sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Não há como dialogar com Bolsonaro

Por Vinícius Mendes, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:

Quem assistir a Bacurau, codirigido pelos pernambucanos Kleber Mendonça Filho (Recife frio, O som ao redor, Aquarius) e Juliano Dornelles (O ateliê da Rua do Brum), vai ser levado quase obrigatoriamente a fuçar as próprias influências para interpretar o filme.

No exterior, a maior parte da crítica foi estética: Peter Bradshaw, do The Guardian, escreveu que a obra – em cartaz nos cinemas brasileiros desde 29 de agosto – o remeteu ao chileno Alejandro Jodorowsky (El topo e A sagrada montanha), enquanto Manohla Dargis, do New York Times, disse que Bacurau tem algo do norte-americano John Carpenter (Eles vivem) e de um clássico do cinema mundial: Os sete samurais (1954), do japonês Akira Kurosawa. No Brasil, Luiz Carlos Merten, do Estadão, afirmou que o filme continua o estilo western ideológico do baiano Glauber Rocha (Deus e o diabo na terra do sol, O dragão da maldade contra o santo guerreiro). Em julho, Kleber escreveu em seu perfil no Twitter que quer atrair também o público de Jumanji (1996).

A maioria da imprensa brasileira, por sua vez, se apegou à mensagem política subliminar de resistência – como já tinha sido com Aquarius (2016). A crítica da Folha de S.Paulo, por exemplo, diz que os diretores enviam um recado ao atual governo com a produção. A revista pernambucana Continente, por sua vez, afirma que Bacurau é tanto “um retrato do clima distópico do Brasil sob Jair Bolsonaro quanto um chamado às armas”.

Bacurau ganhou o Prix du Jury do Festival de Cannes, na França, em maio, ao lado de Les Misérables, do francês Ladj Ly. Terceiro troféu mais importante do evento, ele é concedido aos filmes que se destacam por sua “singularidade”.

Foi o primeiro Prix du Jury do Brasil desde que a premiação foi criada, junto com o festival, em 1946, e a terceira vez que um diretor brasileiro saiu de Cannes com um troféu nas mãos: a primeira foi em 1962, quando Anselmo Duarte ganhou a Palma de Ouro com O pagador de promessas, e a segunda foi sete anos depois, quando Glauber Rocha foi escolhido melhor diretor por O dragão da maldade contra o santo guerreiro, de 1969.

No período entre o Festival de Cinema de Gramado (RS) e o Festival Internacional de Cinema de Toronto (Tiff), no Canadá, Kleber Mendonça Filho concedeu a seguinte entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil.

Que reflexão política vocês tentaram colocar em debate explicitamente com Bacurau?

A ideia foi fazer um western em que uma pequena comunidade do sertão vive de forma rústica e criativa e em que os moradores respeitam uns aos outros. Há tensões humanas, mas também uma sociedade organizada que, na verdade, vive até melhor por estar esquecida politicamente. E essa comunidade tem um contato muito forte com a própria história. Quando você faz um filme sobre isso, ele se torna automaticamente político. A reação que temos visto a Bacurau é de identificação tanto de elementos humanos que são parte de uma organização social, que é política, quanto de marcadores históricos, porque Bacurau também é um filme sobre a repetição da história.

Como você vê a ideia de filme político?

Antigamente, os filmes políticos envolviam governos, presidências, mas meus filmes não são assim. Aquarius é um filme político simplesmente porque uma mulher diz “não”. O som ao redor é um filme político porque mostra a vida, mas com alguma coisa errada na forma como a sociedade se formou ali. Bacurau é um filme em que pessoas são desrespeitadas com violência, mas reagem dentro de uma ideia humana de reação, isto é, de se proteger para valorizar a própria vida. Tudo isso faz que Bacurau suscite uma discussão política em torno dele.

Há uma crítica que relaciona Bacurau com o bolsonarismo no Brasil, assim como conectou Aquarius, em 2016, ao impeachment de Dilma Rousseff. Como você observa essa interpretação?

Eu fico impressionado com a forma como meus três filmes se interligaram de maneira muito direta com a sociedade brasileira no momento em que passaram a existir. No caso de Aquarius, eu escrevi o roteiro dois anos antes de Dilma sofrer o golpe, e acabamos as filmagens onze meses antes de ela ser efetivamente deposta. Quando estávamos filmando, eu sempre falava que aquilo não aconteceria, argumentando que o Brasil já estava em um estágio mais sofisticado de democracia. Acabamos de filmar Bacurau em maio do ano passado, mas o filme foi escrito ao longo de muitos anos. Quando a gente terminou de rodar, Jair Bolsonaro era uma piada. Em setembro, quando a gente estava na montagem do filme, começou um barulho mostrando que a piada tinha perdido a graça. Em outubro, enfim, ele foi efetivamente eleito. Então, tecnicamente falando, o filme nunca teria sido feito sobre Bolsonaro, mas se encaixa perfeitamente para ilustrar, comentar ou interagir com o Brasil de hoje.

Como você espera que seus filmes – pelo menos os dois últimos – sejam vistos no Brasil em um futuro distante?

Tenho uma compreensão muito pragmática do efeito do tempo sobre o cinema: os filmes se tornam arquivos. Fico muito curioso para entender o que será desses filmes no futuro, mas espero que eles signifiquem alguma coisa para alguém. Imagina ver em 2078 uma garota ou um garoto de 19 anos irem sozinhos no sábado à tarde a algum cinema do Brasil, da Argentina ou do Canadá assistir a O som ao redor e o filme ter um impacto, falar alguma coisa sobre o mundo para aquela pessoa? É uma ideia fascinante.

Em Cannes, você disse que Bacurau fala sobre ser “brasileiro no mundo”. Ele poderia ser o porta-voz de uma experiência latino-americana do mundo também?

Não acho mais possível afirmar que um filme pode ser brasileiro e não necessariamente latino-americano: ao ser brasileiro, ele é latino-americano, e, ao ser latino-americano, ele é universal. Bacurau é um filme sobre Pernambuco, mas é também sobre o Nordeste, sobre esse campo de força invisível que separa o Nordeste principalmente do Sudeste e do Sul do Brasil. Esse campo de força que muita gente finge que não existe e que é político, social e racial.

Bacurau tem um diálogo intenso com o Cinema Novo, cuja preocupação era dialogar com as massas, transformar o cinema em instrumento dentro da luta entre as classes. Esse é um desafio que vocês assumem também?

Eu chego a esse pensamento, mas por meio da minha concepção de cinema. Fui jovem em um momento em que grandes salas de cinema construídas nos anos 1930, 1940, 1950, com capacidade para mais de mil pessoas, recebiam filmes populares de várias nacionalidades. Fui, por exemplo, na estreia de Nascido para matar [1987], de Stanley Kubrick, no Cinema Vermelho, no centro do Recife, que numa tarde de terça-feira estava com lotação esgotada. Durante os trailers do início da sessão, eu achei que seria impossível ver o filme, porque havia muitos estudantes berrando. Quando começou, naquela cena dos recrutas perdendo o cabelo na máquina zero, todo o cinema entrou em silêncio. Eu nunca me esqueci daquilo, porque era um filme subversivo, antiamericano, de certa forma, e pacifista, que conseguiu calar a boca de mil jovens do início ao fim. Isso foi feito pela Warner Bros. Então, eu acredito em um tipo de cinema que seja popular e que seja pelo menos uma tentativa de compreensão do funcionamento da sociedade. Acho que sempre fiz isso. O som ao redor é um filme muito acessível do ponto de vista de compreensão, e Aquarius talvez mais ainda. Agora, com Bacurau, essa guinada para o western e para a ação faz ser possível chegar a essa sensação inesquecível que eu tive vendo Kubrick no Cinema Vermelho. Essa coisa de fazer um filme que é entretenimento, mas que tem uma força de falar uma verdade que é reconhecível para qualquer um. Essa é minha pretensão com Bacurau.

De uma forma que o cinema comercial não é?

Às vezes acho que o cinema comercial – principalmente no Brasil – faz um malabarismo muito grande para encenar a realidade do país. Eu fico impressionado com a quantidade de trabalho que essa galera tem de fazer um filme grande onde não existe nada que seja perto da realidade do Brasil. A gente só liga a câmera e organiza as cenas com os atores a partir da nossa realidade, porque a gente mora no Brasil e sabe como funciona o Brasil.

O governo quer fazer filmes “cristãos”, por isso levantou a discussão sobre a Ancine. Como você vê a relação entre cinema e direita?

No cinema americano há muitos filmes que podem ser considerados de direita, mas eu não consigo pensar em nenhum nome hoje no Brasil que faria filmes advertidamente de direita. Esse jeito que a gente observa no cinema do Clint Eastwood, por exemplo. O cinema é livre, e, se você tem um corte que é conservador e é de direita, você faz seu filme com esse ponto de vista, mas dá para pensar em como é possível fazer esse cinema sem defender questões que ultrapassam a linha da democracia… [Mendonça Filho hesita.] Eu não sei por que estou tendo tanta dificuldade de responder a essa pergunta. Ela é difícil porque, dentro de uma ideia democrática, qualquer pessoa pode fazer um filme, escrever um livro ou um poema, mas o que está acontecendo é uma resposta muito agressiva de parte da direita. Quando um cineasta faz um filme sobre a condição de jovens negros gays, isso é interpretado como um tipo de afronta. Me parece que há um movimento contrário muito agressivo… Nossa, é difícil.

A discussão sobre o cinema também leva a discutir o Brasil de agora.

É que a gente está entrando em um nível de distopia, entendeu? Você começa a pensar em termos de democracia, mas na verdade já é outra coisa. A direita acusa os filmes de esquerda de serem essas peças de propaganda, quando, na verdade, eu não consigo enxergar isso na maior parte dos filmes de esquerda. Quando você vê um filme como O processo [Maria Ramos, 2018], não acho que é uma peça de propaganda, mas uma observação sobre um processo histórico.

O produtor Rodrigo Teixeira, da RT Features, defendeu, durante a crise da Ancine, que o setor audiovisual dialogue com o governo Bolsonaro. Você concorda? Há como dialogar?

Eu sou uma pessoa que dialoga, mas ao mesmo tempo só consigo dialogar dentro de uma conversa absolutamente democrática. Não tenho como dialogar com alguém que acredita que obras possam ser sancionadas, moldadas ou mudadas pelo governo, ou com alguém que acha que pessoas devam ser assassinadas. Essa questão da censura, da mesma forma, não tem o que dialogar.

Muito da defesa que se faz da Ancine se baseia em sua capacidade de gerar lucros. Qual seria a atuação ideal do Estado sobre o cinema?

O mercado precisa ser observado, porque, se você deixá-lo agir sozinho, ele come tudo. A Ancine nunca foi perfeita, mas ela chegou a um ponto de organizar e de defender nosso mercado de audiovisual, fomentando o desenvolvimento não só do cinema, mas também de séries de TV, por exemplo. Porém, minha grande questão é não entender como esse setor está sendo atacado, mas ao mesmo tempo gera milhares de empregos. É como se eu soubesse que o governo decidiu desmontar a indústria naval brasileira: eu não entenderia.

Qual é sua percepção sobre as mudanças anunciadas em abril sobre a Lei Rouanet?

Eu estava na correria do filme e não vi, mas acho que um país precisa defender sua cultura e estimular seus artistas. O mercado tem uma capacidade muito grande de se apropriar de espaços, e um governo sério precisaria defendê-la – da mesma maneira que outros governos defendem o agronegócio ou a indústria automobilística. Quem fala que em Hollywood não é assim não tem ideia do que está falando: um filme como Transformers IV recebeu mais de US$ 20 milhões [R$ 80,1 milhões, na cotação do final de agosto] para filmar em Detroit. Como instrumento de valorização da cultura e do artista brasileiro, a Lei Rouanet é muito importante.

É difícil fazer filmes no Brasil sem o apoio da Globo?

Não. É uma opção. Durante o processo de engenharia de produção de um filme, há como escolher os parceiros, e aí pode não se escolher a Globo. No fim das contas, porém, quando se juntam os pedaços para poder filmar ou armar uma produção, uma das reuniões que um diretor tem é com a Globo. E ele é muito bem recebido lá. O Aquarius e o Bacurau são Globo Filmes – O som ao redor não teve participação deles –, mas não houve absolutamente nenhuma interferência artística. Do ponto de vista de criação, os filmes são exatamente o que eles sempre seriam, e a gente ainda tem um tipo de comunicação que não é necessariamente o que as pessoas esperariam [risos] ver em filmes como Bacurau ou Aquarius.

Existe algum filme que precisaria ser feito e ainda não foi?

Se a gente comparar o cinema brasileiro que eu vi como jovem cinéfilo e crítico nos anos 1990 com o que existe hoje, ele adquiriu um vocabulário incrivelmente diverso, não só em tema e em estética, mas também em quem faz os filmes. Eu sou um exemplo disso: nos anos 1990, a produção seguia a cartilha da configuração político-econômica brasileira, isto é, quase toda concentrada no Rio de Janeiro e em São Paulo. Quando Baile perfumado [Lírio Ferreira e Paulo Caldas, 1997] ganhou o edital do Ministério da Cultura, aquilo foi visto como um acontecimento histórico – e é ainda hoje – no cinema pernambucano. Baile perfumado foi o primeiro longa-metragem feito em Pernambuco em dezoito anos. De lá para cá, políticas públicas muito acertadas, colocadas em prática no governo Lula, começaram a distribuir tanto o dinheiro quanto a ideia do cinema em outras regiões do Brasil. Então, quando você me pergunta se ainda falta um filme para ser feito, eu te respondo que sempre faltam obras de arte para serem feitas. É quase sempre possível, no caso da música, por exemplo, você fazer uma nova canção, mesmo considerando que existem milhões de canções que já foram feitas usando as combinações melódicas disponíveis.

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