domingo, 20 de abril de 2014

Publicidade infantil: o que fazer?

Por Anna Beatriz Anjos, na revista Fórum:

No último dia 4, foi publicada no Diário Oficial da União resolução aprovada de forma unânime pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), vinculado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH). O texto classifica como abusivas todas as formas de “publicidade e comunicação mercadológica destinadas à criança, com a intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço”.

Segundo o documento, a comunicação mercadológica abrange ferramentas como meios impressos, comerciais televisivos, spots de rádio, banners e sites, embalagens, promoções, merchadisings, ações em shows e apresentações e nos pontos de venda. Como aspectos que caracterizam abusividade, ele cita, entre outros, o uso de linguagem infantil, efeitos especiais e excesso de cores, trilhas sonoras de músicas infantis ou cantadas por vozes de criança, ou ainda a participação de celebridades e personagens com apelo ao público infantil.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de julho de 1990) e o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº8078, de setembro de 1990) já dispõem sobre a publicidade infantil. O último, em seu artigo 37, também a considera abusiva e a coloca como ilegal – “ É abusiva, dentre outras, a publicidade (…) que se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança (…)”. Por isso, para o Conanda, apesar da resolução não ter força de lei, a existência de outras normas que versam sobre o assunto já é suficiente para proibir a propaganda destinada às crianças.

Diante da situação, algumas entidades ligadas ao ramo publicitário – como a Associação Brasileira das Agências de Publicidade (Abap) e a Associação Brasileira de Anunciantes (ABA) – se uniram e divulgaram uma nota pública, na qual afirmam reconhecer o Poder Legislativo “como o único foro com legitimidade constitucional para legislar sobre publicidade comercial”. Além disso, declararam considerar o Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) “o melhor – e mais eficiente – caminho para o controle de práticas abusivas”.

Dias após a publicação da resolução do Conanda, outra polêmica envolvendo a questão da publicidade infantil mobilizou a rede. Em sua conta no Instagram, o cartunista Mauricio de Sousa, criador da marca Turma da Mônica, postou a foto de uma menina segurando um cartaz no qual era possível ler: “Eu tenho direito de assistir publicidade infantil. A televisão, não é só para adultos”. A imagem gerou uma onda de comentários críticos à atitude do artista, que excluiu a postagem e publicou, em seu perfil do Facebook, uma mensagem de “esclarecimento”. “Como sempre valorizei a voz das crianças, nesses mais de 50 anos de trabalho, fiz por impulso, mas isso gerou uma série de interpretações errôneas”, escreveu.

Ambos os episódios reacenderam o antigo embate em torno do tema da publicidade infantil no Brasil. Em que sentido ela é abusiva às crianças? É necessário proibi-la?

Não somos os únicos culpados

Estudo realizado em 2006 pelo National Bureau of Economic Research indica que, caso os anúncios televisivos de redes de fast food fossem banidos nos Estados Unidos, o número de crianças de 3 a 11 anos com sobrepeso seria reduzido em 18% (Istock Photos)

A Abap é uma das instituições que encabeçam a campanha pela manutenção dos anúncios destinados ao público infantil. Dentre os projetos que já desenvolveu nesse sentido, está a campanha Somos todos responsáveis, criada, segundo a própria associação, para “promover uma discussão equilibrada, livre de radicalismos” em torno da questão.

A principal bandeira da iniciativa é a de que proibir os anúncios direcionados às crianças não resolveria o problema, pois elas estarão sempre expostas a estímulos consumistas, seja nos shoppings centers, entre os amigos na escola, na internet ou nas ruas, que, exceto no caso da cidade de São Paulo, são dominadas pelos outdoors. Por isso, não adiantaria creditar à publicidade toda a culpa pelo problema do consumismo na infância – ele seria responsabilidade de todos: família, escola, sociedade. “Se a ideia é proteger as crianças da mídia não adianta mais desligar a televisão, abaixar o volume do rádio e ficar longe das bancas de jornais”, declarou Dalton Pastore, presidente do Conselho Superior da Abap, em um texto publicado no site da campanha.

Para o publicitário Stalimir Vieira, assessor da presidência da ABAP, uma regulamentação rígida afasta dos pais não apenas o direito de decidir o que é melhor para os seus filhos, mas também a parte que lhe cabe de sua educação. “Por que essas instituições que querem proibir a publicidade não estimulam os pais a serem mais proativos? É muito cômodo terceirizar as decisões a respeito do que os filhos podem ou não assistir, ouvir”, contesta. Ele acredita que o foco tem de ser mudado. “O que entendo como saudável é uma campanha voltada para quem produz publicidade dirigida às crianças, para que tenha cuidado e bom senso, considerando a maior vulnerabilidade de seu público”, analisa.

Aqueles que se posicionam de forma contrária à intervenção do poder público na regulamentação da publicidade dirigida às crianças também falam em censura. Proibir essas peças publicitárias seria privar de informação um determinado setor da sociedade. “Claro que não é uma censura formal, como se praticava nos tempos de ditadura. Mas, de alguma maneira, é a imposição de um ponto de vista sob a comunicação que promove o silêncio do outro. Não é saudável para a democracia”, considera Vieira.

Em sua análise, a criação de dispositivos legais para controlar ou até mesmo banir a comunicação comercial destinada ao público infantil é uma tentativa de “tutelar” a sociedade brasileira. “Esses grupos que se consideram senhores do que é melhor para a sociedade, na verdade, estão pensando em exercer tutela sobre ela a partir do seu ponto da sua interpretação”, aponta. Vieira admite que há limites para a publicidade infantil. Estes, entretanto, já estariam assegurados pela existência de mecanismos como a Constituição Federal, o Código de Defesa do Consumidor e o Estatuto da Criança e do Adolescente. A criação de outros seria, portanto, desnecessária. “Esses critérios estão muito bem desenhados no próprio código do CONAR”, indica.

Falta de autonomia
O principal argumento de ativistas e entidades que lutam pela proibição da publicidade destinada ao público infantil é o de que as crianças, entre os 0 e 12 anos de idade, ainda estão em período de formação. Elas não têm condições de lançar olhar crítico sobre o apelo publicitário e, diante de suas conclusões, decidir o que é melhor para si.

É o que afirma Yves de La Taille, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e estudioso da Psicologia do Desenvolvimento. “Elas [as crianças] não têm autonomia, por motivos de desenvolvimento ainda não concluído, e portanto são extremamente influenciáveis por fontes que revestem alguma figura de autoridade”, coloca. “Basicamente, não têm a força, e portanto, a liberdade de realmente tomar decisões por si próprias, e é preciso poupá-las de influências que não as tenham como objetivo, como fim”.

Os anúncios dirigidos ao público infantil podem corresponder a tais influências. “Uma coisa é eu influenciar meu filho para que ele vá para a escola – é o bem dele, ele é o fim, ele é quem se beneficiará. Enquanto, na propaganda, quem se beneficia das vendas não é a criança, o objetivo é a empresa”, analisa o especialista.

La Taille disseca essa ideia em um parecer que elaborou sobre a publicidade infantil no ano de 2008, a pedido do Conselho Federal de Psicologia. No documento, ele explica que, em média, até os 12 anos o indivíduo ainda se pauta por figuras de prestígio e autoridade, pois não tem plenamente desenvolvidos mecanismos intelectuais para submeter as mensagens alheias ao “crivo” da crítica. “Sua capacidade cognitiva ainda não lhe permite estabelecer relações de reciprocidade, necessárias à autonomia”, escreve. Ele aproxima o conceito de “autonomia” ao campo da psicologia, e o define como “capacidade de discernimento e de juízo, sem referência a alguma fonte exterior de prestígio e/ou autoridade”. Dessa forma, a pessoa é, até os 12 anos, heterônoma, ou não-autônoma.

“Como as propagandas para o público infantil costumam ser veiculadas pela mídia, e a mídia costuma ser vista como instituição de prestígio, é certo que seu poder de influência pode ser grande sobre as crianças. Logo, existe a tendência de a criança julgar que aquilo que mostram é realmente como é, e que aquilo que dizem ser sensacional, necessário, de valor, realmente possui essas qualidades”, explana o professor.

Na prática
O poder da publicidade sobre as crianças, descrito por La Taille, se traduz em números. Pesquisa realizada pelo IBGE em parceria com o Instituto InterScience, em 2003, aponta que os pequenos consumidores influenciam 80% das compras totais da casa. Outro estudo, realizado em 2006 pelo National Bureau of Economic Research, indica que, caso os anúncios televisivos de redes de fast food fossem banidos nos Estados Unidos, o número de crianças de 3 a 11 anos com sobrepeso seria reduzido em 18%.

A questão da obesidade infantil, inclusive, é central para a discussão. É o que afirma Isabella Henriques, advogada e diretora do Instituto Alana, organização não governamental que trabalha na defesa dos direitos da criança e do adolescente e há anos estuda os efeitos nocivos da publicidade direcionada a esse público. “Sabe-se que o principal fator causador da obesidade infantil é o consumo exagerado e habitual de alimentos que possuem excesso de sódio, gorduras trans e saturadas e açúcar, mas o estímulo a esse consumo feito pela publicidade agrava a situação”, destaca.

Segundo a última Pesquisa de Orçamento Familiar (POF), também elaborada pelo IBGE entre os anos 2008 e 2009, 34,8% dos meninos brasileiros de 5 a 9 anos e 32% das meninas nas mesmas condições estavam acima do peso. Enquanto isso, 16,6% dos meninos e 11,8% das meninas nessa faixa etária eram considerados obesos. É importante reforçar que os índices de sobrepeso e obesidade são mais recorrentes na região sudeste, onde há predominância de áreas urbanas e o consumo de produtos industrializados é maior.

A relação entre propaganda e alimentação fica clara com dados levantados pelo próprio Instituto Alana: as crianças de 2 a 7 anos assistem, em média, a 12 anúncios de alimentos por dia, e o número sobe para 21 entre as crianças de 8 a 12 anos. Do total, cerca de 50% das propagandas vistas por elas na televisão são de alimentos, sendo 34% de guloseimas e salgadinhos, 28% de cereais, 10% de fast food, 1% de sucos de fruta e nenhuma de frutas e legumes.

Essa situação é muito bem ilustrada pelo documentário Criança, a alma do negócio, de 2008, dirigido por Estela Renner. Em uma de suas cenas, crianças não sabem identificar frutas e legumes, como chuchu, beringela, abobrinha e manga. Em contrapartida, sabiam dizer rapidamente de quais marcas eram os salgadinhos mostrados, ainda que o nome na embalagem estivesse tampado.

De acordo com Henriques, o próprio mercado já entendeu que a propaganda voltada às crianças é um problema de saúde pública. Em janeiro de 2009, entrou em vigência o EU Pledge, acordo assinado em 2007, na União Europeia, por mais de 20 empresas do ramo alimentício e de bebidas – entre elas, gigantes como Coca-Cola, Pepsico, Burger King, McDonald’s, Nestlé e Unilever. Inicialmente, os signatários se comprometeram a deixar de produzir anúncios destinados a crianças de até 12 anos – exceto quando os produtos divulgados cumprissem critérios nutricionais específicos – em programas em que ao menos 50% da audiência fosse construída por essa faixa etária. Em 2012, a proporção caiu para 35%.

Meses mais tarde, em agosto do mesmo ano, foi a vez do Brasil: 24 empresas e grupos do setor de alimentação – incluindo AmBev, Batavo, Bob’s, Danone, Garoto, Perdigão, Sadia e as filiais nacionais da Coca-Cola, Pepsico, Mars, McDonald’s, Nestlé, Parmalat e Unilever – firmaram acordo igual, mas fixaram a taxa de audiência em 50% ou mais.

A autorregulamentação é mesmo suficiente?
No mesmo dia em que o Conanda publicou sua resolução, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) enviou uma carta ao Conar solicitando a suspensão da exibição de dois anúncios televisivos criados pelo conselho. Intitulados “Palhaço” e “Feijoada”, eles ironizam as reclamações da sociedade relacionadas a campanhas abusivas. O slogan “Confie em quem entende, confie no Conar” sugere que o órgão é autossuficiente e não necessita de auxílio na tarefa de decidir quais peças publicitárias devem ser banidas ou não.

A carta, assinada por 40 organizações civis, afirma que as propagandas “ridicularizam e desqualificam as reclamações de consumidores, além de confundir debate tão importante que, ao contrário, mereceria ser levado a sério e enfrentado com maturidade”. As entidades encaminharam o documento ao Conselho de Ética do Conar para que ele “cumpra com o seu papel de atuar de maneira atenta às demandas do cidadão, com eficiência e respeito”.

O episódio levantou mais uma discussão: a autorregulamentação realizada pelo Conar é suficiente para coibir a elaboração de anúncios desrespeitosos? Os publicitários e defensores da publicidade infantil declaram que sim. No site da campanha “Somos Todos Responsáveis”, a Abap afirma que “diferente do que pregam os radicais, o Brasil já possui toda a legislação e todo o aparato necessário para lidar com o assunto de forma eficiente e equilibrada”, e cita que o Conar já analisou mais de 7.500 campanhas desde sua fundação, em 1980.

Yves de La Taille não concorda. “O conceito de autorregulamentação é válido, mas é preciso ver em que direção ela vai. É a mesma discussão que envolve o liberalismo, entre a esquerda e a direita – o mercado se autorregula e está ótimo. Os dados mostram que não”, analisa o psicólogo.

Para Isabella Henriques, há uma razão para que o mercado se mostre resistente a qualquer iniciativa de regulamentação por parte do poder público. “No caso brasileiro, especificamente, o mercado entende que uma restrição da publicidade voltada ao público infantil, ainda que justa, correta e que respeite de fato o direito à proteção da criança e do adolescente, pode ser uma porta de entrada para outros tipos de restrição”, explica. A advogada vê a desqualificação da resolução do Conanda – ela não valeria por não ter vindo do poder legislativo – como consequência disso. “Todo e qualquer órgão que tente controlá-lo [o mercado] nunca será válido do ponto de vista dele, uma vez que não tem nenhum compromisso com a garantia e preservação dos direitos da criança e da infância”, destaca a advogada.

A legislação brasileira já conta com dispositivos que, em tese, proíbem ações de marketing com foco nas crianças. Além do já citado artigo 37 do Código de Defesa do Consumidor, a própria Constituição Federal, em seu artigo 227, determina que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

O ECA, também já mencionado, vai além. No artigo 76, estabelece que “as emissoras de rádio e televisão somente exibirão, no horário recomendado para o público infanto juvenil, programas com finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas”.

Ainda assim, especialistas defendem a elaboração de uma lei aplicável especificamente ao caso da publicidade infantil, à semelhança do que ocorre em outros países, sendo a Europa referência nesse quesito. Na Suécia, por exemplo, os anúncios dirigidos a menores de 12 anos podem ser exibidos somente após as 21 horas. Na Holanda, eles são totalmente proibidos na TV pública, em qualquer horário. Na Alemanha, a programação direcionada às crianças não pode ser interrompida por mensagens publicitárias, quadro observado também na Dinamarca, que decidiu proibi-las durantes os cinco minutos anteriores e posteriores às atrações. Já do outro lado do oceano, no Canadá, as propagandas voltadas aos consumidores mirins não podem ser veiculadas em programas infantis, e na província de Quebec elas foram totalmente banidas.

0 comentários: