day-Lewis, encontra-se secretamente com três homens e conversam sobre alguns congressistas que poderiam ser influenciados a votarem a favor de uma emenda constitucional encabeçada pelo presidente. Essa era a 13ª Emenda, que aboliu a escravidão em todos os estados do País.
Mas então por que o lobby parece ser a personificação da má influência nas decisões políticas de uma cidade, estado ou país?
“Talvez a resposta mais apropriada seja ao que ele está associado, que são as ações de corrupção e o tráfico de influência”, afirma Manoel Santos, professor de Ciências Políticas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). “Por isso o termo lobby acaba ganhando uma conotação pejorativa. Mas uma reflexão minimamente informada deveria levar a conclusão de que nem todas as ações políticas podem ser classificadas dessa maneira.”
“Primeiramente, é preciso esclarecer que o tráfico de influência é crime”, explica Andréa Cristina Oliveira Gozetto, coordenadora Acadêmica do MBA em Relações Governamentais da FGV MGM e autora de diversos artigos sobre o tema. “Esse delito ocorre quando alguém, usufruindo de sua influência sobre ato praticado por funcionário público no exercício de sua função, solicita, exige, cobra ou obtém vantagem ou promessa de vantagem, para si ou para terceiros.” Segundo os especialistas, tal descrição não corresponde à atividade lobista.
Para que toda essa política de bastidores não esteja além do escrutínio da sociedade, e para que se lance luz à ação dos grupos de interesse, a saída mais aceita é a sua regulamentação. De acordo com o deputado Carlos Zarattini (PT-SP), autor da PL 1202/2007, considerada, até o momento, o projeto mais completo sobre a regulamentação do lobby, a aprovação da lei é de extrema necessidade, pois o fato é que o “lobby existe, assim como a relação entre o setor público e as empresas privadas de diferentes setores econômicos. E essa relação precisa ser transparente e toda sociedade precisa saber que ela existe”, afirma o deputado.
Zarattini reconhece que é tênue a linha que separa essas relações governamentais e o tráfico de influência, por isso, ele prefere dividir a ação de grupos de interesse como atos políticos e atos de corrupção.
“Vou te dar um exemplo, imagina um deputado que é ligado intrinsecamente a um setor econômico, digamos um empresário rural que se elegeu deputado. Evidentemente que ele tentará aprovar leis que interessam ao seu setor, mas nós precisamos entender isso como um ato político. Se a gente entender que ele está legislando em causa própria, nós entenderemos isso como um ato irregular e até criminoso. Então, uma coisa é quando um deputado atua de forma legítima em torno de questões que ele acha que são melhores para o País, para a economia, para o povo. Outra é quando ele age, às vezes até sem ter concordância com o projeto, em benefício de um determinado setor, com o objetivo de receber algum pagamento em troca”, explica Zarattini.
Assim sendo, o maior objetivo de uma lei que regulamente o lobby é trazer transparência a algo que já faz parte do meio político do País. “Dependendo dos moldes que se desse a essa regulamentação, ela seria simplesmente prestar informações sobre o que estão fazendo”, afirma o professor Manoel Santos.
Andréa Gozetto concorda: “Com a regulamentação do lobby, os agentes privados informariam quais agentes públicos estariam acessando e com que propósito. Um simples registro daqueles que pretendem influenciar o curso do processo decisório estatal já garantiria maior transparência, possibilitando, assim, alguma prestação de contas à sociedade como um todo”.
Ou seja, a regulamentação não pretende ser uma ferramenta de combate ao tráfico de influência nem à corrupção. “O que vai impedir isso é o cumprimento do que já está tipificado na lei penal e aspectos relacionados à investigação de quem, porventura, tenha sua conduta identificada como tal”, explica Santos.
Outro argumento em defesa do lobby é que sua própria existência torna as esferas públicas mais acessíveis à população, em termos de aumentar a representatividade de variados setores. Entretanto, é nessa questão que se gera outra discussão: alguns grupos com recursos financeiros maiores não conseguiriam ser mais influentes no meio político?
A configuração de tal cenário se dá por uma assimetria informacional. Ou seja, em um mundo em que é possível contar com uma informação antecipada — que é diferente de “informação privilegiada” — por ter contatos em pontos estratégicos da administração pública, pressupõe-se que grupos com maiores financiamentos para suas ações possam ser mais efetivos ao defenderem seus interesses. Para Gozetto, todavia, os deficits de ação coletiva dos grupos não serão resolvidos com a regulamentação do lobby. “Nenhuma regulamentação tem esse poder e nem esse propósito. Os grupos não são igualmente capazes de se organizar e arregimentar recursos para a defesa de interesses”, explica. “É verdade também que alguns grupos possuem maior financiamento para suas ações que outros. Quando se conjuga essas duas questões, podemos ter um desequilíbrio de influência em favor de lobbies que defendem interesses particularistas. Este desequilíbrio pode levar os tomadores de decisão a conceder privilégios injustificáveis — ainda que não ilegais — a esses grupos”.
No entanto, Gozetto ressalta que é de responsabilidade do membro do poder público tomar a melhor decisão. Afinal, em última instância, o profissional que exerce a atividade de lobby não possui e nunca possuirá a mesma legitimidade de um representante eleito. “Se o tomador de decisão leva em consideração todos os interesses legítimos e relevantes em jogo, esse desequilíbrio não deveria existir”, afirma. Entretanto, essa preocupação não se limita ao Brasil. “Há experiên cias de lobby no Parlamento Europeu que procuram exatamente minimizar essa assimetria de poder, que está ligada a capacidade econômica de seus atores”, afirma Santos. “Por exemplo, uma das formas, se dá financiando determinados grupos hipossuficientes em termos financeiros e com baixo grau de organização para que estes também participem do processo.”
Segundo o professor, nesse sentido, a regulamentação pode caminhar para uma direção de, pelo menos, facilitar o acesso à informação acerca das relações políticas e das interações dos diferentes interesses em torno de uma determinada questão. “Ao facilitar o acesso a informação, cria-se também oportunidades para que um determinado grupo ou setor da sociedade com menor capacidade financeira possa participar do processo decisório”, afirma.
No Brasil
Teoricamente, o lobby é quase um direito constitucional de todo cidadão e cidadã. Nos incisos do Artigo 5º da Constituição de 1988, há uma série de direitos que legalizam a atividade lobista — apesar de não contar com dispositivos regulamentários. Como exemplo, o inciso XVII, diz que “é plena a liberdade de associação para fins lícitos”, seguindo para o XXI, que estabelece que “as entidades associativas, quando expressamente autorizadas, têm legitimidade para representar seus filiados judicial ou extrajudicialmente”.
Todavia, a primeira tentativa de se regulamentar a atividade do lobby no Brasil veio do senador Marco Maciel, em 1984, antecedendo a Constituição. Mas após idas e vindas ao longo dos anos, o projeto acabou por ser arquivado em 2003. Levaria mais quatro anos até que um novo projeto de lei sobre o tema tivesse sua tramitação iniciada, a PL de Zarattini — apesar de só voltar a ganhar atenção quase dez anos depois, após receber um substitutivo da deputada Cristiane Brasil (PTB-RJ), relatora do projeto.
Tal regulamentação também tem sido tema de debate no Senado Federal. Em setembro passado, o senador Romero Jucá apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC 47/2016) que já foi enviada à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), onde ainda aguarda um relator ser designado.
No mundo
“Em tese, todo debate (sobre o tema) é marcado pelo primeiro modelo de regulamentação, que é o norte-americano”, afirma Santos. “Mas esse modelo já começa a apresentar problemas nos próprios Estado Unidos. A Lei de Transparência do Lobby (LDA, sigla em inglês) é de 1995 e sua última revisão foi feita em 2007. De lá pra cá, não só o número de registros diminuiu, mas também o valor declarado das atividades — nos Estados Unidos, é necessário declarar quanto se gastou com essas atividades. Em 2013, o número de lobistas registrados estava em pouco mais de 12 mil — o menor número desde 2002. “Desconfia- -se que uma regulamentação muito rigorosa acabe virando um incentivo para a indústria do lobby e da representação de interesses, fazendo com que estas migrem para a informalidade”, pondera Santos, ou como o jornalista Lee Fang, em matéria para a revista The Nation, descreveu: tornado-se subterrâneo.
Enquanto trabalhava para se tornar presidente, em 2008, Barack Obama discursou várias vezes prometendo diminuir o poder dos lobistas: “Nós estamos contra a crença que está tudo bem lobistas dominarem nosso governo; que eles são apenas parte do sistema em Washington. Mas nós sabemos que a má influência dos lobistas é parte do problema e essa eleição é nossa chance para dizer que nós não os deixaremos mais ficar em nosso caminho”.
Em seu primeiro mês como presidente, Obama assinou uma ordem executiva dizendo que lobistas registrados não seriam bem-vindos em sua administração. Mas ele logo precisou voltar atrás, emitindo, ao longo dos anos, diversas exceções para tornar os não registrados em personas non grata na Casa Branca. Essa foi a única ação significativa de Obama para coibir a influência dos lobistas. Todavia, ela foi vista como um fracasso — na realidade, acabou tornando as coisas piores, pois encorajou muitos lobistas a simplesmente se desregistrarem, liberando-os da obrigatoriedade de prestação de contas.
Então, se no papel os números sugerem que a indústria dos lobistas está desaparecendo, a realidade na capital mostra que ela está crescendo, porém, nas “sombras”. Um dos exemplos mais claros dado por Fang foi que, durante a paralisação do governo forçada pelos republicanos, no final de 2013, observava-se, nos degraus do Capitólio, pequenos grupos compostos de homens e mulheres usando uma indumentária executiva, trocando cortesias com membros do Congresso. “A cidade — com suas centenas de milhares de funcionários públicos enviados para casa por não poderem trabalhar — estava longe de estar morta: no Capitólio, a verdadeira máquina financeira de Washington e a venda de acesso e influência política iam juntos em velocidade máxima.” A maioria dessas pessoas, não eram lobistas registrados. Entre eles, escreveu Fang, estava Tom Daschle, ex-congressista por Dakota do Sul, que se tornou um dos mais famosos lobistas não registrados da cidade — tanto que até mesmo criou-se um termo para a tecnicidade que permite esse “conselheiro político” ser a ponte entre líderes políticos e variados grupos de interesses corporativos: chama-se a “Brecha Daschle”.
Em 2008, Daschle era o principal nome para tornar-se o secretário da Saúde e Serviços Humanos da administração Obama, mas as questões levantadas sobre seus impostos implodiram tal pretensão. Isso não impediu, porém, que o ex-congressista continuasse a fazer política — chegando a participar de reuniões na Casa Branca e atuando com legisladores na formulação de políticas para o atendimento médico. Daschle possui uma consultoria, a DLA Piper, que tem em sua cartela de clientes algumas das principais corporações médicas do país. Ele, no entanto, se recusa a registrar suas atividades — e a parte mais irônica sobre isso, é que ele tem amparo legal para fazer isso.
Quando a lei foi formulada, ela incluiu em sua exigência para registrar-se como lobista um teste de tripla abordagem. De acordo com o teste, um lobista é um indivíduo que recebe pelo menos US$ 2,5 mil por seus serviços de lobby, durante três meses; tem mais de um contato lobista por seus serviços e, por fim, gasta no mínimo 20% de seu tempo, durante três meses, fazendo “contatos para lobby”.
Ironicamente, esse teste permite que os maiores defensores de grupos de interesse ignorem a lei de transparência. Se um lobista puder argumentar que pelo menos um dos três prognósticos não é aplicado a ele, ele não é obrigado a se registrar. Além do mais, se eles estão apenas coletando informações, eles não podem ser, pela lei, considerados lobistas.
Não é à toa que, enquanto lobistas registrados reportam seus pagamentos, aqueles que desviam do sistema recebem os melhores pagamentos. “Uma lei sujeita a brechas; fraca supervisão; o crescente desenvolvimento de sofisticadas estratégias que contrata terceiros ‘validadores’ e cria companhias artificiais; junto de uma ordem executiva da administração Obama que deu a muitos na profissão o desincentivo para se registrar — todas essas forças juntas produziram um quase total colapso do sistema que foi criado para manter o controle do lobby em nível federal. Como resultado, o povo norte-americano está ficando cada vez mais no escuro sobre quem está mandando dentro do governo”, resumiu Fang.
Isso não é só um problema nos EUA. De uma maneira ou de outra, em todo sistema político que tentou regulamentar a atividade, algumas partes desse segmento ficaram fora do radar. Para Santos, o Brasil não será exceção. “Até porque o contato com um político, com um gestor público, é um direito previsto pela Constituição. Então não se pode impedir que essas pessoas se encontrem. Numa democracia, é desejável que setores da sociedade interajam com agentes públicos — que um parlamentar, quando for tomar uma decisão, ouça opiniões de diferentes grupos.”
Por isso, os especialistas não usam o modelo norte-americano como o melhor exemplo a ser replicado. Para o professor, o Chile é um caso interessante a ser estudado pelas autoridades brasileiras. “O Chile regulamentou essa atividade em 2014 e é uma regulamentação que não é rígida, mas atende a um aspecto importante: ela registra todas as reuniões entre setores privados ou organizações da sociedade civil com os agentes públicos, e disponibiliza essas informações”, afirma Santos. “Assim, fica claro quem encontrou com quem, quem falou sobre o quê e isso aumenta a informação de como se dá a relação entre grupos de interesses e o setor público”.
Foi um longo debate e ainda há muita controvérsia sobre o assunto, porém, para o professor, não há dúvida de que hoje existe muito mais transparência em como são realizadas as relações governamentais do que se tinha antes no país vizinho. “Então se se cria uma lei que induz à informalidade — como dos Estados Unidos —, ao invés de uma que ajude a produzir informação, estamos indo na contramão”, diz Santos. Mas se, à primeira vista, a defesa pela falta de rigor quanto aos requerimentos para a prática da atividade sugere uma regulamentação frágil, o modelo de regulamentação canadense — um consenso entre os especialistas sobre modelo ideal —, indica o contrário. No Canadá, o objetivo principal da regulamentação é o registro dos lobistas. “Como o seu foco não é o monitoramento da atividade dos lobistas, a legislação não requer a divulgação de toda a informação financeira fornecida pelos lobbies, assim como também não responsabiliza os políticos por assegurar que aqueles que tentem influenciá-los se registrem”, explica Gozetto.
“Todos os lobistas são obrigados a fornecer informações detalhadas acerca de si mesmos e de seus clientes. O registro é feito pela internet e eles pagam uma taxa para registrar-se. Aos cidadãos é permitido acesso livre aos registros de todos os lobistas”. Ou seja, qualquer pessoa pode saber o nome e o endereço comercial do lobista e de seus clientes, assim como das filiais e subsidiárias. Se o indivíduo for um ex-dirigente estatal, constará uma descrição dos órgãos que dirigiu e em que período; descrição exaustiva sobre as matérias de seu interesse, incluindo a proposta legislativa específica; o nome de cada departamento ou outra instituição governamental que seja alvo de seu lobby; a fonte e quantia de dinheiro concedida ao cliente pelo governo e as técnicas de comunicação utilizadas. “Quanto à regulamentação do lobby, eu tenho apenas uma certeza: se vamos regulamentar a atividade, que seja a nossa maneira. Respeitando o desenho de nossas instituições, de nossa história e de nossa cultura. O grande desafio que está posto é o de construir uma regulamentação genuinamente brasileira”, conclui Gozetto.
0 comentários:
Postar um comentário