segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Conversa sobre a mídia com José Dirceu

Reproduzo abaixo a entrevista concedida a José Dirceu, ex-ministro do governo Lula e uma das principais referências do PT e da esquerda brasileira. Ela aborda o papel da mídia e os desafios da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). É mais uma contribuição do Blog do Zé Dirceu, um dos mais influentes da atualidade, ao debate democrático sobre este tema estratégico.

“A mídia brasileira é o pior dos mundos”

A constatação acima é do jornalista e secretário de comunicação do Comitê Central do PC do B, Altamiro Borges, autor de “A ditadura da mídia” e um dos principais pensadores sobre o papel da comunicação no país. Nesta entrevista, ele explica essa sentença e alerta para o paradoxo vivido atualmente pela imprensa brasileira: ao mesmo tempo em que nunca teve tanto poder, ela sofre hoje um processo de perda de credibilidade e de fragilidade frente às novas tecnologias.

Para Altamiro, a transformação necessária à imprensa brasileira começa por uma questão central: direito de resposta. “A lei de imprensa devia garantir o que está na Constituição, que fala de presunção da inocência. Mas, a mídia brasileira trabalha é com a presunção de culpa”, afirma. Ele defende que caminhemos no sentido de garantir a pluralidade e diversidade na imprensa.

As relações entre comunicação e poder econômico - objeto de observações do seu livro - podem ser comprovadas, segundo o jornalista, na análise dos principais episódios da história brasileira. De Getúlio Vargas, passando pela ditadura militar e as Diretas Já, até chegar ao desmonte do Estado pelo neoliberalismo, Altamiro nos oferece um panorama histórico que mostra o processo de concentração do poder e a formação do monopólio dos grandes grupos de mídia.

Defensor da pluralidade, o jornalista também nos conta como anda a radiodifusão comunitária brasileira e aponta as dificuldades e injustiças que hoje cerceiam as rádios comunitárias no país. Sobre a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), programada para 14 a 17 de dezembro, cita Gramsci: "é bom ser pessimista na análise e otimista na vontade da transformação". Altamiro está satisfeito com o processo que conduz à Conferência, sobretudo pelo caráter pedagógico de que está se revestindo.

Zé Dirceu: Como você avalia a mídia brasileira hoje sem qualquer regulamentação ou controle público? O que é necessário para se fazer respeitar princípios e direitos elementares como o de resposta e de imagem e, no mínimo, o direito ao contraditório?

Altamiro Borges: A mídia brasileira é o pior dos mundos. É altamente concentrada e não tem regra nenhuma. Diferentemente da Europa que tem uma grande presença da rede pública, principalmente a partir da II Guerra Mundial, aqui não tem. Os únicos presidentes que tentaram foram o Getúlio [Vargas] com a Rádio Nacional – por isso apanhou um bocado – e agora, no segundo mandato do presidente Lula, a construção da Empresa Brasil de Comunicação (EBC). Mas, a Rádio Nacional que chegou a ser uma rádio potente, 5ª em audiência no mundo, não conseguiu prosperar.

Então, a mídia brasileira não tem concorrência no setor público. Ela é basicamente privada e totalmente desregulamentada. Nos Estados Unidos e na Europa, eles têm uma regulamentação que dificulta, por exemplo, a propriedade cruzada. No Brasil, isso não existe. Uma mesma família é dona de TV, rádio, revista, internet, editora, etc. Se a mídia por si só nunca terá neutralidade, aqui ela vai ter esse problema. Além da ausência da rede pública e de qualquer regulamentação, ela tem um processo de concentração muito violento. Há algum tempo falava-se em nove famílias que dominavam a mídia brasileira. Hoje, não são nem mais nove, são cinco famílias, e algumas em processo de falência.

Portanto, temos uma mídia altamente concentrada e sem regra nenhuma. Quanto à questão da lei de imprensa, sempre a criticamos porque era do regime militar. Agora, tirar a lei de imprensa para ficar libertinagem de imprensa é um extremo que não podia ocorrer. Você não ter garantido o direito de resposta é uma aberração. E hoje o poder dela é maior, mas paradoxalmente mais vulnerável.

A mídia sempre se comportou dessa forma. É só você pegar a história da imprensa brasileira, principalmente de meados do século passado para cá. Por exemplo, ver a postura da imprensa no governo Getúlio Vargas. E hoje o poder dela é maior, mas paradoxalmente mais vulnerável.

Getúlio chegava a dizer que a burguesia brasileira era muito burra, porque ele a estava fazendo ceder os anéis para não perder tudo – na questão do salário mínimo – e a imprensa na época batendo. O discurso do Carlos Lacerda, da Tribuna da Imprensa, contra a candidatura do Getúlio nos anos 50 era “não pode ser candidato; se for não pode ser eleito; se for eleito, não pode tomar posse; e se tomar posse não pode governar, a gente derruba”. É isso a mídia brasileira. Com essa expressão, Lacerda a sintetizou.

É só ver o papel da mídia no golpe de 64. A Folha de S. Paulo, na minha opinião, deu um tiro no pé ao usar a expressão “ditabranda” (em relação à ditadura). A resposta da ministra Dilma Rousseff foi muito precisa: “Só se foi ditabranda pra vocês, para mim foi ditadura”. Na verdade, com exceção do (jornal) Última Hora, toda a imprensa pediu o golpe e comemorou. Depois, alguns engoliram o próprio veneno. Mas ela teve esse papel no golpe, depois na retomada das lutas grevistas. É impressionante como foi uma mídia que procurou e continua a procurar até hoje criminalizar qualquer tipo de luta social. Pega o papel da mídia nas campanhas da Diretas, foi vergonhoso. Nesse caso, a exceção foi a Folha de S.Paulo que percebeu uma mudança de correlação de forças e apostou numa outra alternativa. Agora, a Rede Globo escondendo o Comício das Diretas em São Paulo...

Há um belíssimo estudo feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) sobre o papel da mídia na Constituinte. É impressionante. Foi contra todas as bandeiras de interesse dos trabalhadores, de defesa da nação e pela soberania.

Então, na minha opinião, é uma mídia que reúne o que há de pior. Lógico que tem exceções. Com isso não estou querendo dizer que a produção de conteúdo, como um todo, seja uma porcaria. Pelo contrário. Há coisas boas. A teledramaturgia no país é muito respeitada, bem produzida. Você tem bom jornalismo ainda. Eu tive agora a alegria de participar da comissão julgadora do Prêmio Vladimir Herzog na categoria jornais. Fiquei impressionado com a riqueza do material. Você tem bom jornalismo sendo produzido no Brasil. Com isso, ao falar que reúne o que há de pior, não estou querendo negar tudo.

Há coisas muito boas, mas no geral ela tem essas duas grandes marcas: a de uma concentração pior do que todos os lugares do mundo, totalmente desregulada; e uma capacidade de manipulação muito alta.

Zé Dirceu: O que você considera o básico numa Lei de Imprensa para garantir democracia e o mínimo de igualdade da informação?

Altamiro Borges: Começa por uma questão central: direito de resposta. A lei de imprensa devia garantir o que está na Constituição que fala de presunção da inocência. Hoje, a mídia brasileira trabalha é com a presunção de culpa. Ela primeiro aniquila a pessoa e, depois, se tiver algum reparo a fazer, põe uma notinha fazendo o reparo. Então é garantir a Constituição brasileira que fala de presunção da inocência.

Nós devíamos caminhar para mecanismos de garantia da pluralidade e diversidade na imprensa. O presidente da Bolívia, Evo Morales acabou de aprovar um projeto que garante ao jornalista a questão de consciência, a chamada cláusula de consciência – que na Europa já existe – em que ele tem direito de dar a sua opinião. Muitas vezes, ele faz uma boa matéria. Perseu Abramo falava que o problema não está em fazer uma boa matéria, mas nos padrões de manipulação da edição quando você oculta ou realça de acordo com os seus interesses, e o jornalista fica vendido. Então, a cláusula de consciência, nesse caso da Bolívia, está aprovada.

O jornalista e o movimento social têm uma coluna no jornal e três minutos na TV para dar a sua opinião. Isso é garantir pluralidade e diversidade mínima. Essas três questões: direito de resposta, presunção da inocência e espaço para o contraditório seriam questões centrais numa lei de imprensa.

Zé Dirceu: O governo Lula adotou medidas como a criação da TV pública e convocação da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom). Você está de acordo com essas medidas? O que mais seria necessário para avançar no sentido da democratização da informação?

Altamiro Borges: Eu tenho uma avaliação crítica do governo Lula em relação à comunicação. Concordo, nesse sentido, com o professor Bernardo Kucinski em alguns pontos. No primeiro mandato, o governo Lula foi muito tímido em relação à comunicação. Foi um misto de ilusão com certo pragmatismo.

Zé Dirceu: Fora o recuo em relação ao Conselho Federal de Jornalismo e a Agência Nacional de Cinema e Audiovisual (Ancinav).

Altamiro Borges: Exato. O Conselho Federal de Jornalismo nem era uma proposta do governo, mas da Federação Nacional dos Jornalistas.

Zé Dirceu: Nas duas medidas não havia nada quanto a restringir o direito de informação da imprensa, mas ela transformou as duas propostas em censura...

Altamiro Borges: Na Ancinav foi a mesma coisa. Não restringia nada na produção. Então, no primeiro mandato... Também não achei legal Lula ter sido eleito e no dia seguinte já dar uma entrevista exclusiva para o Pedro Bial e estar do lado da Fátima Bernardes e do William Bonner, no Jornal Nacional. Foi uma sinalização, no meu entender, que não precisava. Mas está feito.

O governo chegou a apresentar algumas idéias e recuou rapidamente. E acho que cedeu em várias coisas. O tal do padrão digital japonês, por exemplo. Nós estávamos fazendo um processo de produção própria. A Universidade do Rio Grande do Sul estava produzindo o nosso padrão digital. Então, o comportamento no primeiro mandato não foi legal. Mesmo a Radiobrás, tenho a impressão que ela reproduz exatamente o mesmo tipo de cobertura que a mídia comercial realizava, um negócio terrível.

Zé Dirceu: Ontem eu vi no Jornal Nacional o noticiário sobre a queda de vigas de um viaduto do rodoanel. Eles não falam nem em governo do Estado de S. Paulo, nem em PSDB. Não falam em José Serra. É só Rodoanel em São Paulo. Não falam o governo.

Altamiro Borges: Imagine se isso tivesse ocorrido numa administração do PT, do PSB, do PDT, do setor do PMDB aliado ao governo...

Uma das coisas mais impressionantes de como a mídia manipula – não temos que nos meter na vida pessoal de ninguém – foi o escarcéu que fizeram com a Marta Suplicy em São Paulo quando ela se separou. Ou o que fizeram com o Lula, no caso da Lurian, que foi uma determinante naquela batalha eleitoral (1989). E agora, o tal Fernando Henrique, o Fracassando Cardoso, reconhece que tem um filho (fora do casamento) que todo mundo sabia, a (revista) Caros Amigos já tinha dado...

Eu acho que o primeiro governo Lula foi tímido em relação à comunicação. Algumas coisas tiveram a ver com governabilidade, não tem jeito. Quem está fora faz mais críticas do que quem está lá vivenciando. Foi feito um pacto público com o setor financeiro para poder governar, a famosa Carta ao Povo Brasileiro. E foi feito um pacto, que me parece não público, com a mídia, principalmente com esse grupo que hoje monopoliza a mídia brasileira, a família Marinho. Então, foi muito limitado, ruim o primeiro mandato, na área de comunicação.

Já o segundo mandato deu boas sinalizações, como as que você mencionou, a Confecom e a TV pública. A constituição da Empresa Brasil de Comunicação é muito positiva. Está começando, ainda tem um problema seríssimo de recursos. A TV Brasil teria que ter fomento porque não dá para você concorrer com R$ 350 milhões com R$ 6 bilhões, da Globo. Tem problemas ainda de gestão, o movimento social não se sente participando da EBC. Em outras TVs públicas, de outros países, o movimento social tem uma presença maior, mas eu acho que a EBC tem um papel muito positivo – e que a gente nem está percebendo direito – que é o papel estruturante da rede pública no Brasil.

Tenho acompanhado as belíssimas experiências desenvolvidas nas TVs Educativas do Pará, de Sergipe, da Bahia. Você vê que há um papel estruturante de apoio da TV pública. Isso você vai sentir daqui a pouco, não adianta muita pressa. Então a iniciativa da EBC é muito boa. Não é pra menos que a Folha de S.Paulo pediu em recente editorial para fecharmos a EBC, a TV Brasil.

Outra atitude muito positiva foi a convocação da Confecom. O governo Lula mostrou coragem. Você tem 47 conferências temáticas que o governo Lula realizou em todo o país. Mobilizou-se 4 milhões de pessoas nesses 47 eventos temáticos. Não ter uma conferência de comunicação não seria uma boa sinalização. Portanto, a Confecom é outro dado de mudança de comportamento.

E você vê, eles (os donos da mídia) não estão gostando da Confecom. Não é pra menos que o governo monta uma comissão organizadora que tem oito entidades empresariais e seis se retiram. Seis das principais, entre as quais a entidade que representa a Folha, o Estadão, o Globo, que é a Associação Nacional de Jornais (ANJ). Retirou-se, também, a Associação Brasileira das Emissoras de rádio e TV, a ABERT, que representa a Rede Globo. O que, inclusive, para eles deve ser uma coisa terrível porque cadê o discurso da liberdade de expressão, da democracia que eles fazem? Isso é uma desmoralização total.

Na verdade, o que eles pregam não é liberdade de expressão, muito menos de imprensa. O que pregam é liberdade de empresa, de monopólios. Eles se acham acima do ser humano comum. Fogem do debate, tentam sabotar a Confecom. Aqui em São Paulo, por exemplo, contam com ajuda do governador (José) Serra que nem se dignou convocar a conferência estadual. Não vai ter Conferência de Comunicação convocada pelo governo e a Assembléia Legislativa está fazendo de tudo para sabotar essa conferência estadual também.

Há outro lado positivo também, a revisão dos critérios de publicidade oficial. Não é, ainda, a revisão ideal. Nós devíamos caminhar para um exemplo que já existe nos países europeus. Na publicidade oficial tem a questão do capitalismo onde prevalece o critério mercadológico da audiência e da tiragem. Mas não pode prevalecer apenas esse critério senão o dinheiro é para os mesmos sempre. Então, você tem que seguir outro critério que estimula a pluralidade e a diversidade. Várias entidades estão defendendo para a Confecom que se fixe na publicidade oficial 20% para estímulo da pluralidade e diversidade, para fortalecer, por exemplo, portais progressistas tipo agência Carta Maior, Revista Fórum, revista Caros Amigos e por aí vai.

Zé Dirceu: Houve também a mudança na distribuição geográfica.

Altamiro Borges: Esse foi um dado importantíssimo. É o que a Folha chamou pejorativamente de “Bolsa Mídia”, como se fosse uma forma de corromper os jornais e TVs. Então, na minha opinião, somando as medidas positivas do governo Lula na área de comunicação são a EBC, Confecom e publicidade mais regionalizada.

Zé Dirceu: Como você está avaliando até agora a Confecom?

Altamiro Borges: [Antônio] Gramsci dizia que era bom ser pessimista na análise e otimista na vontade da transformação. Eu estou muito satisfeito com o processo da Confecom. Primeiro, pelo seu papel pedagógico. Há três semanas houve uma bateria de conferências municipais. Aqui em São Paulo mesmo, foram umas dez ou doze. No Brasil inteiro, cerca de 15 mil pessoas se mobilizaram para discutir comunicação. Na Conferência da Bahia, 400 e poucos inscritos, em Minas idem, na capital paulista, 250 inscritos. Por mim, se terminasse aqui já seria até bom. A Confecom já cumpriu o seu papel pedagógico de envolver mais gente debatendo comunicação.

Até hoje nesse setor, algumas entidades tomaram a dianteira e tiveram papel importantíssimo, como o Fórum Nacional de Democratização da Comunicação (FNDC), o Intervozes que tem dado belas contribuições, a Associação Brasileira das Rádios Comunitárias (Abraço), a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), a Fitert dos radialistas, o Conselho de Psicologia... Mas é uma coisa muito pequena. São entidades que tiveram a visão de que a comunicação hoje é estratégica, tem centralidade na luta política. É ainda um grupo muito reduzido. A Confecom escancarou esse processo. Hoje, há muita gente debatendo. Na Conferência da Bahia, por exemplo, estavam lá os índios. As mulheres estão dando um show. Em todas as conferências estaduais e municipais mais da metade dos participantes é de mulheres porque elas sentem muito na pele a forma como a mulher é tratada na mídia.

Então, a Confecom já cumpriu esse papel pedagógico. Acredito que pós-conferência, estaremos num outro patamar. Sairemos com maior capacidade de organização. Ninguém participa da Confecom e volta para casa simplesmente. Junto às entidades que já desenvolvem esse trabalho, nós vamos agregar... Tivemos uma reunião das centrais sindicais aqui em São Paulo que foi muito importante, as seis centrais discutindo, tirando documento de 10 pontos para uma plataforma unitária. Então, dará mais organicidade à luta pela democratização da comunicação.

E por fim, aí sim, tem uma polêmica grande: muita gente diz que a Confecom não vai resolver nada. Eu acho que podemos ter vitórias pontuais, sinalizações. Primeiro porque o empresariado está dividido. Há um setor do empresariado que percebe que não dá para continuarmos com esse poder de monopólio de alguns grupos. E tem sugestões para dar, contribuições, por exemplo, na área de distribuição de TV paga.

Segundo, o governo tem dado sinalizações boas. Estou surpreso com as últimas falas do presidente Lula sobre a mídia. Ele é muito sagaz. Ontem mesmo, provocando o Kennedy (entrevista que o presidente deu ao “É Notícia”, programa do jornalista Kennedy Alencar na RedeTV!) para ver se ele entrava na Confecom, ele disse: “Nós vamos fazer a Conferência de Comunicação. Não estou querendo colocar ninguém contra a imprensa, mas a imprensa tem que perceber que não dá para continuar do jeito que está”. Eu acho que o governo tem dado sinalizações muito positivas.

Zé Dirceu: Em relação à radiodifusão comunitária, como você vê esse processo hoje?

Altamiro Borges: Está terrível. A postura diante da radiodifusão comunitária é muito ruim, é de criminalização. Você tem 8 mil radiodifusores comunitários processados. O (prefeito paulistano Gilberto) Kassab (DEM-PSDB) outro dia fez uma festa aqui em São Paulo passando o rolo compressor em cima de transmissores de radiodifusão comunitária. A Anatel continua torrando o saco das rádios comunitárias naquelas peruinhas. Já não chega a Polícia Federal (PF) – que tem feito trabalhos excelentes em outras áreas – ter que cumprir esse papel de prender e pegar equipamentos? Tem tanto bandido de colarinho branco por aí, e a PF tem que ficar enchendo as paciências de quem está fazendo rádio para a comunidade... Nessa questão da radiodifusão comunitária a posição hoje é muito ruim. Tem mais apreensão hoje das rádios comunitárias do que havia nos governos anteriores. A média é de uma por dia.

Zé Dirceu: Rádios piratas ou comunitárias? Quais estão fechando?

Altamiro Borges: Fecharam agora rádios comunitárias. Qual o problema que você tem na rádio comunitária? Primeiro é que o processo de outorga é muito lento - a não ser que o cara tenha algum esquema com quem manda. Há rádio comunitária que está há sete anos, 14 anos pedindo outorga e não consegue.

Zé Dirceu: É uma licença precária?

Altamiro Borges: Uma licença precária. A rádio comunitária é uma comunidade que está querendo fazer o seu trabalho. Veja um caso: há uma rádio comunitária feita por dois deficientes visuais, destinada a ajudar esse setor. Eles não conseguiram outorga! Acabou de falecer um deles. Veja a Rádio Favela de Belo Horizonte! Faz um trabalho belíssimo e já ganhou dois prêmios na ONU. Tem um filme a respeito inclusive. Numa conversa com o Misael [Avelino dos Santos], responsável pela emissora, ele te mostra o pulso que tem as marcas de algema. Ele foi preso várias vezes, fecharam a rádio várias vezes.

Por que isso ocorre? Porque a outorga não sai. A rádio fica clandestina e aí vem a perseguição. Na minha opinião, tem que primeiro acabar com o processo de criminalização das rádios comunitárias. Segundo, tem que fixar regras para evitar que elas sejam contaminadas - porque isso já existe. O professor Venício de Lima já demonstra isso. Cerca de 10% é de igreja. Outro percentual alto é vinculado a políticos fisiológicos. E uma parcela das comunitárias é comercial. Hoje, com outorga são 3 mil e há aproximadamente 14 mil em processo enfrentando essa burocracia da Anatel.

Um consenso em todas as Confecom – municipais e estaduais – é que não dá mais para continuar nesse processo de criminalização. Também é preciso estabelecer regras que impeçam que as rádios comunitárias se desconfigurem, É preciso otimizar o processo de outorga a partir e regular, também, porque você não pode ter dez rádios comunitárias no mesmo local. Mas a campanha que fazem contra é de um exagero tremendo.

Dizem que temos que tomar cuidado com as rádios piratas porque irá ocorrer o que acontece na Avenida Paulista – impedir a recepção e sintonização de emissoras de rádio. Mas, na Paulista não tem rádio pirata. Tem convencional. Então, já que querem criticar, que usem um exemplo correto.

Óbvio que tem que ter regulação. Mas, temos que tomar cuidado com o exagero. E tem aquela coisa de que “rádio pirata derruba avião”. Se rádio pirata derrubasse avião, Osama Bin Laden teria utilizado outra tática nos Estados Unidos. Isso é conversa fiada. A potência que tem uma rádio pirata, de 25 watts, derruba avião?

Temos que parar com esse processo de criminalização e evitar a utilização errada, seja para que fins, de rádio comunitária. E acelerar o processo de outorga. E mais do que isso, devíamos fazer o que o Uruguai está fazendo. O professor [Denis de] Moraes tem um livro belíssimo, “A batalha da mídia” no qual descreve isso, essa legislação e processo uruguaios com a radiodifusão comunitária.

No Uruguai é um primor, porque além de legalizar eles incentivam, criam redes, facilitam a aparelhagem, barateiam, promovem cursos para aperfeiçoamento porque sem capacitação será uma rádio precária. Se nós aplicássemos aqui o que tem sido feito em termos de legislação e de política pública de radiodifusão comunitária em outros países... Essas rádios cumprem um papel muito bonito. Você dá mais voz, para mais gente poder falar. A rádio comunitária é a voz de quem não tem voz. Isso cria um laço na comunidade. E é de uma criatividade enorme. Nesse ponto a gente pode avançar na Confecom. Eu acho muito difícil sair da Conferência Nacional deixando esse debate da rádio comunitária do jeito que é hoje, com a Anatel e a PF perseguindo as pessoas.

Zé Dirceu: Como você vê a Internet hoje?

Altamiro Borges: É a segunda coisa que eu acho que a gente avança na Confecom. Vai se criando um consenso quanto à necessidade do processo de inclusão digital. Até por conta das contradições no próprio setor empresarial.

A Internet é um barata. É a tal da dialética. Da mesma forma que houve a aceleração desse processo de rotação tecnológica, de quem tem maior poder econômico, tem mais força para fomentar; por outro lado, essas novas tecnologias abrem brechas. A Internet cria uma brecha comparável ao que foi o rádio na década de 20. O rádio também criou uma brecha na comunicação. A Internet está criando uma brecha maior, que nos leva a situações interessantíssimas. Você hoje tem uma crise violenta da mídia impressa tradicional – saber que o The New York Times teve que penhorar o seu prédio é um barato.

Tem muitos jornais fechando ou indo para a Internet. Pega aqui em São Paulo. A Folha na década de 80 tirava 1 milhão e pouco de exemplares de sua edição dominical. Hoje, ela tira 290 mil exemplares. Isso é dado oficial. A queda foi violentíssima. Está havendo uma migração.

Zé Dirceu: No seu mais recente livro, “A ditadura da mídia", você fala muito do Getúlio até agora. Por quê? Como se deu o processo de concentração e monopolização da mídia e da informação no Brasil? O que tem no passado que podemos aprender nesse sentido? Foi o poder público que permitiu esse processo de concentração? Hoje a mídia, realmente está vulnerável? Podemos falar que a mídia é um partido político?

Altamiro Borges: A mídia nunca teve tanto poder, porque hoje ela é diferente do que era a imprensa na década de 40, 50, 60, em que ainda era composta de grupos familiares frágeis. Mesmo O Globo era um jornal... Ele passa a ser o que é com a ditadura. Naquele tempo, eram grupos ainda familiares e frágeis. Hoje são grandes conglomerados com muitos interesses envolvidos. Não é mais só informação – é, também, mas tem entretenimento, cultura, etc. Não é mais só uma plataforma, é o jornal, a revista, a rádio, a TV, a Internet, a produtora, a distribuidora.

Zé Dirceu: Eles queriam ser donos das telecomunicações e agora não querem que as teles entrem na terra, na área deles. Quebraram por causa disso.

Altamiro Borges: É, apostaram na privatização, no desmonte do sistema para eles abocanharem, mas aí dançaram.

Mas a mídia nunca foi tão poderosa. O professor Denis de Moraes tem um estudo que mostra isso. Hoje você tem nove megaconglomerados no mundo – Disney, Sony, etc. Depois 40, numa segunda lista, em que se sobressaem os grupos Clarin, Cisneros, Globo. Esse é o mundo. Mundo da mídia, com muito poder, diferente do que foi no passado. Isso tem a ver, no meu entender, com a lógica do próprio sistema que é de concentração, com a desregulamentação e também com a revolução tecnológica que exige investimento. Nesse sentido, dá um grande poder econômico e ao mesmo tempo, um grande poder ideológico.

Quem primeiro trabalhou essa coisa da imprensa como partido do capital foi um sujeito chamado Gramsci que tem uma discussão mais atual hoje do que quando ele escreveu na década de 20. Ele disse que quando as instituições do sistema entram em crise, a imprensa ocupa o papel do partido do capital. E isso é cada vez mais forte. Você saber que o Bush contou 930 mentiras para justificar a invasão do Iraque e que a mídia repercutiu acriticamente isso! Só o The New York Times fez uma criticazinha pequeninha sobre isso. É uma vergonha. Veja a mídia aqui, como ela está tratando o golpe de Honduras... É governo “interino”, governo “de fato”. Que governo “de fato”?

Esse poder hoje é mais vulnerável. O que explica essa vulnerabilidade? Primeiro é pela própria revolução da tecnologia. A Internet está fazendo falir jornais tradicionais. E está ocorrendo um fenômeno de migração da TV para a Internet, sobretudo com a juventude. O paradoxo é esse. A tecnologia abre essa brecha. O editor do site Rebelión, Pascual Serrano, está insistindo muito na tese de perda de credibilidade. A mídia está perdendo a credibilidade. Há muita desconfiança, hoje, em relação à mídia.

Esse negócio que o Lula fala, desses que se acham formadores de opinião, é verdade. Eles não formam mais opinião nenhuma. Então, há perda de credibilidade. E há outro fator que explica esse paradoxo: em função de mudanças políticas, principalmente com essa guinada a esquerda na América Latina, há menos relação carnal com os Estados Unidos, mais postura de integração.

Zé Dirceu: No caso do Brasil, o modelo monopólico da Globo termina por atrair o capital estrangeiro. Ela não se associou a esse capital, ela defendeu e estimulou a privatização selvagem, mas não na área dela. Só que agora vê que não tem como impedir. Essa é a maior fragilidade do Brasil. Ou eles se associam... Porque de uma maneira ou de outra (o capital estrangeiro), eles vão chegar. Não há como impedir isso, porque na hora em que tiver cota nacional, não tem explicação nenhuma para impedir o capital estrangeiro de entrar.

Altamiro Borges: São essas mudanças na América Latina, políticas, uma guinada mais à esquerda, que colocou a mídia no banco dos réus pelo papel que ela teve na época da ditadura... O Clarín, o El Mercúrio... Ela também foi colocada no banco dos réus por ter sido a principal alavanca ideológica do projeto neoliberal. A grande imprensa justificou todo o desmonte do Estado. Apresentou o setor público como reduto de marajás e por aí vai. E, também, porque ela joga contra esses governos de esquerda. Na Argentina, o Clarín estimulou esse locaute do agronegócio. Teve papel à direita semelhante na Bolívia.

O Emir Sader tem uma pesquisa que mostra que 83% das notícias no ano de eleição, nas rádios TVs e jornais, foram contra o (presidente) Evo Morales. E o povo votou nele. Então essa mídia está no banco dos réus e esses governos começam a efetuar mudanças muito interessantes. Isso fragiliza esse poder ditatorial midiático em países como Uruguai, Argentina, Venezuela, Bolívia (que agora tem um jornal para disputar hegemonia, constituiu uma rede pública inclusive). Há mudanças muito interessantes na Nicarágua. Então, são esses elementos que explicam a fragilidade. A mídia é poderosa e ao mesmo tempo está fragilizada. Agora, quanto ao poder político, é exatamente isso que Gramsci já alertava.

Zé Dirceu: A mídia hoje organiza a agenda da oposição, cobra inclusive. Há articulista no Estadão, por exemplo, escrevendo artigo para dizer que nós estamos querendo que o Aécio não seja vice do Serra.

Altamiro Borges: Foi a Miriam Leitão que escreveu semana passada que não existia oposição no Brasil? Que a única oposição era a mídia? Se você pegar a CPI da Petrobrás, ela é uma lição. Nem o DEM nem o PSDB têm interesse sobre isso.

Zé Dirceu: Eles fizeram a encenação, mas queriam que acabasse logo.

Altamiro Borges: Pelo peso da Petrobras, nem essa turma topava a CPI. Luis Nassif está falando que essa CPI foi o mensalão da mídia – ela forçou a CPI. O senador Agripino Maia (DEM-RN) iria querer a CPI na Petrobrás? (Um filho do senador teria empresa fornecedora de combustível de aviação, com negócios com a Petrobras). Constituíram a CPI, aí a mídia tirou o time. A ponto do senador Agripino Maia ter dito: “A imprensa nos abandonou na CPI”.

Zé Dirceu: E na sua avaliação, é boa para o país a aprovação do PL-29 (o projeto ainda se encontra em tramitação)?

Altamiro Borges: O PL-29 está meio morto, Zé. Ele foi muito desfigurado. Marcos Dantas, professor do Rio, diz que apoiou o PL-29, o projeto inicial que teve como relator o deputado Jorge Bittar (PT-RJ) porque permitiria por ordem nessa caso da TV a cabo, produção nacional, cotas. O projeto original permitiria um regramento que, na área de distribuição, significaria um baque no monopólio. Só que o projeto inicial foi desfigurado. Acho que hoje ele está ruim. Essa semana mesmo já se fala em retirar cotas da PL-29.

Zé Dirceu: A aprovação original permitia acabar com a exigência de 30% de participação máxima do capital estrangeiro na mídia por conta das cotas. O único argumento que eles tem é a desnacionalização.

Altamiro Borges: Temos que tomar cuidado com duas arapucas: uma a de que eles defendem a liberdade de expressão e nós somos contra. Mesmo o termo controle social não é um bom termo reforça o truque deles: “Vocês são contra a liberdade de expressão”.

Zé Dirceu: Melhor que o termo controle social é usar regulação. É melhor falar o que é concretamente, direito de resposta, respeito à honra e à imagem que está na Constituição, direito de resposta e ao contraditório e democratização. E não pode ser um monopólio. Hoje é um cartel. Precisa ter um órgão regulador. Por que não pode ter um Conselho Federal de Jornalista? Hoje, o jornalista faz o que quer.

Altamiro Borges: E tem que ter participação da sociedade. Precisa haver o Conselho Nacional de Comunicação, conselhos estaduais, etc.

Zé Dirceu: Precisa ter um órgão regulador. Por que não pode ter um Conselho Federal de Jornalista? Hoje, o jornalista faz o que quer.

Altamiro Borges: Sem regulação, ele se sente acima do Estado de Direito.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Mídia tenta socorrer José Serra

José Serra vive um dos piores momentos da sua ambição presidencial. Ele só não perde noites de sono porque é notívago. Além do “fogo amigo” de Aécio Neves e do demo Rodrigo Maia, que criticam sua soberba, o governador também despenca nas pesquisas. Até o jornal O Estado de S.Paulo, que não esconde a torcida por sua candidatura, já constatou a péssima fase do tucano. Em artigo publicado nesta quarta-feira, o jornalão registrou, resignado, a queda de 20 pontos percentuais de José Serra nos últimos 11 meses, segundo a pesquisa Sensus/CNT.

Diante deste cenário tenebroso para o bloco liberal-conservador, a mídia golpista se assanha para tentar socorrer Serra. Somente nesta semana, ele já participou de dois programas de auditório. Para a apresentadora Luciana Gimenez, da Rede TV, o tucano falou por mais de uma hora, sem ser incomodado por perguntas embaraçosas. Parecia uma propaganda eleitoral “gratuita” do PSDB. Um dia antes, ele foi entrevistado por Ratinho, do SBT. Para não se antipatizar com a audiência popular destes programas, José Serra chegou a defender o Bolsa-Família.

Maratona midiática do tucano

“O Lula pegou os programas que já existiam, como o Bolsa Alimentação – que eu criei quando era ministro da Saúde –, o Vale Gás, etc., e juntou no Bolsa Família. Expandiu. Fez bem, correto. Ele pegou o negócio e melhorou. É o que eu vou fazer. Se eu for presidente, eu pego e melhoro”, afirmou o presidenciável desesperado, na maior caradura. O “entrevistador” Ratinho nem sequer questionou porque, então, PSDB, DEM e PPS vivem sabotando os programas sociais do atual governo, acusando-os de “populistas” e de “gastança pública”. Foi um típico show de auditório!

A maratona midiática de José Serra se intensificou após as recentes quedas nas pesquisas, o que evidencia a relação promíscua existente entre os tucanos-demos e os barões da mídia. Além das constantes aparições nas emissoras de TV, ele tem dado várias entrevistas às rádios e reforçou a sua presença na mídia impressa, opinando sobre quase tudo. Em artigo na Folha de S.Paulo, José Serra demonizou a visita do presidente do Irã, criticando as “alianças” do governo Lula. Sobre o golpe de Honduras ou as bases militares dos EUA na Colômbia, o tucano nada falou.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Serra visita o chefão da revista Veja

O jornal O Estado de S.Paulo noticiou nesta semana que o governador José Serra, que trava uma guerra fratricida para ser o presidenciável tucano, fez uma visita de cortesia ao amigo Roberto Civita, o chefão da revista Veja. Não há maiores detalhes sobre o encontro, como sempre dos mais sigilosos. Mas dá para se imaginar o que rolou na conversa amistosa... e coisa boa não foi!

Talvez o grão-tucano tenha implorado o apoio na batalha sucessória da Editora Abril, a poderosa corporação midiática que edita a Veja – principal palanque da oposição direitista e hidrófoba ao governo Lula. Conhecido por suas táticas sujas e desleais, talvez José Serra também tenha repassado mais algumas intrigas contra seus adversários, seja Dilma Rosseff ou mesmo o tucano Aécio Neves.

Generosa ajuda financeira

Já Roberto Civita talvez tenha aproveitado a cordial visita para agradecer a generosa ajuda que o governo paulista tem dado à sua editora. Nos últimos anos, José Serra assinou vários contratos de compra de publicações do Grupo Abril, a maioria deles sem licitação pública. Num dos mais recentes, os cofres do Estado foram saqueados na aquisição de 220 mil assinaturas da revista Nova Escola, o que injetou R$ 3,7 bilhões nos cofres da famíglia Civita.

Esta generosa ajuda, feita com dinheiro público, está sendo questionada pelo Ministério Público Estadual. Em setembro, ele acolheu representação do deputado Ivan Valente (PSOL) e abriu o inquérito civil número 249 para apurar as irregularidades nos contratos firmados entre os amigos Serra e Roberto Civita. Segundo levantamento do parlamentar, “cada vez mais, esta editora ocupa espaço nas escolas de São Paulo. Isto totaliza, hoje, cerca de R$ 10 milhões de recursos públicos destinados a esta instituição privada, considerando apenas o segundo semestre de 2008”.

Relações promíscuas com os tucanos

Além da bondade financeira, o presidenciável tucano está cada vez mais afiado com o discurso neoliberal da famíglia Civita. Para espantar os fantasmas do passado, ele assumiu de vez a sua postura autoritária e elitista – bem ao gosto dos editores golpistas da Veja. Talvez, Serra tente conquistar a simpatia que goza outro serviçal tucano, o ex-presidente FHC. No artigo “O jogo do milhão”, publicado na revista Carta Capital de março de 2002, o jornalista Bob Fernandes, revelou a que nível chega essa promiscuidade. Vale a pena reproduzir um trecho da elucidativa matéria:

“Para que se entenda qual é a relação entre poderes constituídos no Brasil, vale uma rápida visita ao gabinete de Civita, no 24º andar do número 7.221, Marginal Pinheiros, São Paulo. O edifício é dos tais inteligentes. Monumental, debruça-se sobre o fétido Rio Pinheiros, uma espécie de divisa entre o primeiro e o quarto mundos: a favela do Jaguaré não muito distante da Abril, a meio caminho da Editora Globo... A mesa de Civita fica diante do aparador. Sobre ele, fotos. A mulher, os filhos, a família. Além dos Civita, mais uma, só mais uma foto. De Fernando Henrique Cardoso.

“Por mais de uma vez, a mais de um amigo, Civita explicou: ‘Pensam que a Abril apóia o programa de governo do Fernando Henrique. A questão está mal colocada. Não é a Abril que apóia o programa do Fernando Henrique. É o Fernando Henrique quem apóia o programa de governo da Abril”.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O filho de FHC e o jornalismo bastardo

A colunista Mônica Bergamo, uma das poucas ainda com alguma isenção na mídia hegemônica, confirmou nesta semana o que todos os jornalistas medianamente bem informados já sabiam: o ex-presidente “Fracassando” Henrique Cardoso teve um filho com a repórter Miriam Dutra, da poderosa TV Globo. Sem especular sobre os motivos desta curiosa revelação, o fato comprova que a imprensa brasileira é mais bastarda do que o filho ocultado há 18 anos por FHC.

Segundo a colunista, o ex-presidente finalmente decidiu assumir a paternidade de Tomas Dutra Schmidt. Ele teria viajado na semana passada para Madri, onde reside Miriam Dutra, para acertar a documentação. Eles tiveram um caso amoroso na década de 90, quando FHC era senador e ela trabalhava na sucursal brasiliense da TV Globo. Deste relacionamento extraconjugal nasceu, em 1991, o menino. Na época, FHC era casado com Ruth Cardoso, com que teve outros três filhos. Em 1992, Miriam Dutra deixou o Brasil, virando “correspondente” da TV Globo em Lisboa. Na sequência, ela se fixou em Madri, permanecendo totalmente “clandestina” na Europa.

As diferenças nos escândalos

Durante anos, o fato foi ocultado pela mídia hipócrita, a mesma que vive esculhambando a vida dos seus adversários políticos. Apenas a revista Caros Amigos desnudou o episódio numa edição de 2001, que teve como manchete: “Por que a imprensa esconde o filho de 8 anos de FHC com a jornalista da Globo?”. Agora, confirmado o caso, a mídia volta a mostrar toda a sua parcialidade. O fato sumiu das manchetes e nem sequer aparece nas telinhas da TV – que atingem milhões de brasileiros. Na prática, a imprensa brasileira continua ocultando o curioso caso extraconjugal.

Bem diferente do comportamento adotado em outros casos – seja quando da separação de Marta Suplicy, ou na podridão contra a filha que Lula teve quando viúvo ou na mais recente campanha midiática contra Renan Calheiros, aliado de Lula, que o retirou da presidência do Senado. Neste último caso, a revista Veja criou a vinheta “Renangate”, estampou a manchete “As revelações de Mônica Veloso” e a chamada “Advogados de Renan apareceram com duas sacolas de dinheiro”. Será que, agora, a revista Veja dará capa para FHC, o amiguinho da famíglia Civita?

“Jornalismo vagabundo” de Josias de Souza

Também já surgem os colunistas de aluguel para abafar o caso. Josias de Souza, o mesmo que usou a estrutura do governo FHC para satanizar o MST, afirmou na Folha que a revelação não tem qualquer relevância. Como contestou o blogueiro Rodrigo Vianna, esta versão é canhestra. “O fato de FHC ter um filho fora do casamento tem relevância porque o filho é com uma repórter da TV Globo, que é concessionária de serviço público e tem influencia nos processos eleitorais”. Para ele, o silêncio da mídia nestes 18 anos revela todo seu poder de manipulação da opinião pública.

“As perguntas que devemos fazer são: por que a TV Globo aceitou ‘esconder’ Miriam Dutra na Europa? O que a Globo ganhou em troca? Como FHC pagava a pensão? Ou não pagava? São questões relevantes, sim, ao contrário do que tentam demonstrar alguns colunistas da (ex) grande imprensa”. No mesmo rumo, o blogueiro Luiz Carlos Azenha postou o artigo intitulado “A cara de pau de Josias de Souza (e o filho de FHC)”. Para ele, o badalado colunista da Folha omite as questões essenciais neste episódio, misturando casos para limpar a imagem do ex-presidente.

Bastardo no Dicionário Aurélio

“Por que a mídia poupou FHC durante 18 anos, se o nascimento do filho era um segredo de Polichinelo? Por que soubemos do filho de Renan Calheiros com uma jornalista quando a criança era bebê, mas do filho de FHC só soubemos ‘oficialmente’ depois de 18 anos? Por que soubemos da suspeita de que uma empreiteira ajudava a sustentar o filho bebê de Renan Calheiros, mas nada soubemos sobre quem pagou as contas do filho de FHC durante 18 anos? Quem pagou para manter o filho e a mãe do filho de FHC exilados na Europa durante 18 anos? FHC comprou o silêncio da mídia? A Globo recebeu vantagens para exilar mãe e filho na Europa? O senador FHC exilou mãe e filho para poder concorrer à Presidência?”, questiona Azenha.

Para ele, o artigo de Josias de Souza sobre o episódio “é um exemplo acabado de jornalismo vagabundo”. Pode-se dizer, também, que é um típico caso de “jornalismo bastardo”. Segundo o Dicionário Aurélio, bastardo, entre outros significados, é o “degenerado da espécie a que pertence”. O termo serve bem para qualificar a imprensa brasileira, que agride todos os padrões éticos do jornalismo, e o próprio FHC, que renegou o seu passado e o seu filho.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Urgência do novo marco regulatório (6)

A efetiva democratização dos meios de comunicação no Brasil passa pela urgência de um novo marco regulatório para o setor. A atual legislação é ultrapassada, datada de 1962, carregada de vícios e não dá respostas aos vertiginosos avanços tecnológicos na área. Além de coibir os monopólios e de regulamentar outros princípios da Constituição de 1988, como o que garante o respeito à pluralidade de opiniões, a nova legislação deve enfrentar os desafios do futuro.

O processo de convergência digital, no qual as multinacionais avançam sobre a mídia, torna este debate ainda mais atual. Hoje é preciso impor regras para evitar a desnacionalização do setor e para garantir a produção e a cultura nacionais. Apesar das restrições do padrão japonês adotado pelo governo, a nova legislação deve regular a implantação da TV e da rádio digital, protegendo o conteúdo nacional e explorando seu potencial na promoção da diversidade e da inclusão social. Não pode depender do resultado da disputa entre as operadoras de telefonia e os barões da mídia.

Disputa entre teles e radiodifusores

“No bojo da convergência tecnológica, o instinto de sobrevivência dos radiodifusores e a ânsia pela entrada no mercado do conteúdo audiovisual das chamadas teles deverão ser a força motriz da mudança na legislação... É preciso garantir que o campo não seja ocupado apenas pela polarização radiodifusores x teles, mas pelo conjunto dos atores que tem propostas para a reformulação legal”, alerta Jonas Valente, integrante do Coletivo Intervozes.

O novo marco regulatório deve fixar políticas públicas que garantam o acesso da população aos avanços tecnológicos. O Brasil ainda está muito atrasado neste campo, seja no acesso à internet, às salas de exibição de cinema ou mesmo à telefonia. “Em 1997, o numero de telefones por 100 habitantes era de 11,7%; em 2004, passou para 29%. Apesar de a telefonia chegar praticamente a todos os 5.484 municípios, nos 5 mil mais pobres ela é a mesma de antes da privatização; 11% ou 7,5 milhões de linhas... Assim, grandes parcelas da população estão excluídas dos avanços tecnológicos. Esse quadro, já amplamente diagnosticado pelo governo Lula, impõe a necessidade de um novo modelo institucional”, que garanta o “adequado equilíbrio entre os sistemas privado, público e estatal” e evite “a concentração da propriedade”, propõe o professor Israel Bayma.

Participação democrática da sociedade

A nova legislação também deveria fixar mecanismos democráticos de controle social dos meios de comunicação. Ignacio Ramonet, diretor do jornal Le Monde Diplomatique, defende a criação de observatórios de mídia nas escolas e espaços públicos para monitorar o que é divulgado. “A informação, como os alimentos, está contaminada. Envenena o espírito, polui nossos cérebros, nos manipula, nos intoxica, tenta instilar em nosso inconsciente idéias que não são nossas”. Daí a urgência de um “quinto poder” fiscalizador. No mesmo rumo, é preciso reativar o Conselho de Comunicação Social, previsto na Constituição, mas que está esvaziado. Há ainda a proposta dos sindicatos de jornalistas da criação dos conselhos de redação, como instrumento de luta da categoria e também como contraponto à manipulação, à censura e à pressão dos donos da mídia.

Como conclui Marcos Dantas, a comunicação passa por aceleradas mudanças. Em curto espaço de tempo, nada será como antes neste setor. A televisão, por exemplo, “não será apenas esta que temos: aberta, unidirecional, oferecida por grandes grupos empresariais e sustentadas pela grande publicidade. A TV poderá ser também local ou comunitária, via internet”. O rumo das mudanças dependerá da correlação de forças na sociedade e da construção de um novo marco regulatório e legal. “Na verdade, o capitalismo desenvolveu essas tecnologias e vai moldando os seus usos, ao seu gosto. Nada impede, porém, que o povo trabalhador possa disputá-las, delas se apropriar e a elas dar novos e mais democráticos rumos”, adverte o professor Marcos Dantas.

Propostas concretas

Para responder aos entraves do passado e aos desafios do futuro, o novo marco regulatório deve fixar, entre outras medidas, as seguintes balizas:

- Deflagrar o debate no Executivo e Legislativo com vistas a regulamentar o setor, tendo como ponto de partida os princípios da Constituição de 1988 e como perspectiva a nova conformação da comunicação decorrente do processo de convergência digital;

- Criação do Conselho Nacional de Comunicação Social, vinculado diretamente à Presidência da República e composto por representantes eleitos dos movimentos sociais, com o papel de órgão regulador do setor; criar congêneres em todos os estados e nos principais municípios brasileiros;

- No processo de convergência digital, garantir espaço no espectro para emissoras de televisão dos movimentos sociais.

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Investir na inclusão digital (5)

Criada nos EUA para fins militares e impulsionada pelos circuitos financeiros do capitalismo, a internet tem transformado o mundo das comunicações. Os mais otimistas chegam a falar numa “revolução”, que permitiria a democratização da produção de conteúdos e da sua difusão. Outros, mais cautelosos, apontam que a tendência monopolista do capital já se faz sentir na centralização dos portais da internet, além do que o capital imporá formas de controle. O projeto do senador tucano Eduardo Azeredo, já batizado de AI-5 digital, confirma este perigo, a exemplo do ataques desferidos pelo presidente-terrorista George Bush e pelo fascistóide Nicolas Sarkozy na França.

Independentemente das tendências futuras, a internet já provoca enormes abalos no setor. Vários jornais e revistas perderam tiragens, faliram ou viraram online. A própria linguagem da televisão é afetada por esta nova forma de comunicação, mais ágil e interativa. Muitos protestos políticos, a partir da manifestação contra a globalização neoliberal que paralisou Seattle em 1999, já são convocados por sítios e blogs progressistas. Manipulações da mídia hegemônica são desnudadas na internet. De 1999 a 2006, mais de 47 milhões de blogs entraram no ar. Neles circulam 1,2 milhão de novos artigos por dia, ou 50 mil por hora, escritos por cerca de 35 milhões de pessoas.

Potencialidades e limites da internet

Entusiasta da internet, Bernardo Kucinski afirma que ela “é a maior revolução nas comunicações desde a invenção de Gutenberg. Não admira que tenha reaberto uma nova era de encantamento do ser humano com a comunicação e com a arte de escrever... Na articulação das ONGs e dos movimentos sociais, a internet tem tido papel decisivo, recuperando com grande vantagem o antigo papel atribuído por Lênin à imprensa como ‘organizadora do movimento operário’. Na era da globalização, ela se tornou uma organizadora da cidadania, como expressa o Fórum Social Mundial. Este certamente não teria existido sem a internet. Ela também deu viabilidade técnica ao exercício da democracia direta e acesso direto do cidadão aos serviços do Estado”.

Esta “essência libertária”, porém, pode ser castrada pela exclusão digital, alerta Sérgio Amadeu, outro entusiasta da internet. “Quanto custa se conectar à sociedade da informação? Para acessar a internet, a rede mundial de computadores, é preciso pagar mensalmente um provedor de acesso e o gasto com a conta telefônica. Além disso, é preciso ter um computador que custa mais de mil reais. Em um país com quase um terço da sociedade abaixo da linha da pobreza, gastar algo em torno de 40 reais por mês pelo uso mínimo de conexão e conta telefônica é impossível para a maioria da população. Essa é a nova face da exclusão social”, explica didaticamente.

Banda larga para todos

Para superar este gargalo, ambos concordam que o Estado deve ter papel pró-ativo. Não dá para deixar esta tecnologia nas mãos “invisíveis” do deus-mercado. A inclusão digital deve ser tratada como prioridade pelo Estado, com políticas públicas de universalização deste direito. É urgente regular o setor para universalizar o acesso à internet. O preço da banda larga no Brasil é dos mais elevados no mundo devido à desregulamentação das telecomunicações. Somente 10 milhões de brasileiros têm acesso à banda larga. É preciso também uma política mais ofensiva para baratear os aparelhos, inclusive superando a “ditadura de Bill Gates” através do software livre.

Segundo a PNAD de 2004, apenas 16,6% das residências nacionais tinham computadores. Dados do Ibope de 2007 revelaram que somente 14,1 milhões das residências tinham acesso à internet. “Devemos elevar a questão da inclusão digital e da alfabetização tecnológica à condição de política pública”, defende Sérgio Amadeu. O jornalista Renato Rovai, editor da Revista Fórum, tem levado a bandeira da “banda larga para todos”. Entre outras exigências, a Confecom poderia incluir três pontos essenciais na atualidade:

- Contra o AI-5 digital do senador Eduardo Azeredo (PSDB/MG) e por direitos civis na internet, garantindo um ambiente legal e regulatório que respeito o caráter aberto da rede, o direito à privacidade e às liberdades;

- Universalização do acesso à banda larga como serviço, público, com o uso dos R$ 7,3 bilhões do Fundo de Universalização do Sistema de Telecomunicações (Fust); estímulo aos programas federal, estaduais e municipais de internet gratuita; criação de novos telecentros;

- Garantir a infra-estrutura pública para a banda larga a partir dos parques de fibras óticas da Petrobras, Furnas, Chesf e Eletronet, com a gestão centralizada da Telebrás.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Incentivar as rádios comunitárias (4)

A radiodifusão comunitária é recente no país e já demonstrou o seu enorme potencial na luta pela democratização das comunicações. Ela dá voz a quem não tem voz. Permite que as comunidades “excluídas” expressem seus anseios e reivindicações, divulguem suas criações culturais, prestem serviços à população. Essa experiência no Brasil surgiu no início dos anos 1980, ainda na fase sombria da ditadura militar, e só foi reconhecida legalmente em 1998. Na Bolívia, as rádios comunitárias nasceram na década de 1950 no bojo das greves dos mineiros; já no Chile, elas contribuíram para as vitórias da Unidade Popular, a coalizão socialista de Salvador Allende.

Temendo a sua concorrência, a radiodifusão comunitária é alvo da fúria da mídia hegemônica. Já os governos, sob pressão dos empresários, investem para criminalizá-la. O governo Lula foi até mais realista do que o rei, batendo recordes de perseguição. Segundo a Associação Brasileira das Rádios Comunitárias (Abraço), de 2002 a 2007, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Polícia Federal fecharam mais de 15 mil rádios comunitárias.

No mesmo período, “também foram abertos mais de 20 mil processos e cerca de 5 mil militantes foram condenados judicialmente por tentar exercer o direito de livre expressão”, alerta a Abraço. O atual ministro das Comunicações, Hélio Costa, dono da rádio Sucesso FM, de Barbacena (MG), vetou todos os projetos de avanço neste setor e recrudesceu o fechamento das emissoras.

Burocracia e fisiologismo

Além da repressão, tudo é feito para inviabilizar a legalização da radiodifusão comunitária. A burocracia é infernal, com inúmeros obstáculos administrativos. Estudo feito pelo Sistema de Controle de Radiodifusão, em novembro de 2006, apontou a existência de 13.595 pedidos de rádios comunitárias acumulados no Ministério das Comunicações – três vezes mais do que os 4.400 verificados no início de 2003. José Sóter, dirigente da Abraço, critica os burocratas do ministério, “subservientes à Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) e aos interesses dos monopólios da comunicação, e a falta de gente que esteja comprometida com a efetivação do serviço de radiodifusão comunitária como política pública de comunicação”.

Estudo recente, no qual foram pesquisadas 2.205 rádios comunitárias autorizadas pelo Ministério das Comunicações (80,44% do total das legalizadas), ainda aponta para outro grave perigo: o de que estas concessões sejam utilizadas como moeda de barganha, servindo a políticos fisiológicos e credos religiosos. A pesquisa indica que “a maioria das rádios comunitárias funciona no país de forma ‘irregular’ porque não se logrou ser devidamente autorizada; e, entre a minoria autorizada, mais da metade opera de forma ilegal. Entre as 2.205 rádios pesquisadas, foi possível identificar vínculos políticos em 1.106 – ou 50,2% delas... Há, também, um número considerável de rádios com vínculos religiosos: 120 delas, ou 5,4% do total”. Este deformação revelaria a existência de um “coronelismo eletrônico de novo tipo, envolvendo as outorgas de rádios comunitárias”.

Os riscos do padrão digital

Para complicar ainda mais o quadro, o setor passa por um processo de mutação tecnológica para sua digitalização. O Ministério das Comunicações, dominado pelos barões da mídia, já anunciou que prefere o padrão digital dos EUA, o IBOC. Várias rádios foram autorizadas a realizar testes com o novo padrão, criando um fato consumado – sem qualquer consulta à sociedade. Além de ser propriedade de uma única empresa, que cobrará elevados royalties, essa tecnologia ocupa o espectro de forma predatória, fechando espaços para as transmissões. Ele inclusive avança sobre fatias de freqüências ocupadas pelo sistema analógico. Ao encarecer os equipamentos e restringir as transmissões, esse padrão de digitalização poderá asfixiar a radiodifusão comunitária no país.

Ao invés de ser criminalizada, a radiodifusão comunitária deveria ser incentivada pelos poderes públicos. Diante do golpismo da ditadura midiática, ela é uma arma contra-hegemônica decisiva na defesa da democracia. O Estado deveria baratear seus equipamentos e promover oficinas para capacitar os radiodifusores. Mudanças na legislação deveriam garantir o aumento do número de freqüências das emissoras e ampliar o limite da área e o potencial de seu alcance – hoje restrito a um quilometro. A urgente criação de um sistema brasileiro de rádio digital serviria para evitar a monopolização do setor. Além disso, o poder público deveria garantir os meios de sustentação financeira destes veículos, investindo na construção de conteúdos de qualidade e plurais, e criar barreiras para coibir sua apropriação por setores fisiológicos e para garantir o seu caráter laico.

Propostas concretas para o setor

Para agilizar a legalização das rádios, a Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) propõe medidas simples, como a descentralização dos processos de concessão, redução dos prazos de tramitação e zoneamento da radiofreqüência para definir o canal e a potência para cada localidade. Já a Associação Mundial das Rádios Comunitárias (Amarc) propõe mudanças urgentes no marco regulatório.

Entre outros pontos, propõe que “as comunidades organizadas e entidades sem fins lucrativos tenham direito a usar a tecnologia de radiodifusão disponível, tanto analógica como digital”; que “os meios comunitários tenham assegurada sua sustentabilidade econômica, independência e desenvolvimento”, por meio de patrocínios e publicidade oficial; e a criação “de fundos públicos para assegurar o seu desenvolvimento” e de “políticas públicas que desonerem ou reduzam o pagamento de taxas e impostos, incluindo o uso de espectros”.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Redistribuir a publicidade oficial (3)

A publicidade é a principal fonte de recursos da mídia hegemônica. O faturamento com anúncios publicitários, que superou R$ 21,4 bilhões em 2008, garante os investimentos neste setor de alta tecnologia e os lucros dos empresários, reforçando os impérios midiáticos. Nada é dado de graça, como costuma tergiversar a Associação Brasileira de Rádio e Televisão (Abert) para se contrapor ao controle público. A exibição “gratuita” do conteúdo é paga pela publicidade e os altos custos de produção e veiculação são repassados ao preço da mercadoria. Além de seduzir o consumidor, o anúncio cumpre o papel ideológico de “vender” um estilo de vida, individualista e consumista.

Para o sociólogo Pedro Hurtado, “a publicidade, à margem da sua finalidade comercial, é pura e dura propaganda do modo de vida e de pensamento inerente à ideologia social predominante na atualidade: o consumismo-capitalismo. A publicidade não apenas vende produtos, mas também impõe um modo de vida, valores morais e culturais, códigos simbólicos e, em definitivo, uma ideologia... O consumismo é uma forma de pensar segundo a qual o sentido da vida consiste em comprar objetos e serviços. Esta forma de pensar se converte na principal ideologia que sustenta o sistema capitalista”.

Tímidos avanços do governo Lula

Se a correlação de forças na sociedade não possibilita, ainda, adotar medidas mais rigorosas de controle da publicidade comercial, o atual estágio das lutas sociais no país já permite, ao menos, rediscutir os critérios de distribuição das verbas publicitárias dos governos. Afinal, este dinheiro é oriundo dos tributos da sociedade. O montante de recursos é expressivo e serve para “alimentar cobras”. Os barões da mídia que abocanham estes recursos públicos são os mesmos que pregam golpes, desestabilizam governos, criminalizam as lutas dos trabalhadores e idolatram o “deus-mercado”. A publicidade oficial reforça a monopolização do setor, quando poderia servir para estimular a diversidade e pluralidade informativas numa sociedade mais democrática.

De forma discreta, o governo Lula promoveu algumas mudanças nesta área. Ele descentralizou a distribuição das verbas oficiais. “Os comerciais do Palácio do Planalto atingiram no ano passado 5.297 veículos de comunicação. O número representa uma alta de 961% sobre os 499 meios que recebiam dinheiro para divulgar propaganda do governo Lula em 2003, quando o petista tomou posse”, resmungou a Folha. A descentralização da publicidade oficial diminuiu o montante abocanhado por poucos barões da mídia. Irritados, eles agora criticam a rotulada “bolsa-mídia de Lula”, afirmando que ela serve para “alimentar a rede chapa-branca do governo”.

Estimular a diversidade informativa

Apesar da gritaria, a administração direta e indireta é uma das maiores anunciantes do país. Os gastos publicitários dos governos FHC e Lula oscilaram entre R$ 900 milhões e R$ 1,2 bilhão. O pico de FHC foi em 2001, com R$ 1,114 bilhão em anúncios; em 2008, o governo Lula investiu R$ 1,027 bilhão. Isto sem contabilizar os custos da produção dos comerciais e os gastos com os patrocínios nas áreas de esporte, cultura e outras – que atingiu R$ 918 milhões em 2008. A soma de publicidade e patrocínio injetou quase R$ 2 bilhões na mídia. Na comparação com a iniciativa privada, o maior anunciante em 2008 foi a Casas Bahia, com R$ 3,2 bilhões; o segundo lugar ficou com a Unilever, dona das marcas Kibon, Omo, Dove e Rexona, que gastou R$ 1,75 bilhão.

Quase a totalidade da publicidade oficial engorda os bolsos dos barões da mídia. O governo Lula nunca teve a coragem para investir em veículos alternativos e estes estão à míngua. Até a revista Carta Capital, que adota uma linha jornalística mais independente, sofre com esta tibieza, como já criticou Mino Carta. A desculpa usada pelo governo é que ele adota critérios mercadológicos, medidos pela audiência e tiragens. Com esta postura aparentemente “neutra”, o governo reforça a monopolização do setor. É urgente redefinir os critérios para a publicidade oficial. Países como a Itália e a França adotam normas legais para incentivar a diversidade e pluralidade informativas, barateando os custos de impressão e garantindo cotas de publicidade para veículos alternativos.

Propostas concretas

O Fórum de Mídia Livre (FML) defende o estabelecimento de critérios democráticos e transparentes de distribuição dos recursos oficiais, e não apenas a partir da reprodução da lógica mercadológica. “O Estado não vende mercadoria, presta serviço publico. O critério de veiculação não deve ser o da circulação, pois este está ligado à lógica da audiência como mercadoria. A mídia comercial vende audiência, isto é, circulação ou pontos de Ibope, remunerando seus fatores de produção em função da receita que o anunciante lhe proporciona devido ao público que pode atingir. Ora, o Estado não precisa se subordinar a tais critérios. O Estado não vende nada, apenas presta contas, logo pode e deve chegar ao cidadão através de muitos canais pelos quais o cidadão se informa”, explica Marcos Dantas, professor da UFRJ e integrante da coordenação executiva do FML.

Duas propostas concretas teriam forte impacto no estratégico quesito publicidade:

- Reserva de no mínimo 20% das verbas da publicidade oficial para os veículos alternativos e comunitários, visando estimular a pluralidade e diversidade informativas e inibir os monopólios;

- Instituição de um comitê de ético, no interior do Conselho Nacional de Comunicação Social, para fiscalizar a publicidade e coibir abusos, em especial contra o público infanto-juvenil;

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Regulamentar as concessões públicas (2)

Desde o início das transmissões de rádio, em 1922, e de televisão, nos anos 1950, o processo de concessão de outorgas às emissoras sempre foi influenciado pelo poder econômico dos donos da mídia e por suas relações promíscuas com o Estado. Concedidas sem qualquer critério objetivo, as outorgas beneficiaram os mesmos grupos empresariais, o que reforçou a propriedade cruzada e a concentração no setor. Nesta longa trajetória monopolista, as redes privadas desrespeitaram as tímidas legislações existentes. Na prática, os barões da mídia exercem uma autêntica ditadura midiática, ficando acima das leis, das normas constitucionais e do próprio Estado de Direito.

A rica experiência internacional

A Constituição de 1988, por exemplo, proíbe a formação dos monopólios, exige a produção de conteúdos regionais, obriga que as emissoras tenham finalidades educativas, culturais e artísticas e determina que elas expressem a diversidade de pensamento na sociedade. Como nunca foram regulamentados, estes princípios progressistas viraram letra morta. O atual processo de outorga e de renovação das concessões, com prazo de 15 anos para as TVs e de dez anos para as rádios, é uma verdadeira caixa-preta. A sociedade não exerce qualquer controle sobre este bem público. O Congresso Nacional, que a partir da Constituição de 1988 virou co-responsável pelas concessões e renovações, não cumpre seu papel, submetendo-se à pressão e chantagem dos barões da mídia.

Qualquer questionamento a estas distorções é tachado como “atentado à liberdade de imprensa” pela mídia hegemônica. Ela omite que vários países exercem o direito democrático, inclusive, de não renovar concessões que ferem sua legislação. Até os EUA, nação badalada pela mídia servil, controlam os seus meios de comunicação de massas. A Administração Federal de Comunicações (FCC) cancelou 141 concessões de rádio e TV entre 1934 e 1987. Em 40 desses casos, ela nem esperou que expirasse o prazo da concessão. Já o governo britânico revogou a licença da OneTV, em agosto de 2006; da StarDate, em novembro de 2006; e do canal de televendas Auctionword, em dezembro de 2006. A Espanha revogou, em julho de 2005, a concessão da TV Católica. E a França cancelou a licença da TF1, em dezembro de 2005, por ela ter negado o Holocausto.

Desrespeito à Constituição e às leis

Na defesa da democracia e da autêntica liberdade de expressão, o país necessita ser mais rigoroso na análise das concessões e renovações das outorgas. É preciso exigir o cumprimento das normas constitucionais e das leis vigentes. Várias redes privadas desrespeitam o limite mínimo de tempo de 5% para o jornalismo e máximo de 25% para a publicidade. Ainda veiculam merchandising, o comercial disfarçado, o que vetado pelo Código de Defesa do Consumidor. A maioria não exibe o conteúdo educativo exigido pelo Constituição; quando exibe é em horários de baixa audiência. O lobby da mídia também procurou sabotar a classificação indicativa, medida essencial para o resguardo do Estatuto da Criança e dos Adolescentes. Num desrespeito à legislação, várias emissoras de rádio e televisão são dirigidas por “laranjas” de políticos com mandato.

Diante destes e outros abusos, é inadmissível que as outorgas e renovações sejam dadas de forma automática, sem consulta à sociedade. Em vários países existem ouvidorias públicas para receber críticas e analisar as concessões; muitos promovem audiências sobre o tema. Em casos extremos, diante do desrespeito às leis, vários governos simplesmente revogam as concessões. A não renovação é um ato democrático, como admite a União Internacional das Telecomunicações (UIT), que “reconhece em toda sua amplitude o direito soberano de cada Estado de regulamentar o setor, devido à importância crescente das telecomunicações na salvaguarda da paz e do desenvolvimento econômico e social”.

Propostas concretas

- Garantir transparência e participação da sociedade no processo de concessão de outorgar e nas renovações das concessões para emissoras de rádio e televisão; instituir audiências púbicas e dar publicidade ao mapeamento do atual estágio de concentração e monopolização do setor;

- Exigir que as empresas de radiodifusão cumpram o fixado no artigo 221 da Constituição, que determina a difusão de conteúdos regionais e de produções independentes. Fixar patamares mínimos de 30% para o cumprimento desta norma constitucional e fixar normas para que a programação tenha finalidades informativas, educativas, culturais e artísticas;

- Instituir novos critérios de outorgas e renovação de concessões para inibir a concentração e a propriedade cruzada; para fomentar a criação de novas empresas de radiodifusão; e para garantir o respeito à diversidade e pluralidade informativas;

- Garantir a vigência do artigo 54 da Constituição, que veda que os eleitos para cargos públicos detenham concessões de radiodifusão; regulamentar a exibição de conteúdos religiosos;

- Garantir o direito de antena, com espaços nas concessionárias públicas de horário gratuito para os movimentos sociais. Aprovação dos projetos de lei dos deputados Vicente de Paula (PT-SP) e Manuela D’Ávila (PCdoB-RS) de criação do horário sindical gratuito.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Fortalecer a rede pública de comunicação

Desde a sua origem, a radiodifusão brasileira adotou o modelo privado made in EUA, diferentemente de várias nações nas quais a rede pública tem forte influência. O caso mais famoso é o da BBC de Londres, que se projetou na II Guerra Mundial, é gerida por um conselho autônomo e produz programas de qualidade. Na França, quatro redes integram o sistema público. Na Alemanha, ARD e ZDF têm 14 emissoras locais e o seu conselho, com 77 membros, reúne partidos e movimentos sociais. Mesmo nos EUA, a PBS possui um conselho independente com 27 membros e congrega 354 retransmissoras. Já a APT, segunda maior rede pública do país, tem um orçamento de US$ 2 bilhões e retransmite a sua programação para 356 emissoras locais.

No Brasil, o modelo público nunca vingou. A única iniciativa mais ousada neste campo ocorreu no governo de Getúlio Vargas com a criação da Rádio Nacional, que teve expressiva audiência. O espectro eletromagnético, um bem público e finito, tornou-se um bem privado dos barões da mídia, autênticos “latifundiários do ar”. No caso da TV, o setor privado detém cerca de 80% das emissoras, 90% da audiência e 95% das receitas publicitárias. Principal veículo de comunicação de massas, sua influência na sociedade é arrasadora. Censo do Ibope de 2005 revelou que 93,1% dos domicílios no país tinham aparelhos de televisão, número superior aos lares com geladeiras. Apontou ainda que 81% dos brasileiros assistem TV diariamente, passando 3,9 horas diárias, em média, presos às telinhas.

Fruto do ascenso democrático, o artigo 223 da Constituição de 1988 fixou a complementaridade dos sistemas privado, público e estatal. Na prática, porém, nunca houve investimento nos setores não comerciais. Nos anos do neoliberalismo, ainda houve o desmanche do pouco que existia. Em 1995, com a aprovação da Lei da TV a Cabo, as redes privadas foram obrigadas a reservar cinco canais estaduais para o uso do Executivo, Legislativo, Judiciário, um canal comunitário e outro universitário. Mesmo assim, eles padecem da falta de recursos e foram excluídos da TV aberta.

Mudanças no governo Lula

Só após sofrer brutal bombardeio midiático na eleição de 2006, o presidente Lula decidiu investir na construção de uma rede pública nacional de televisão e rádio. A criação da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), que gerencia a TV Brasil, oito emissoras de rádio e uma agência noticiosa, sinalizou uma mudança de postura do governo. Inaugurada em dezembro de 2007, a TV Brasil dá os primeiros passos na construção de uma emissora sem fins lucrativos. Seu conselho curador é presidido pelo economista Luiz Gonzaga Belluzzo; já sua ouvidoria, dirigida pelo jornalista Laurindo Lalo Leal Filho, é um mecanismo de fiscalização da sociedade. Ela também constrói a sua própria rede nacional, fortalecendo as estruturas de 95 emissoras estaduais.

Exatamente por seu papel democratizante, a EBC sofre o cerco dos donos da mídia e ainda corre riscos. Tudo é feito para limitar o seu alcance e asfixiar seu financiamento. Antes mesmo de ser lançada, ela foi alvo de intensa oposição. A Folha de S.Paulo, por exemplo, publicou uma série de artigos para desqualificá-la e seu editorial arrematou: “Lula e o PT querem deixar sua marca particular no telecoronelismo criando um canal do Executivo; a proposta é descabida”. Os ataques visaram confundir os conceitos entre rede estatal e pública, e contaram com a descarada ajuda do ministro Hélio Costa, ex-funcionário da TV Globo e porta-voz dos radiodifusores.

A conquista da TV Brasil

A EBC é uma conquista das forças progressistas na luta contra a ditadura midiática. Ela deve ser fortalecida e aperfeiçoada. Isto não a exime dos problemas, que decorrem da sua própria origem conflituosa no interior do governo e de impasses no seu projeto editorial, entre outras lacunas. Os seus recursos são escassos, menos de 5% na comparação com a receita da Rede Globo, e a TV Brasil sequer é transmitida em canal aberto. Seu conselho curador, indicado pelo presidente Lula, não contempla a diversidade dos movimentos sociais. Estes e outros problemas comprometem a sua autonomia de gestão e de financiamento, marcas que distinguem a rede pública da estatal, e dificultam que ela tenha maior visibilidade na sociedade. Mudanças são necessários e urgentes.

As propostas unitárias apresentadas pelos movimentos sociais no 1º Fórum de TVs Públicas, em maio de 2007, continuam atuais: instalação de um “conselho representativo, plural e autônomo, com maioria da sociedade civil, como instância decisória”; “igualdade de participação e respeito à diversidade (regional, mulheres, negros) no seu conselho”; “fomento à produção independente, ampliando a presença desses conteúdos na sua grade de programação”; maior disponibilidade de “verbas do orçamento público no seu financiamento e proibição da publicidade comercial, mas garantido as produções compartilhadas, o apoio cultural e a publicidade institucional”; “que os canais públicos, que hoje são garantidos pela Lei do Cabo, estejam em sinal aberto”.

Propostas concretas para o setor

Mas o fortalecimento da rede pública não se limita ao papel estruturante da EBC. Outras medidas urgentes são necessárias para reforçar as emissoras educativas e comunitárias, compondo um sistema público de maior envergadura, que dispute a hegemonia com a ditadura do setor privado. Entre elas:

- Regulamentar o artigo 233 da Constituição Federal, que fixa a complementaridade dos sistemas privado, estatal e público de radiodifusão, garantindo um terço do espectro das emissoras para cada setor – a exemplo da “Lei dos Medios” recentemente aprovada na Argentina;

- Criação de um Fundo Nacional de Fomento à Rede Pública e Comunitária, formado a partir dos recursos do Fistel, das verbas carimbadas do Orçamento da União e da taxação da receita em publicidade veiculada nas redes privadas;

- Viabilizar que as TVs públicas e comunitárias sem transmitidas em canal aberto;

- Garantir autonomia de gestão e financiamento para as emissoras públicas, instituindo conselhos formados por representantes eleitos da sociedade para orientar sua programação e conteúdo;

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Propostas democráticas para a Confecom

Na reta final da preparação da 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), marcada para os dias 14, 15 e 16 de dezembro, os milhares de participantes das suas etapas municipais e estaduais avançam na construção de propostas concretas para democratizar este setor estratégico. Além do diagnóstico dos danos causados pela ditadura midiática, os envolvidos neste processo pedagógico de discussão formulam idéias de políticas públicas e de regulamentação dos meios de comunicação. Nos próximos dias, apresentarei sete modestas contribuições a este debate.

Elas partem de duas premissas básicas. A primeira é de que a comunicação deve ser encarada como um direito humano essencial na atualidade. Deixada à selvageria do “deus-mercado”, a mídia privada manipula informações e deforma comportamentos, causando inevitáveis danos à sociedade. A segunda é de que a comunicação é um requisito da democracia. Não há como avançar na democracia no país sem democratizar os meios de comunicação. Neste sentido, as propostas procuram unificar o campo popular e democrático em torno de sete exigências:

1- Fortalecer a rede pública de comunicação;

2- Regulamentar as concessões públicas ao setor privado;

3- Adotar políticas públicas de incentivo à radiodifusão comunitária;

4- Instituir um programa nacional de inclusão digital – banda larga para todos;

5- Revisar os critérios da publicidade oficial;

6- Instituir mecanismos de participação democrática da sociedade;

7- Elaborar um novo marco regulatório para o setor.

Batalha de caráter estratégico

A luta por estas e outras demandas é decisiva na atualidade. A batalha pela democratização dos meios de comunicação não comporta ilusões e, muito menos, omissões. Diante do enorme poder da mídia hegemônica, a luta por mudanças profundas neste setor adquire um caráter estratégico. Não haverá avanços na democracia, na mobilização dos trabalhadores por seus direitos e na própria luta pela superação da barbárie capitalista, sem enfrentar e derrotar a ditadura midiática. Hoje, esta batalha comporta três desafios, que se inter-relacionam e se complementam.

O primeiro é o da denúncia da “imprensa burguesa”. Não há como democratizar os veículos sob o comando ditatorial dos Marinhos, Civitas, Frias e demais barões da mídia. Eles serão sempre aparelhos privados de hegemonia do capital. Qualquer ilusão neste campo seria desastrosa para as forças políticas e sociais de esquerda. O segundo desafio é o da construção e fortalecimento de veículos próprios das forças engajadas na luta pela superação de todas as formas de exploração e opressão. Sem construir instrumentos contra-hegemônicos de qualidade não será possível vencer a disputa de idéias, de projetos e de valores numa sociedade tão complexa como a brasileira.

Na contracorrente da lógica capitalista

Estes dois desafios não negam, porém, a urgência de um terceiro: o da luta pela democratização dos meios de comunicação. Na contracorrente da lógica capitalista, é possível erguer barreiras ao poder da mídia burguesa e construir políticas públicas que incentivem a diversidade e pluralidade informativas e culturais, conforme apontam os recentes avanços na América Latina. Neste rumo, a 1ª Confecom, antiga demanda dos movimentos sociais, pode ser uma importante alavanca. Além de envolver amplos setores da sociedade neste debate, num processo pedagógico sem precedente na história, ela pode propor medidas concretas que coíbam a ditadura midiática.

Várias entidades progressistas estão inseridas nesta luta. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), criado em 1991, nasceu das mobilizações por avanços na Constituição de 1988 e agrega várias entidades. O Coletivo Intervozes, fundado em 2003, reúne militantes com reconhecida capacidade de elaboração. Já o Fórum de Mídia Livre, lançado em março de 2008, articula jornalistas, acadêmicos e veículos progressistas. A Federação Nacional de Jornalistas (Fenaj) e a Federação de Trabalhadores em Empresas de Rádio e Televisão (Fitert) não limitam sua atuação à defesa dos interesses corporativos. Destacam-se, ainda, a Associação Brasileira das Rádios Comunitárias (Abraço) e a Associação Brasileira de Canais Comunitários (Abccom).

Unificar o campo progressista

Os partidos de esquerda também estão se dando conta da importância desta frente de atuação. O PT, que sempre contou com renomados intelectuais da área, realizou em 2008 sua 1ª Conferência Nacional de Comunicação e apontou os caminhos para uma mídia mais democrática. Já o PCdoB aprovou, em novembro de 2007, resolução específica com propostas concretas para o setor. No caso do PSB, vale registrar a corajosa ação da deputada Luiza Erundina; já no PSOL, o deputado Ivan Valente se destaca por suas denúncias das manipulações midiáticas.

Há consenso entre estas forças políticas e sociais de que não basta somente o diagnóstico sobre os efeitos nocivos da mídia hegemônica. Que ela não serve aos anseios dos trabalhadores, a história comprova de maneira cabal. Que ela é altamente concentrada e manipuladora, os fatos também evidenciam. Mais do que diagnosticar, é urgente avançar na formulação de propostas concretas que visem superar esta deformação na sociedade. Neste esforço, algumas proposições adquirem força catalisadora, capaz de unir amplos setores. Nos próximos artigos, apresento sete propostas concretas, não como pacote fechado, mas como uma modesta contribuição ao debate em curso.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Aécio e Serra: quem é o agressor?

O colunista esportivo Juca Kfouri, amigo intimo do governador José Serra – costumam assistir partidas de futebol juntos, segundo outra chegada, a ex-vereadora Soninha –, embolou de vez o meio de campo tucano para a eleição presidencial. Ele postou a seguinte denúncia em seu blog: “Aécio Neves, o governador tucano de Minas Gerais, que luta para ter o jogo inaugural da Copa do Mundo em 2014, em Belo Horizonte, deu um empurrão e um tapa em sua companheira no domingo passado, numa festa da Calvin Klein, no Hotel Fasano, no Rio de Janeiro”.

Irritado, o governador mineiro retrucou de imediato: “Isso é uma aleivosia tão grande. Eu me sinto, claro, pessoalmente ofendido por isso, mas prefiro até nem comentar para não validar algo tão distante da minha prática cotidiana. Sempre fiz política e vou continuar fazendo num patamar muito superior a esse. E o que eu posso dizer é que é uma calúnia vergonhosa”. Sua namorada, Letícia Weber, também rechaçou a acusação e alguns parlamentares tucanos já saíram em defesa de Aécio Neves, insinuando que a acusação teria mesquinhos interesses político-eleitorais.

A mídia e a cortina de silêncio

Apesar do rápido desmentido, Kfouri manteve sua denúncia. Ele citou uma postagem do blog de Joyce Pascowitch, que noticiou o crime, sem apontar o criminoso. “Um dos convidados mais importantes e famosos da festa que o estilista Francisco Costa, da Calvin Klein, deu na piscina do hotel Fasano, nesse domingo, acabou estrelando uma cena que deixou todos os convidados constrangidos. Visivelmente alterado, ele deu um tapa na moça que o acompanhava – namorada dele há algum tempo. Ela caiu no chão, levantou e revidou a agressão. A platéia era grande e alguns chegaram a separar o casal para apartar a briga. O clima, claro, ficou muito pesado”.

E numa entrevista nada esportiva ao blog do antenado jornalista Renato Rovai, Kfouri colocou ainda mais lenha na fogueira:

Rovai: Quando você recebeu a informação de que essa agressão havia ocorrido?

Kfouri: Recebi no sábado pela manhã um e-mail contando a história e comentando uma nota da Joyce Pascowitch. Vi que o assunto tinha sido tratado pela Barbara Gancia no Twitter e aí fui atrás da informação. Conversei com uma pessoa que foi na festa e que disse que estava a cinco metros do acontecido, tendo visto a moça tomar um tapa e cair no chão. Contou ainda que a viu se levantar e reagir indo pra cima dele.

Rovai: Você confirmou a história com outras pessoas ou confiou plenamente na sua fonte?

Kfouri: Antes de dar a nota fiz quatro ou cinco ligações pra festeiros cariocas amigos meus e todos me confirmaram a história, apesar de não terem visto a cena.

Rovai: Você diz em seu blog que a imprensa brasileira não pode repetir com nenhum candidato a candidato a presidência da República a cortina de silêncio que cercou Fernando Collor, embora seus hábitos fossem conhecidos. É possível ser mais claro em relação a essa frase.

Kfouri: É isso mesmo que você está pensando, Renato. Circulam mil histórias em relação ao Aécio, histórias que, aliás, o Mineirão canta em coro [durante a partida Brasil e Argentina, no ano passado, parte da torcida presente entoou o coro “Ô Maradona, vai se f..., o Aécio cheira mais do que você"]. Acho que a imprensa tem obrigação de investigar isso, como deveria ter feito o mesmo em relação ao caçador de marajás. Isso não pode ser tratado como coisa menor, como algo regional.

Rovai: Há muito especulação de que a informação poderia ter partido de algum tucano relacionado ao governador Serra, o que você tem a dizer sobre isso?

Kfouri: Não é verdade. Não falei com nenhum tucano a respeito do assunto, conversei apenas com os festeiros cariocas, que confirmaram a história.

“Os bons amigos na imprensa”

Juca Kfouri nega qualquer digital de José Serra na bombástica acusação, mas há quem duvide. Tanto ele como Joyce Pascowitch nunca esconderam suas ligações com o governador paulista. Afora isso, são bem conhecidas as técnicas maldosas deste grão-tucano contra seus adversários. José Sarney, presidente do Senado, até hoje não perdoa Serra pela onda de denúncias contra sua filha, que abortaram a candidatura presidencial de Roseana Sarney em 2002. Geraldo Alckmin também não engoliu as revelações sobre o seu envolvimento com a seita direitista Opus Dei, que vazaram do Palácio dos Bandeirantes durante a rinha tucana para as eleições de 2006.

Como aponta o jornalista Rodrigo Vianna, a denúncia de Kfouri “serve aos interesses de Serra. Não quero dizer com isso que Juca esteja a serviço da candidatura Serra. Longe de mim levar o leitor a esse tipo de conclusão. Mas é estranho... A nota de Juca, do que jeito que foi redigida, cumpre (involuntariamente?) um papel importante. Manda a Aécio o recado: ‘Você tem telhado de vidro, se botar as manguinhas de fora, virá pancada pra valer’... Serra manda recados através da imprensa. Conta com bons amigos para isso”.

“O paranóico e vingativo" tucano

No mesmo rumo, o blogueiro Luiz Antonio Magalhães foi ainda mais taxativo. Para ele, não há dúvida sobre a maldade do governador paulista, “especialmente pelo fato da bomba estourar bem no momento em que Aécio decidiu partir para o confronto com Serra pela vaga presidenciável tucana em 2010... Serra joga pesado, sim, as paredes do Bandeirantes sabem direitinho o quão paranóico e vingativo o governador de São Paulo é... E é bom mesmo Aécio ficar bem esperto, porque o vazamento do tal tapinha deve ser só o começo da ‘desconstrução da imagem’ do governador mineiro, como gostam de dizer os chiques tucanos paulistas”.

As duas hipotéticas agressões – a de Aécio contra a namorada e a de Serra contra Aécio – podem bagunçar de vez o ninho tucano e dificultar as pretensões do bloco neoliberal-conservador para a sucessão de 2010. O partido do rejeitado FHC já estava sem discurso e sem proposta, desesperado com a crescente popularidade de Lula. Agora ainda terá que resolver a sua rinha interna.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

As derrotas da mídia em Honduras

O acordo firmado em Honduras, que prevê o retorno de Manuel Zelaya ao governo, representa uma derrota parcial dos golpistas e da sua mídia venal, no país e fora dele. Ainda é cedo para se prever o desdobramento desta grave crise política. A burguesia hondurenha não conseguiu consolidar o golpe, desferido em junho. Enfrentou a heróica resistência das camadas populares e se isolou externamente. O acordo inibe outras aventuras dos golpistas da América Latina, incomodados com os governantes progressistas, e representa uma vitória do povo e da democracia.

É certo que o acordo não permite leituras idealistas. Afinal, Zelaya volta ao governo poucos dias antes da viciada eleição presidencial, confirmada para 29 de novembro. Ainda pelo acordado, os “gorilas” que decretaram toque de recolher, reprimiram e mataram manifestantes, e censuraram rádios e TVs independentes deverão ser anistiados. O novo governo, de “reconciliação nacional”, deverá também incluir alguns direitistas. Ou seja: o acordo é precário, decorrente da correlação de forças existente no país. Mesmo assim, os golpistas foram derrotados.

Desfecho imprevisível da crise

Como alerta o sociólogo argentino Atílio Boron, os desdobramentos do acordo são imprevisíveis. “Para Zelaya, o balanço resulta muito mais complexo e é precisamente isto que turva o panorama hondurenho. Sua restituição não remove as causas profundas que provocaram o golpe de estado. Ademais, ele aceitará os resultados de uma eleição cheia de irregularidades e cuja campanha se desenvolveu debaixo do clima de violência e terror imposto pelos golpistas? Somente quem não conhece as atitudes de Zelaya acredita que não haverá conseqüências”.

Além disso, lembra Atílio Boron, a crise introduziu um novo ator em Honduras. “Como reagirão os heróicos militantes que arriscaram suas vidas para defender o governo legítimo? Há muitos mortos e feridos, presos e humilhados pelo medo. Estas mulheres e homens que tomaram as ruas de Honduras aceitarão o esquecimento dos crimes e o perdão dos criminosos? Uma lição extraída pelos movimentos sociais e forças populares nestes quatro meses de resistência é que eles podem ser decisivos, muito mais do que antes pensavam. A crise ensinou, brutalmente, que eles podem deixar de ser objetos da história para se converterem em sujeitos e protagonistas da mesma”.

Concentrada, manipuladora e golpista

Entre outras lições, o heróico povo hondurenho compreendeu melhor o papel nefasto da mídia na atualidade. A maior parte dos jornais e das emissoras de rádio e televisão ajudou a preparar o clima para o golpe e deu total apoio aos “gorilas”, justificando os atos de repressão, as mortes e prisões, e, inclusive, a censura de veículos independentes. O discurso da liberdade de expressão, cinicamente alardeado pelos barões da mídia, foi abandonado quando os golpistas invadiram a Rádio Globo (que não tem nada a ver com a emissora golpista do Brasil) e o canal 36 de TV.

A mídia hondurenha, a exemplo da brasileira, é altamente concentrada e manipuladora. Pesquisa do jornalista Ernesto Carmona, publicada no site Rebelión, revela que três famílias controlam os quatro jornais diários do país. O diário El Heraldo, o mais histérico golpista, é de propriedade de Jorge Larach, “membro das comissões de notáveis, sempre próximo ao presidente de turno e provedor da indústria de armas e de medicamentos”. Já a televisão é monopolizada por uma única pessoa, José Rafael Ferrari, que controla os canais 5, 7 e 13. Eles não cobriram os protestos populares e deram total respaldo as medidas repressivas dos golpistas.

Conforme aponta Carmona, “um reduzido grupo de empresários, que se apropriou do direito de informar, monopoliza a ‘liberdade de expressão’, posta a serviço dos seus interesses políticos e econômicos, uma vez que explora um rentável negócio... Seus vínculos com os grupos de poder político são muito estreitos, porque eles mesmos pertencem também a estes grupos de poder. Todos estes personagens são defensores acirrados da ‘liberdade de imprensa’, tal como prega a Sociedade Interamericana de Prensa (SIP), os diários mais reacionários do continente, as cadeias mundiais de notícias, como a CNN, e todas as caixas de ressonância do golpe em Honduras”.

Imprensa nativa na berlinda

Mas não foi apenas em Honduras que a mídia hegemônica perdeu ainda mais um pouco de sua minguada credibilidade. Nos EUA, a rede Fox, rotulada pelo próprio presidente Barack Obama de “partido da direita”, apoiou abertamente os “gorilas”. Já no Brasil, os principais jornais e as emissoras de TV suavizaram suas críticas ao “governo de fato” e ao “presidente interino”, como foram carinhosamente chamados os golpistas, e concentraram os seus ataques a Manuel Zelaya, rotulando-o de “chavista e populista”. Na prática, a mídia nativa torceu pelos golpistas.

Quando Zelaya obteve refúgio na embaixada brasileira em Tegucigalpa, a mídia também mirou na “diplomacia lulista”. Ao invés de informar sobre a postura soberana do Brasil, que teve papel decisivo na solução parcial da crise, ela apostou num derramamento de sangue. Agora, com a assinatura do acordo, ela dá todo o crédito ao governo do EUA, que sempre adotou uma postura dúbia diante do golpe. Não esconde seu servilismo diante do império e nem faz autocrítica do seu apoio velado aos golpistas. Mostra que, de fato, é partidária dos golpes – em Honduras e no Brasil.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Agenda da comunicação sai da penumbra

O jornalista Beto Almeida, membro do conselho diretivo da Telesur e presidente da TV Cidade Livre de Brasília, é um profundo conhecedor da realidade latino-americana e um crítico da mídia hegemônica. No artigo abaixo, ele analisa as profundas mutações em curso na região e no setor:


O tema sempre foi tabu. Tema proibido. Temos uma fileira de vítimas da ditadura midiática – intelectuais, pensadores, sindicalistas, jornalistas e artistas – por terem defendido que o progresso tecnológico comunicacional deve ser tratado como patrimônio da humanidade e servir como fator de elevação da civilização, embelezamento das relações humanas, da própria vida.

Agora no Brasil, a convocação da 1ª Conferência Nacional de Comunicação coloca o tema na agenda política do estado e da sociedade. Permite que conheçamos a gigantesca dívida informativo-cultural que se avolumou contra o nosso povo. Um verdadeiro entulho. E novas informações vão surgindo, desmontando mitos, iluminando áreas de sombras, revelando que algo se move aqui e em boa parte da América Latina.

Argentina mostra um caminho

Ventos democráticos sopram da Argentina com sua nova lei de comunicação, quebrando o monopólio do Grupo Clarin, fortalecendo os veículos estatais e abrindo 33 por cento da comunicação para a sociedade, até para a CGT e as Universidades Públicas. Telesur, como TV da integração latino-americana e dos povos do sul, vai se consolidando, ampliando seu alcance para a África. Surge uma cadeia de rádios indígenas na Bolívia e também um jornal público, o “Câmbio”, que em seis meses de vida já tem circulação igual ao maior jornal da burguesia racista boliviana, com décadas de existência.

Na Venezuela, a Revolução Bolivariana quebra o tabu que considerava o tema comunicação intocável e faz a Constituição valer mais que os privilégios dos magnatas midiáticos: quando uma concessão de rádio e TV termina, termina mesmo, ela não tem porque ser renovada automaticamente como se fosse privilégio vitalício das oligarquias. O Equador caminha para fortalecer seu jornal público, “El Telégrafo”, e também promove uma reorganização democrática no sistema de concessões de TV e rádio, ampliando, consolidando e qualificando a comunicação pública.

A diferença do Brasil é que em todos estes países os governos populares possuem maioria parlamentar. Além disso, em países como a Argentina a TV já nasceu pública, tendo recebido forte impulso durante o governo de Perón, período em que TV, rádio e até mesmo jornais como o La Nación, grande jornal da oligarquia, foram estatizados. No Brasil, a TV já nasce nas mãos de gente como Assis Chateaubriand, seguindo o padrão comercial vulgar norte-americano, chantageando e ameaçando presidentes como Vargas e JK, impedindo que os dois levassem adiante o projeto de criação de uma TV Nacional, só recentemente recuperado pelo presidente Lula. A Argentina chegou ter políticas públicas culturais e educacionais muito expandidas pelo peronismo, de tal sorte que eliminou o analfabetismo e conquistou padrões de leitura, artísticos, culturais, científicos e educacionais elevadíssimos para um país da América Latina.

Vargas, uma experiência golpeada

Vargas seguia nesta linha. A Rádio Nacional foi a mais importante experiência comunicacional no sentido da brasilidade, da nacionalidade e de valores populares. Criou uma paixão radiofônica brasileiríssima, que não tem porque não ser recuperada. Também na Era Vargas foram criados, a Rádio Mauá – a emissora do trabalhador - o Instituto Nacional de Música, dirigido por Villa-Lobos, o Instituto Nacional de Cinema Educativo, conduzido por Roquette Pinto , o Instituto Nacional do Livro, por empenho de Carlos Drummond de Andrade, e também o Instituto Nacional do Teatro. Vargas já havia despertado para a importância da televisão quando uma conspiração internacional, de matriz norte-americana, petroleira, e com o apoio de uma conspiração nativo-oligárquica-televisiva, o levou ao suicídio. Com ele, para o túmulo, também foi o sonho de uma TV pública... JK tentou ressuscitá-lo, foi pressionado, chantageado, forçado a abandoná-lo.

Talvez não seja muito justa a simples condenação a Lula porque não teria, segundo alguns comunicadores, a mesma decisão e coragem dos presidentes da Argentina, Bolívia, Equador e Venezuela em matéria de comunicação. O peso do capitalismo aqui é infinitamente maior, mais desenvolvido, o que se constitui numa dificuldade adicional, mais complexa, juntamente com a inexperiência de uma comunicação pública como a vivida pelo povo argentino no passado. E, sobretudo, por não ter maioria parlamentar, além de contar com significativas contradições na sua base aliada, composta também por empresários da radiodifusão. Lula não pode ignorar o resultado das urnas de 2006.

Relações de forças lá e cá

Na Argentina há a retomada de uma experiência histórica bem sucedida, mas de modo gradual, nada súbito. Não se trata de uma virada de mesa ou de um ajuste de contas, muito menos um juízo final contra a oligarquia midiática, mas um retorno ao curso de um projeto nacional soberano dos argentinos também na área informativo-cultural. Mesmo com Chávez, nota-se uma gradual aplicação da Constituição, não uma eliminação da comunicação privada, mas uma atitude governamental legítima para que a lei seja cumprida por todos, demolindo o sistema de seqüestro midiático-empresarial que os radiodifusores de lá impunham sobre o povo venezuelano. Mas isto ainda está em curso, é ainda uma batalha, a grande audiência ainda está com a TV e a rádio privadas, muito embora a queda vertiginosa das vendas dos jornais conservadores seja emblemática. Quando Chávez foi eleito, em 1988, o jornal “El Nacional”, vendia 400 mil exemplares. Hoje, rasteja-se em apenas 40 mil exemplares, portanto, número proporcionalmente inverso ao seu ódio editorial diante da popularidade do chavismo.

Não tendo a mesma maioria parlamentar folgada, Lula convoca a Conferência de Comunicação. Sua tática é evidente: libertar a agenda aprisionada pela mídia e envolver a sociedade neste debate. Claro que há dúvidas se a capacidade de mobilização de todos os movimentos pela democratização da comunicação, até hoje precária e rarefeita, tornar-se-á de fato robusta e amplificada rapidamente. O que torna ainda mais surpreendente e incompreensível a posição retoricamente radical de alguns destes movimentos desconsiderando esta relação de forças, o peso político e de poder da oligarquia da mídia no Brasil, a ausência de uma maioria parlamentar, traçando uma tática irreal, baseada no impressionismo da auto-suficiência de suas próprias forças. Este cálculo leva a que não considerem o governo como o aliado fundamental neste campo de forças populares, que deve incluir, obrigatoriamente, o governo Lula, movimento sindical, movimento social, partidos políticos e até mesmo segmentos do empresariado ameaçados pela esmagadora intervenção estrangeira no setor audiovisual, e com riscos de ampliação se aprovado o PL-29, aliás apoiado por alguns dos integrantes do movimento de democratização da comunicação. Democratização para quem?

Folha versus Data-Folha

A presença e o discurso de Lula contra o monopólio da mídia na inauguração de novas instalações da Record devem ser considerados como destravamento e visibilidade desta agenda da comunicação, antes tabu. Também é significativa pesquisa feita pelo Data-Folha, apontando que já 10 por cento dos entrevistados assistem a jovem TV Brasil e que 80 por cento destes gostam do que assistem. Como também é significativo o fato de que a Folha - jornal que pediu o fechamento da TV Brasil - não tenha publicado a notícia com o resultado da pesquisa. Ou seja, a Folha sonega informação do Data-Folha.

Também é expressiva a veiculação de matéria de 13 minutos pela TV Record revelando não apenas a queda da venda de jornais no Brasil, incluindo a Folha de São Paulo, mas também como este periódico apoiou a ditadura militar (até então desconhecido do grande público) e como ainda não deu explicações sobre a publicação de documentos adulterados da ministra Dilma Rousseff. Já sabemos: na Venezuela o jornal “El Nacional” perdeu 90 por cento de seus leitores. Na Bolívia, o jornal “Cambio”, favorável às transformações conduzidas por Evo, já vende tanto quanto o maior jornal da oposição racista e conservadora. Como será o curso no Brasil da perda de credibilidade e de leitores dos jornais?

Popularizar a leitura de jornal

Esta vertiginosa queda na vendagem de jornais – lembremo-no de que eles informam a “tiragem”, mas não a “voltagem” - amplamente divulgada pela Record vem acompanhada do crescimento da internet como fonte de informação. Com o plano do governo de democratizar o acesso à banda larga, sobretudo por meio de uma empresa estatal que se encarregue desta tarefa republicana, poderemos nos defrontar a curto prazo com uma situação inusitada: uma tecnologia do século 16, a imprensa de Gutenberg, ainda hoje com números indigentes de circulação no Brasil e em linha declinante, poderá sofrer a concorrência de tecnologia de última geração para o acesso amplo à informação.

Se vier de fato a ocorrer como se anuncia, terá sido o resultado da visão retrógada da oligarquia midiática brasileira que foi sempre incapaz de expandir a popularização da leitura de jornais e revistas, revelando seu próprio medo de ter que confrontar um povo informado e letrado, com mais habilidades para o exercício da cidadania e para fazer suas legítimas exigências históricas. Que avancemos em duas linhas, expandindo o acesso à banda larga pública, mas também a leitura de jornal, que é ainda uma dívida informativo-cultural a ser paga

O que não se entende é porque foram desprezadas ou não consideradas tantas propostas e experiências que tentaram ao longo de décadas – a começar por Monteiro Lobato que queria fazer da imprensa uma alavanca para a alfabetização plena e foi rejeitado – popularizar a leitura de jornais, mesmo com a enorme taxa de ociosidade de 50 por cento da indústria gráfica brasileira. Como disse Lula recentemente, “há coisas que o mercado não sabe fazer ou não tem interesse”.

E se o mercado não é capaz de popularizar a leitura de jornal e revista, e se temos metade das gráficas paradas todo o tempo, e se temos um povo proibido praticamente de ler e se as tiragens estão caindo, se os jornais estão fechando, se temos jornalistas diplomados para o desemprego crônico, por que será que sindicatos, jornalistas, professores, não assumem a defesa, perante a Confecom, de um Programa Público de Popularização da Leitura de Jornal e Revista? Programa que se basearia no apoio público ao florescimento de jornais e revistas, fazendo as gráficas funcionarem, publicando em grandes quantidades para distribuição gratuita ao grande público sempre proibido de ler? A proposta consta das Teses da Associação Brasileira de Canais Comunitários (Abccom) à Confecom.

Coisas que o mercado não tem interesse

Temos nesta área uma Grande Depressão, como ocorreu nos EUA com a crise de 29. E lá, o estado organizou programas públicos de difusão cultural, inclusive de leitura, ocupando os criadores, os escritores, os jornalistas, os artistas, fazendo com que a informação, a arte e a cultura chegassem – pela primeira vez - aos bairros pobres e negros de Nova Iorque. Como disse Lula, há coisas que o mercado não tem interesse em fazer. No Brasil, na área da leitura, sempre estivemos numa eterna grande depressão...

Certamente a Confecom não será o ajuste final de contas, não será o “tudo ou nada” Mas, será o palco para a organização de propostas e das forças que façam avançar as várias formas de comunicação pública, estatal, comunitária, universitária. Sobretudo aquelas que envolvem uma aliança entre movimentos sindical e social, partidos políticos, segmentos empresariais não-oligopolistas e o governo Lula, encorajando-o a ir mais adiante nas medidas que estão ao seu alcance já, formatando um campo popular com força suficiente para dar sustentação à expansão, consolidação e qualificação da comunicação não seqüestrada pela ditadura do mercado cartelizado. É uma das maneiras de pavimentar as condições para termos forças suficientes para uma mudança de fôlego argentino a médio prazo.

domingo, 1 de novembro de 2009

Retorno dos jornais à origem partidária

No excelente artigo “jornais ‘independentes’ fazem retorno invertido às suas origens partidárias”, publicado na Agência Carta Maior, o professor Venício A. de Lima, um dos maiores especialistas em mídia no país, dá uma aula de história e denuncia a crescente partidarização da chamada grande imprensa. Reproduzo-o abaixo:


A imprensa – ou o de mais parecido com aquilo que hoje entendemos como tal – nasceu vinculada à política, aos políticos e aos partidos políticos.

No curso da revolução na França calcula-se que, entre 1789 e 1800, foram publicados mais de 1.350 jornais. Na Paris de 1789 e depois novamente em 1848, todos os políticos de algum destaque fundam o próprio clube e, de cada dois políticos, um dá vida a um jornal; somente entre fevereiro e maio surgem 450 clubes e mais de 200 jornais (citado in Domenico Losurdo; Democracia ou bonapartismo; Editoras UFRJ/UNESP; 2004; p. 148).

Historiadores da imprensa periódica nos países onde ela primeiro floresceu, sobretudo Inglaterra, França e Estados Unidos, concordam que ela teve sua origem na política e, numa segunda fase, se transformou em imprensa comercial, financiada por seus anunciantes e leitores.

No Brasil, as circunstâncias históricas certamente nos diferenciam de países como Inglaterra, França e Estados Unidos. Não há distinção, todavia, em relação às origens políticas e partidárias da imprensa nativa. Escrevendo especificamente sobre “as reformas dos anos 50 (que) assinalaram a passagem do jornalismo político-literário para o empresarial”, a professora Ana Paula Goulart Ribeiro afirma:

“O jornalismo que se desenvolveu, no Rio de Janeiro, a partir de 1821 (com o fim da censura prévia) era profundamente ideológico, militante e panfletário. O objetivo dos jornais, antes mesmo de informar, era tomar posição, tendo em vista a mobilização dos leitores para as diferentes causas. A imprensa, um dos principais instrumentos da luta política, era essencialmente de opinião (Imprensa e História no Rio de Janeiro dos anos 50; E-Papers; 2007; p. 25)”.

Outra periodização

A exceção à ordem dessa periodização – que deve ser mencionada aqui pela relevância de que desfruta na discussão contemporânea sobre a “democracia deliberativa” – é representada por Jürgen Habermas. O pensador alemão descreve a existência de uma primeira imprensa que era a principal instituição da “esfera pública burguesa” do final do século XVII e início do século XVIII, na Inglaterra e na França. Nesta “esfera pública” a imprensa se constituía em espaço mediador “neutro” e não impedia a delimitação entre as esferas pública e privada. Embora também comercial, não era ainda o empreendimento em escala industrial que corresponde a outra etapa do capitalismo quando, depois da fase político-partidária, ela se transforma em imprensa comercial moderna.

Todavia, é o próprio Habermas quem afirma: “Na Inglaterra, na França e nos Estados Unidos, o caminho estava preparado para a transição de uma imprensa partidária para uma imprensa comercializada mais ou menos à mesma época durante os anos 30 do século XIX. (...) Essas primeiras tentativas de uma moderna imprensa comercial devolveram ao jornal o caráter unívoco de uma empresa de economia privada destinada a gerar lucros; mas, agora, por certo, contrastando com as empresas manufatureiras dos velhos ‘editores’, dentro do novo nível atingido pela evolução da grande empresa do capitalismo avançado; já pela metade do século havia uma série de empresas jornalísticas organizadas como sociedades anônimas (Mudança Estrutural da Esfera Pública; Tempo Brasileiro, 1984; pp.216-217; tradução revisada).

Ação política conservadora

O filósofo e historiador italiano Domenico Losurdo lembra que o desaparecimento dos jornais partidários e sindicais não pode ser, no entanto, explicado como resultado exclusivo de um processo econômico. Ao contrário, deve ser compreendido como parte do processo histórico de organização política e sindical das classes subalternas e da reação conservadora que se desenvolve no final do século XIX contra a expressão relativamente autônoma dessas classes. Uma ação política que incluiu também o combate ao princípio do sufrágio universal.

Tomando como referência o que ocorreu nos Estados Unidos, afirma Losurdo: “Malgrado as tentativas do patronato, que se esforça de todas as maneiras, e, sobretudo, mediante a demissão dos operários surpreendidos na sua leitura (da ‘labor press’) para limitar sua influência, esta não é desprezível... Esta imprensa se torna o alvo e a vítima da reação conservadora que se desenvolve no final do século XIX. (...) (Os jornais partidários e sindicais) são suplantados por uma imprensa que se jacta de ser independente, mas é controlada pela grande propriedade (citado in op. cit.; pp. 159-160).

A imprensa que se autodenomina “independente” é aquela que passa a ser financiada, sobretudo, pelos anunciantes e, ao longo do tempo, busca sua legitimação no princípio liberal do “mercado livre de idéias”, externo e/ou interno à própria imprensa e, mais recentemente, através de um retorno à idéia da própria “esfera pública” habermasiana.

Mas teriam os jornais realmente se libertado de seu vínculo originário com a política, os políticos e a ação político-partidária? Teriam eles se tornado independentes?

Independência e “mercado livre de idéias”

Há mais de 60 anos, isto é, pelo menos desde a Hutchins Commission (EUA/1942-1947), a teoria liberal da independência da imprensa vem sendo “retrabalhada” e passou a se apoiar em três idéias centrais: pluralismo interno, responsabilidade social e profissionalismo.

Esse “retrabalhar” decorreu da impossibilidade de se continuar sustentando o discurso do “market place of ideas” – semelhante ao mercado “autocontrolado” de Adam Smith – em face do avanço real da oligopolização da mídia e da formação de redes regionais e nacionais de rádio e televisão. Trata-se agora de trazer o “market place of ideas” para dentro dos próprios jornais.

A idéia, no entanto, encontra dificuldades incontornáveis. Se, por um lado, a solução é inviável em sociedades onde existe uma tradição historicamente consolidada de imprensa partidária, por outro, os estudos sobre linguagem, a sociologia do jornalismo, a construção da notícia (newsmaking), o enquadramento (framing) e o agendamento (agenda setting), apesar de diferenças significativas, revelam que a prática do jornalismo profissional ocorre no contexto de uma subcultura própria; de rotinas produtivas que se transformam em normas; e de interferências editoriais – explícitas ou não – que tornam sem sentido qualquer pretensão à existência do mito da objetividade ou de uma prática jornalística neutra e isenta, vale dizer, independente.

Mídia como partido político

Foi Antonio Gramsci, referindo-se à imprensa italiana do início do século XX, quem primeiro chamou a atenção para o fato de que os jornais se transformaram nos verdadeiros partidos políticos. Muitos anos depois, entre nós, Octávio Ianni chamou a mídia de “o Príncipe eletrônico”.

Na Ciência Política contemporânea, apesar de toda a resistência em problematizar “a construção coletiva das preferências” no debate teórico sobre a democracia, já se admite que a mídia venha, historicamente, substituindo os partidos políticos em algumas de suas funções tradicionais como, por exemplo, construir a agenda pública (agendamento); gerar e transmitir informações políticas; fiscalizar as ações de governo; exercer a crítica das políticas públicas e canalizar as demandas da população.

Retorno invertido

Dentro deste amplo quadro histórico é que devemos compreender certo “mal estar” contemporâneo generalizado que está cada vez mais difícil de esconder e refere-se à crescente partidarização da grande mídia. Este não é, certamente um fenômeno restrito às democracias da América Latina, como demonstra a ousada e inédita atitude do governo Barack Obama de tratar publicamente os veículos ligados à rede Fox de televisão como “partido político de oposição”.

Se, para alguns analistas, a “crise” que a imprensa enfrenta, em decorrência da revolução digital, está levando à sua partidarização como forma (equivocada) de sobrevivência, devemos recorrer à história e verificar que, ao assumir uma posição inequivocamente partidária, a grande mídia está fazendo uma espécie de “retorno invertido” às suas origens, no contexto da reação histórica conservadora do final do século XIX.

No Brasil, a imprensa declaradamente partidária e associada a bandeiras de luta política operária teve vida curta (cf. M. Nazareth Ferreira, A Imprensa Operária no Brasil, Vozes, 1978) e, por óbvio, essa nunca foi vocação de nossa grande mídia. Por outro lado, nos países em que primeiro surgiu, a imprensa partidária, quando desapareceu, estava associada às lutas de afirmação histórica das classes subalternas.

Será possível afirmar que, na conjuntura atual, a grande mídia que abertamente se partidariza, expressa e representa os interesses dessas mesmas classes?

sábado, 31 de outubro de 2009

“Uma lição perdida na Folha de S.Paulo”

Em artigo publicado no Observatório da Imprensa, o professor Gilson Caroni demonstra que a Folha não tem nenhuma compromisso com a ética e com o bom jornalismo. Reproduzo abaixo o texto, como sempre bem escrito e consistentemente argumentado:

Em 14 de agosto de 1987, o jornalismo brasileiro perdeu um de seus profissionais mais íntegros e combativos. Vítima de um infarto fulminante, morreu na manhã de uma sexta-feira o jornalista Cláudio Abramo. Onze dias depois, em editorial na revista Senhor, Mino Carta lhe dedicaria um artigo de rara beleza. Convém destacar um trecho:

“Em patrão, diria Claudio, não convém confiar em demasia. Talvez não pensasse o mesmo dos jornalistas, aos quais tentou ensinar, além do verdadeiro jornalismo, dignidade profissional e consciência de classe. Mas os jornalistas brasileiros não estão atentos às melhores lições. Quase sempre preferem inclinar-se à vontade do dono, diretor por direito divino, em lugar de acompanhar alguns raros colegas dispostos a professar sua fé em um tipo de imprensa que transcende os interesses de uma família e de uma casta”.

Abramo esteve no comando do Estado de S.Paulo e da Folha de S.Paulo. No jornal da família Frias foi chefe de reportagem, secretário e diretor de redação. Sempre se bateu pelo rigor da apuração, pela edição correta, ignorando angulações demarcadas pelos proprietários dos veículos. Seus critérios de escolha nunca colocaram interesses empresarias acima da ética. Não fez concessões ao jornalismo declaratório. Nunca obedeceu aos cânones que estabelecem a primazia da opinião sobre a informação. Foi, sem dúvida, um professor com poucos discípulos.

Um iconoclasta que aceitou viver o sacrifício dos que não se alinham incondicionalmente. Um sacerdote a agir como mediador entre o noticiário e o leitor. A expressão exata de uma deontologia que não separa o profissional do cidadão. Pelo contrário, reforça, por ação recíproca, as duas dimensões de quem age a descoberto.

Procedimento curioso

São homens desse porte que fazem a diferença e mostram, pela ausência, uma imprensa que se perdeu de si mesma. Que ignora a relevante função social que deveria desempenhar, vinculando-se ao princípio das responsabilidades mútuas em uma estrutura democrática para melhor revitalizar o espaço público.

A Folha de S.Paulo é exemplo de como ensinamentos decisivos podem ser apagados por interesses conjunturais, ódios de classe e jornalismo de campanha. O mergulho na mediocridade parece não ter fim e, a julgar pelas últimas edições, o patético parece dar o tom de uma redação onde patrões e jornalistas partilham o mesmo imaginário, não se dando conta que jamais deixarão suas condições de origem. Nem os patrões virarão jornalistas, nem os escribas, por mais que se esforcem, participarão como membros efetivos das famílias para as quais trabalham com afinco.

Mas se a tarefa é desconstruir governos, candidaturas, não há problemas. As folhas do aquário se vergam ao menor sopro, apostando na cumplicidade ou estultice do leitor. Vejamos as façanhas mais recentes dos aguerridos funcionários do diário paulista. Nada resulta de incompetência, mas de cumprir com afinco o papel de oposição terceirizada que lhe foi imposto pelas forças políticas conservadoras.

Na edição de quarta-feira (21/10), tivemos na dobra superior da primeira página a seguinte manchete: “Bolsa de SP prevê queda de negócios pós-taxação”. No mesmo dia, o índice Bovespa voltou a subir, e o dólar voltou a se desvalorizar frente ao real. O que esperar de uma redação comprometida com um mínimo de decência? O mesmo destaque na edição seguinte. Não deu sequer chamada na primeira página de quinta (22/10), apenas uma nota na página B3 (mas sem informar o volume negociado na véspera).

O que mereceu chamada de capa nesse dia? “Belluzzo critica medidas do BC para segurar o câmbio no país”. Na verdade, como o texto esclarece, Luiz Gonzaga Belluzzo elogiou a taxação dos capitais especulativos estrangeiros (apenas opinou que as medidas foram tardias e ainda tímidas); mas quem só ler o título terá a impressão diametralmente oposta. Textualmente:
“O ministro Guido Mantega [Fazenda] usou corretamente o único instrumento do qual dispunha para lidar com o problema, que é o IOF. Medidas adicionais deveriam ter sido tomadas pelo Banco Central”.

Isso, voltamos a insistir, não revela despreparo, mas um projeto editorial que requer de todos os envolvidos o exercício de canhestros “editores de opinião”.

Desnecessário revelar que a manchete principal dessa quinta-feira (22) foi para a frase de Lula, cuidadosamente pinçada em sua longa entrevista ao jornal como a mais “polêmica”, matéria-prima para a enxurrada de cartas indignadas de cristãos, cristãos novos e agnósticos. Do ponto de vista ecumênico um procedimento curioso. Como técnica jornalística, uma opção rasteira, lamentável e autofágica.

Vegetação rasteira

Na verdade, a Folha não chegou ao fundo do poço somente na semana passada. Na anterior, havia requentado uma farsa: o suposto encontro que Lina Vieira teve com a ministra Dilma, em que a petista teria pedido para acelerar a investigação contra as empresas da família Sarney.

Há cerca de dois meses, Lina tinha “lembrado” (mas sem apresentar provas) que a alegada reunião a sós com Dilma Rousseff teria ocorrido em 19 de dezembro de 2008 (quando a ex-secretária estava em Natal e ministra, no Rio). Agora, a tal agenda teria sido encontrada (mas não mostrada), indicando data bem diversa: 9 de outubro de 2008, dia em que o próprio Planalto já havia confirmado a presença de Lina em suas dependências.

Uma discrepância de mais de dois meses tira do “relato” original de Lina Vieira, e de suas posteriores alegações, qualquer credibilidade. É inverossímil que, em agosto último, alguém em pleno gozo, supõe-se, das faculdades mentais confundisse dezembro e outubro anteriores. E desmascara mais ainda a leviandade da nova musa da oposição, ao aventar (estimulada pela reportagem?) que a suposta interferência da ministra estaria ligada à eleição de José Sarney para a presidência do Senado – assunto que, um ano atrás, sequer estava em cogitação.

Mas nada disso açula o animus investigandi jornalistas da Folha, clara e entusiasticamente empenhada em “fazer escada” para ex-secretária da Receita Federal. Resta saber o que fará esse jornal se o Planalto provar documentalmente que, em 9 de outubro de 2008, Lina Vieira esteve na presença da ministra Dilma Rousseff juntamente com outras pessoas – e que, portanto, o tal encontro a sós não ocorreu. Dará primeira página? Noticiará o que seja?

O “delenda Dilma” da casa está a cada dia mais pelúcido. Mas não somos tão tolos como pode parecer. Começamos a ler a Folha nos tempos de Cláudio Abramo. Aquele que ensinava o bom jornalismo. Bem diferente da vegetação rasteira que prevalece nas páginas do jornal atualmente.