quinta-feira, 9 de março de 2017

Por que mudar? Mudar por quê?

Por Paulo Kliass, na revista Caros Amigos:

Nem mesmo a entrada no período da quaresma tem facilitado a vida do ocupante do Palácio do Jaburu. A impressão que se tem é que 2016 insiste em se estender ainda mais a cada dia que passa, resistindo bravamente a ceder o passo para a plenitude de 2017. Foi-se o réveillon e nada. Os mais otimistas argumentavam que tal pressa em cobrar resultados não fazia sentido. Afinal tudo no Brasil só começa, de fato, depois do Carnaval. Pois bem, na sequência veio o desfile do Rei Momo e também nada. Tudo indica que a barra está mesmo bem pesada pelo lado de lá, pois a estadia no Palácio do Alvorada exigiu reforma especial e durou apenas uns poucos dias, além de muitos mil reais.

A retórica toda estabelecida em torno do golpeachment assegurava aos que insistiam e aos que hesitavam em romper a barreira dos limites do respeito aos preceitos democráticos e institucionais que o paraíso estava logo ali na esquina. Seria tudo muito simples. Ainda que confessando a execução de um pequeno pecadilho, a estratégia consistia em retirar Dilma da Presidência. Se não há provas, paciência; tomam-se as convicções como argumento jurídico e tudo se resolve. A partir daí, o amplo arco político reunido nas 2 casas do Congresso Nacional se ocuparia de conferir a aparente legitimidade institucional ao putsch engomado.

A memória fraca por vezes nos engana e a sucessão de eventos atípicos nos causa uma confusão na apreensão do verdadeiro cronograma da história recente. Pouca gente se dá conta de que o início de tudo já vai comemorar um ano no mês que vem. Isso porque em abril de 2016 a Câmara dos Deputados - sob o comando do antigo aliado, então algoz e atual prisioneiro Eduardo Cunha - inaugurava a rota do impedimento escandaloso. Mais à frente, em agosto, o Senado Federal sacramentava a deposição ilegal da Presidenta legitimamente eleita em outubro de 2014.

O golpeachment e a fragilidade de Temer

Não é esse o propósito do artigo e nem o espaço para tanto. Mas não podemos nos furtar à indagação a respeito das razões que não teriam levado o sentimento de indignação da ruptura da ordem democrática às ruas com a força suficiente para impedir o golpe. Uns argumentam com a frustração coletiva derivada do estelionato eleitoral. Outros ponderam quanto ao caráter autoritário do novo governo e as medidas de repressão às manifestações. Todos são unânimes em apontar o papel dos grandes meios de comunicação, em conluio com setores do Ministério Público, da Polícia Federal e do Poder Judiciário. Estavam criadas as condições para buscar a legitimação do ilegítimo.

O Presidente Temer parece ter mesmo escolhido um péssimo dia para realizar uma nova reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), o famoso Conselhão. O colegiado foi criado por Lula e praticamente ignorado por Dilma. O anúncio de tímidas medidas pelo núcleo duro do governo foi completamente abafado pela estrondosa divulgação das informações sobre o PIB de 2016 pelo IBGE. O calendário de atividades do instituto responsável pelas contas nacionais já estava anunciado há muito tempo. Falha da assessoria ou opção equivocada? Só o tempo dirá.

Mas o fato é que não há mesmo espaço para outro assunto quando se vê confirmada oficialmente a dramaticidade da recessão provocada pelo austericídio. Entre 2015 e 2017 o Brasil está vivendo a maior recessão de sua história. Desemprego, falências, miséria social, queda na massa salarial, desindustrialização, redução da oferta de serviços públicos, crise no sistema prisional, etc, etc. A lista é longa.

Somado à impressionante sucessão de escândalos de corrupção envolvendo políticos da cozinha do palácio, o aprofundamento da crise econômica e social acaba por provocar um verdadeiro tsunami na área política e institucional. Justo no momento em que o governo precisa urgentemente de novidades “menos piores” na área da recuperação da atividade, agora se avolumam acusações, delações e números ruins da economia divulgados pelas agências oficiais. A trégua oferecida pelos que apoiaram a aventura golpista parece estar chegando a um limite. A fada das expectativas ainda não deu suas caras e parcela dos empresários parece acusar a sensação de terem embarcado em uma canoa furada.

As pesquisas apontam Lula na frente

Ora, diante de tal situação, alguns institutos resolvem realizar suas pesquisas de intenção de voto. E aí o quadro fica mais complicado para as chamadas classes dominantes. Depois de submetido a um bombardeio sistemático e programado no milímetro ao longo de vários anos, Lula desponta como líder isolado na preferência popular para as presidenciais de 2018. É evidente que estamos ainda muito longe da data do pleito e que pesquisa deve ser sempre encarada como fotografia e blá blá blá. Mas tais informações, somadas à baixíssima popularidade de Temer, estão provocando um enorme reboliço no interior das chamadas “elites”.

Esse clima de incerteza se agrava com a novidade de Bolsonaro surgindo em segundo lugar nas pesquisas, com a consequente queda brusca dos dirigentes políticos mais tradicionais da direita que se aboleteu em torno do golpe. Temer, Serra, Alckmin, Aécio: nenhum deles aparece como alternativa expressiva no imaginário popular. Sobram aqui e ali as opções de Ciro e Marina, ainda pouco vitaminadas. Essa conjuntura recebe o tempero tentador de patrocinar um novo golpe, a partir da inviabilização da candidatura de Lula. Afinal, não parece muito difícil ao establishmentobter uma condenação em primeira instância com Sérgio Moro e depois referendada pelo tribunal de segunda instância em Porto Alegre.

De toda maneira, a complexidade do momento e a urgência em definir estratégias parecem tomar conta dos corações e mentes de quem faz política no Brasil. Como perguntava o dirigente revolucionário Vladimir Ilitch Ulianov, o Lenin, em seu famoso livro: “O que fazer?”. Oh, dúvida cruel! A luta contra o processo de desmonte do Estado brasileiro e de promoção integral desse entreguismo tresloucado e extemporâneo necessita de uma perspectiva orientadora. E aí o horizonte das eleições do ano que vem se coloca como possibilidade de alternativa de poder. Retirar o golpismo ilegítimo e recolocar o país na trilha que foi abandonada em algum momento do passado recente. Para dar cabo de tal empreitada, a candidatura de Lula surge como sedução incontornável.

Mudar a política econômica no pós 2018

Ok. Suponhamos que está combinado que está tudo certo. Mas por que se propõe essa mudança? Parece inquestionável que os 13 anos de legado do PT (aí incluídos os dois mandatos de Lula) proporcionaram avanços efetivos na sociedade brasileira. Estão aí os dados sobre a melhoria na distribuição de renda, a evolução da qualidade de vida das camadas da base da pirâmide, a recuperação dos valores reais do salário mínimo e dos salários em geral, etc. No entanto, as tarefas que se colocam para um eventual mandato 2019-22 dizem respeito ao futuro e não apenas à recuperação das boas iniciativas do passado. Antes de discutir nomes ou candidaturas, considero essencial que se discuta um programa de governo. Afinal, mudar para que?

E mais uma vez o foco deve se concentrar incialmente no debate sobre projeto estratégico de Nação e fundamentos da política econômica. Não nos esqueçamos que o primeiro mandato de Lula manteve o tripé da política econômica, sob a batuta inicial da duplinha dinâmica Palocci e Meirelles. Durante mais de uma década foram drenados mais de R$ 4 trilhões ao sistema financeiro sob o disfarce do superávit primário. Mais recentemente, até anteontem, Lula fazia pressão enorme sobre Dilma para que ela nomeasse o mesmo Meirelles para seu Ministro da Fazenda. O golpe e as traições todas da elite política conservadora deixaram flagrantes o oportunismo e a falta de convicção de seus representantes quanto a qualquer projeto mudancista mais sério. Aturaram e adularam Lula enquanto ele lhes foi útil e agora desejam e conspiram para vê-lo na cadeia.

Mas então, por que mudar? Para redigir uma versão mais atualizada da famigerada “Carta aos Brasileiros”, onde se buscava de forma iludida o convencimento das classes dominantes de que o candidato seria um praticante do bom mocismo liberal e financista? A conjuntura interna e externa não oferecem mais espaço para o jogo do ganha-ganha que Lula recebeu a partir de 2003. À época foi possível a busca do setor exportador do agronegócio como mola propulsora do crescimento da economia e depois o uso generalizado do grosso dos recursos públicos para oferecer saídas interessantes ao grande capital financeiro nacional e internacional. Como havia muita disponibilidade de caixa, as migalhas também eram bem utilizadas para os programas sociais - muito necessários, diga-se de passagem.

Como governar sem a abundância do passado?

Porém, a abundância deixou de ser a marca dos tempos atuais. Governar é cada vez mais fazer opções e definir prioridades. Os recursos estão mais escassos e os responsáveis pela coisa pública são obrigados, cada vez mais, a decidir quem deve perder ou ganhar a cada decisão a ser tomada. O que fazer com os ganhos extraordinários e vergonhosos do sistema financeiro? Como encaminhar medidas de alteração mais estrutural no sistema tributário, de forma a torná-la menos regressivo e fazer com que os detentores de capital e patrimônio contribuam mais para os cofres públicos?

Não basta mudar apenas para tirar Temer e impedir eventual volta dos tucanos ao poder pelo voto. As tarefas são imensas para recuperar políticas pouco implementadas ao longo desses últimos anos quanto a uma reforma agrária efetiva, por exemplo. O que fazer para reverter o processo alucinante de mercantilização de serviços públicos, a exemplo do que veio ocorrendo com a saúde, com a educação básica, com o ensino universitário, com a previdência, com a segurança e tantos outros setores? O que fazer com o Banco Central e com as agências reguladoras dominadas pelas grandes corporações que elas deveriam fiscalizar? O que pensa Lula esse respeito?

Como governar sem uma política clara de regulamentação dos meios de comunicação e de constituição de um núcleo público em condições de oferecer uma narrativa distinta daquela patrocinada pelas poucas “familglie” que dominam nossa imprensa? Talvez tenha sido mais do que suficiente o baque profundo da conspiração golpista para perceber que os agrados e os tubos de dinheiro público destinados à Globo, Folha, SBT, Estadão i tutti quanti não passaram de equívoco, ilusão e mau uso de verbas orçamentárias.

Autocrítica é essencial para mudança

Há poucos dias começou a circular um manifesto de apoio à antecipação do lançamento da candidatura do ex-presidente. Curiosamente, o título do documento é “Por que Lula?”. Ocorre que em nenhum momento dos três curtos parágrafos se faz qualquer menção a tais tarefas complexas para um novo mandato. Os autores repousam num saudosismo dos 8 anos do passado e da importância inegável do significado de Lula, mas pouco avançam no sentido dos novos desafios colocados pela própria realidade. O máximo que conseguem sugerir é que sua candidatura seja “fundamental para o futuro do Brasil assegurar a soberania sobre o pré-sal, suas terras, sua água, suas riquezas”. Sim, mas como fazer isso e muito mais? Como governar com um parlamento que ainda terá o conservadorismo político como sua marca?

Para além das dificuldades colocadas para um eventual plano B caso a candidatura seja inviabilizada por meio de artifícios jurídicos patrocinados pelos setores mais conservadores, o fato é que não basta mudar apenas pelo desejo da mudança. O chamamento a um esforço de campanha popular não pode se resumir a efetivar uma boa gestão da ordem vigente, sem incluir mudanças de natureza estrutural. É importante não esquecer que a desconsideração do resultado das urnas patrocinado por Dilma em 2014 deixou marcas profundas.

O que fazer com os níveis absurdos do spread bancário? Como conduzir os atuais processos de privatização por meio de concessão, como foi feito inclusive nos governos do PT? Ficou demonstrado que a inclusão apenas pela via do consumo não consolida as transformações na base da sociedade. Deve ter sido incorporado que a opção pela via dos “campeões nacionais” da maneira como foi feita pouco contribuiu para o conjunto da economia brasileira. O exemplo paradigmático dos equívocos com Eike Batista e com o grupo JBS estão aí para quem quiser ver e discutir. As indagações são inúmeras.

Enfim, as tarefas não são nada fáceis. Mas é essencial que o caminho deva ser iniciado pela busca de respostas para as perguntas do título. Afinal, em termos concretos e objetivos, o que se propõe como projeto de mudança? Se não for para transformar de fato, por que mudar?

* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.

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