“A Constituição e garantia de direitos não foram aplicados nem no TRF-4, nem no STF, nem na ordem de prisão. Em momento algum no processo de Lula a Constituição e os direitos foram aplicados. Como não são para a maioria da nossa população pobre”. É o que afirma Pedro Serrano, advogado e professor de direito constitucional da PUC-SP, em entrevista ao Tutaméia.
“Estamos neste momento do país em que o sistema de Justiça –e eu incluo dentro desse sistema de Justiça a mídia, que é a que informa a base social que toda a exceção tem — está se construindo como um novo paradigma autoritário. O que acontece com Lula é o que acontece com a maioria do nosso povo pobre quando se vê engalfinhado na Justiça penal pelo menos desde a década de 1990”, declara.
“O processo [contra Lula] não atende a standards mínimos do que seja uma legalidade desejada num estado democrático de direito. Ele não atende a essa moralidade civilizacional mínima. O processo penal tem forma democrática despida de conteúdo democrático. Lula é tratado como inimigo e não como um eventual cidadão que erra. Os elementos formais do processo mais essenciais não são observados”, afirma.
E acrescenta: “A condenação estava desenhada quando se inicia a investigação. O tempo inteiro foi uma busca de justificativa para condenar, não para esclarecer a realidade. Nem na investigação se buscou esclarecer o que realmente houve. E também no processo. Era o tempo inteiro uma busca de provas com vistas à condenação, e não uma verificação que estava ali”.
Para ele, Lula foi condenado em primeiro grau “por uma conduta diferente da que ele foi acusado”. Na sua visão, o juiz Sérgio Moro foi “parcial e incompetente no sentido jurídico formal. O patamar probatório é de um standard abaixo do exigível num estado democrático de direito”.
Na avaliação de Serrano, o processo “tem elementos de indução de raciocínio onde há muita intensidade de imaginação e pouca de conteúdo comprovado. Até o que consideram indício eu não acho indício no patamar exigível de moralidade e de juridicidade num estado democrático de direito”.
Além disso, segundo o professor, há a “aplicação de teorias do direito muitas vezes mal aplicadas, para poder exatamente tentar substituir pelo discurso teórico a ausência de elemento fático. Ali se tem de forma sofisticada um processo penal que serve só como um não processo penal”.
Serrano afirma que o resultado do processo estava dado de antemão: “Todo mundo já sabia que o Lula ia ser condenado”. Na sua análise, o que houve foi um movimento para “buscar na lei não o que ela determina, mas para servir de justificativa, [buscar] uma interpretação que justifique o desejo de puni-lo”.
Nova forma de autoritarismo
Nesse quadro é que o advogado analisa os confrontos entre a defesa de Lula e o juiz: “Por que houve conflito? Porque o juiz era um órgão de acusação, não de decisão. Ele se põe publicamente. Toda a lógica dele de justificação pública é como se o juiz fosse um combatente do crime. Não é assim que deve funcionar a Justiça e o Judiciário num estado democrático de direito. O juiz é um garantidor de direitos”.
Para Serrano, o caso deixa de “ser um processo penal jurídico e passa a ser uma ação política de estado que busca produzir um resultado político. A medida de exceção sempre é uma medida política. Por mais travestida que ela esteja de uma aparência jurídica formal. Hitler fez isso como método”.
E enfatiza: “Temos hoje uma nova forma de autoritarismo, não é o fascismo ou o nazismo do passado, mas ela reproduz elementos desse fascismo e desse nazismo. O que há hoje é uma patologia. Existe a convivência com a democracia, mas com baixa intensidade e mais como elemento de justificação discursiva da ação autoritária do que uma busca real dos valores da democracia”.
Lula perseguido
Serrano comenta, nesta entrevista, os impactos do imbróglio do prende-solta Lula do domingo 8 de julho. Afirma estar preocupado especialmente com a investigação sobre o desembargador Rogério Favreto, que decidiu dar o habeas corpus em favor de Lula.
“Causa a impressão de que o juiz que decidir a favor de Lula vai ser investigado, talvez até punido. Isso é um forte sinal de que o judiciário não está sendo imparcial, de que o sistema de justiça, de que a instituição ministério público está agindo [como em] caça a um inimigo. É muito negativo. Abrir um inquérito conta um desembargados cujo fundamento é a própria decisão é gravíssimo. Eu nunca vi na minha careira um juiz ser investigado tendo por base a sua própria decisão. Isso é muito ruim para o sistema de Justiça e muito bom para Lula. Porque, no plano internacional, vão se acumulando fatos que demonstram de forma bem radical o fato de ele ser perseguido, de ser tratado como inimigo”, declara.
Medida de exceção
Para Serrano, é equivocada a decisão de não permitir que Lula dê entrevista na prisão. “Quando um apenado tem coisas a dizer de interesse público, o juiz não pode impedir que ele fale. Ele está condenado à perda de liberdade, não à perda de livre expressão. Ouvir Lula nesse momento histórico é essencial para a democracia e para a história”.
Na avaliação do professor, a decisão de proibir a fala de Lula “é mais elemento que caracteriza esse processo contra ele como uma medida de exceção, e não um processo penal legitimo”.
Doutor em direito pela PUC-SP e pós-doutor pela Universidade de Lisboa, Serrano, 55, é um estudioso das novas formas de autoritarismo. É autor, entre outros de “Autoritarismo e Golpes na América Latina: Breve ensaio sobre Jurisdição e Exceção” (Alameda, 2016).
É nesse contexto maior de análise que ele responde às perguntas de Tutaméia.
“Toda a medida de exceção tem uma lógica de guerra. As medidas de exceção de hoje são adotadas para aquele que é carimbado como a figura do inimigo”, diz. Se na Europa e nos Estados Unidos estrangeiros e apontados como “terroristas” são tidos como “inimigos” por parte importante da sociedade (e têm seus direitos suspensos pelo Estado), na América Latina o modelo é diferente:
“O sistema de Justiça é o agente de medidas de exceção. Há processos penais de exceção e impeachments inconstitucionais que interrompem a democracia. Isso é capitaneado estruturalmente pelo sistema de justiça”, afirma.
Pobre inimigo
Serrano aponta a guerra às drogas – estimulada pelos EUA no início dos anos 1990 – como inicial dessa mudança no continente. “É quando começa essa suspensão de direitos de forma mais clara. O traficante é posto como inimigo central”.
A partir daí o processo vai se espalhando. Hoje, segundo ele, “o inimigo é o pobre carimbado com a figura do bandido. Esse bandido põe em risco a sociedade, razão pela qual se trata como inimigo, suspendendo os seus direitos. Ele não é como o comunista no século 20; ele é socialmente localizado: negro, pobre da periferia. Isso ocorre em toda América Latina”.
No Brasil, afirma, “isso ocorre a partir da década de 90, com o aprisionamento em massa, que gera um aumento da violência. O crime se organiza na cadeia e sai para fora da cadeia. E esse aumento da violência, causado pela guerra às drogas e pelo aprisionamento em massa, vai fazer com que se amplie a violência. É um círculo vicioso. Vai ampliando o aparato repressivo do Estado e há mais aumento da violência”.
Prisões são campos de concentração
Se, historicamente sempre houve perseguição contra negros e pobres no país, ela se intensificou a partir desse período. Diz Serrano:
“Quadruplicamos o nosso número de presos, decuplicamos o número simples de mortos. Tínhamos um índice de homicídios compatível em termos mundiais; passamos a ser o país que mais mata no mundo em números absolutos, 60 mil por ano. Mais gente do que na guerra no oriente médio de 1958 até hoje. Mais do que os EUA perderam na guerra no Vietnã, que durou mais de 10 anos. Isso em um ano. É uma guerra de baixa intensidade que leva a um genocídio continuo dessa população que normalmente é jovem e negra e pobre”.
E mais:
“Temos nos cárceres uma situação semelhante aos campos de concentração na Alemanha da Segunda Guerra. Com a diferença de que a nossa sociedade sabe e deseja isso. É uma situação facilmente resolveria, com duas canetadas. Mas isso é impopular. Temos que reconhecer: a sociedade brasileira é coautora de uma das maiores imoralidades ocorridas no mundo do Pós-Guerra, que é conviver com esse tipo de cárcere medieval e que gera violência social. Hoje não se explica a violência no Brasil apenas pelos dados de desigualdade. Tem um plus pelo fato de termos produzido essa política pública de encarceramento em massa. Não há como ser um defensor de valores liberais sem atacar essa questão. Não há como conviver com isso de forma tranquila”.
Lideranças de esquerda são alvo
Na análise de Serrano, essa estrutura dos processos penais de exceção, que deram forma de gerenciamento da vida nos territórios habitados pela pobreza, foi transferida para lideranças políticas na América Latina –“na maioria dos países para lideranças de esquerda. A medida de exceção tem uma característica diferente dos estados de exceção porque ela vem com uma roupagem democrática”, observa.
Nesta entrevista, ele fala da história dos estados de exceção, de bonapartismos, ditaduras, do nazifascismo. Ressalta que há hoje “novas formas de autoritarismo, mais sofisticadas, mais limitadas, mais cirúrgicas. O autoritarismo se manifesta por medidas de exceção no interior da democracia. Tem uma roupagem democrática e um conteúdo tirânico. É um esgarçamento, uma perda de sentido continua do pacto moral político que houve no Pós-Guerra”.
Circuito afetivo
Serrano explora as raízes dessa situação:
“Existe um sistema que gera um circuito afetivo na sociedade que ampara e determina esse tipo [de comportamento]. Hoje nós temos no país uma afetividade autoritária, populista, de direita. O populismo de direita habita uma boa parte da nossa sociedade. Que acha que se resolve problemas públicos através de afirmações viris, simplificadoras da realidade e normalmente violentas ou dotadas de um potencial violento”.
É algo que aparece muito na linguagem de internet, que simplifica tudo em certo e errado, bom e mau. “Isso é típico de qualquer autoritarismo. Isso é uma forma trágica de existência social. O judiciário acaba de comportando de acordo com essa afetividade. Não adianta querer culpabilizar o juiz. Nós criamos a afetividade que acolhe isso. Pedimos ao juiz que faça isso. Como pedimos aos militares em 64”.
Para o professor da PUC, “Lula foi sendo posto como inimigo nesse circuito afetivo desde o primeiro dia em assumiu [o governo]. Vem se criando uma tentativa de destruição simbólica desde o começo. Algo legitimo [o combate à corrupção] é usado politicamente para essa persecução. O que não tem sentido não é a Lava Jato. O que não tem sentido é esse processo contra Lula e contra alguns réus que estão ali e alguns métodos utilizados que são incompatíveis com o estado democrático de direito, com os valores da nossa Constituição e de qualquer estado democrático de direito. Não se pode chamar de estado democrático de direito um estado que prende para o sujeito confessar. Essas novas formas autoritárias são complexas e existem e convivem junto com formas democráticas no interior do mesmo sistema. A tirania existe junto com os mecanismos próprios da democracia”.
E os tribunais superiores? Por que não atuam? Serrano responde:
“O STF aderiu a essa lógica das medidas de exceção que suprimem e que visam esvaziar de sentido os direitos”.
Na sua visão, “autoridades democráticas dizem aplicar a Constituição e a moralidade própria da democracia liberal, desaplicando-as, esvaziando o seu sentido”. Há muitos exemplos dessa contradição no passado, lembra. “Hitler ascende ao poder esvaziando de sentido a democracia. Os militares, no Brasil, dizem combater o autoritarismo comunista e estabelecem uma ditadura”.
E ressalta:
“Temos uma democracia controlada de baixa intensidade. Porque é permeada, integrada por medidas de exceção na sua rotina. O que se procura é manter o máximo possível da aparência democrática para realizar intentos tirânicos”.
0 comentários:
Postar um comentário