terça-feira, 18 de novembro de 2008

A crise e a libertinagem financeira (2)

Por Altamiro Borges

A proposta do controle de fluxos de capital adquire maior relevância com as recentes turbulências no mercado financeiro mundial. Nas últimas semanas, a mídia tem atormentado a sociedade com as tenebrosas notícias de queda na bolsa de valores, elevação do dólar e piora do chamado "risco Brasil"... Alguns já se recordam dos efeitos dramáticos no México da alta dos juros nos EUA em 1994 — de 3% para 6%. Em poucos minutos, a economia mexicana, totalmente dependente dos capitais voláteis, ficou em frangalhos, com a quebradeira de empresas e milhares de demissões.


Conforme relata um excelente artigo na revista Carta Capital, passados dez anos do colapso no México, que abriu a temporada recente de crises financeiras pelo mundo, o planeta ficou ainda mais perigoso. Os países, principalmente os periféricos, estão cada vez mais vulneráveis. Cerca de US$ 2,6 trilhões circulam diariamente pelo globo sem qualquer controle. "A situação dos fluxos de capitais internacionais tornou-se um pesadelo no mundo", explicou à revista a especialista estadunidense Jane D'Arista [1].

O nó do tripé neoliberal

Esse fantasma agora ronda a economia brasileira - e deixa em apuros os mercadores de ilusões infiltrados no governo Lula - exatamente devido à total liberdade do fluxo de capitais. Encarado como dogma pelos adoradores do deus-mercado, o livre fluxo compõe o tripé satânico da política macroeconômica neoliberal - junto com os juros estratosféricos e o elevado superávit primário. Através deste mecanismo, o Estado é colonizado e se transforma numa máquina de transferência de riqueza do setor produtivo para a oligarquia financeira internacional. Esta libertinagem inviabiliza qualquer controle público sobre a entrada e saída de dinheiro no país; ela impede que o governo implemente uma política econômica alternativa, soberana.

Em certo sentido, a livre de circulação de capitais é o nó que ata as outras duas pontas deste tripé satânico. Pressionado pela brutal dívida pública, o governo é forçado a manter os juros nas alturas para atrair novos capitais que permitam o precário funcionamento da economia. Ao mesmo tempo, ela ajuda a entender o irracional processo de sucção do superávit primário. Este arrocho fiscal é exigido pelos credores para dar tranqüilidade ao deus-mercado e para atrair novos capitais externos. O resultado deste modelo nefasto é conhecido pelos brasileiros: a economia fica estagnada, o desemprego bate recorde, a renda despenca, o Estado tem fragilizada a sua capacidade de investimentos na infra-estrutura e nas áreas sociais.

Estado é refém dos rentistas

Na outra ponta, o dinheiro flui livremente para os ricos banqueiros. Só em 2003, o Brasil pagou R$ 145 bilhões apenas com juros. Isto representa cinco vezes mais que os investimentos previstos na Saúde (R$ 27 bilhões), oito vezes mais que em Educação (R$ 18 bilhões), 28 vezes mais que em Transporte (R$ 5 bilhões), 47 vezes mais que em Segurança Pública (R$ 6 bilhões), 70 vezes mais que em Ciência e Tecnologia (R$ 2 bilhões), 140 vezes mais que em Reforma Agrária (R$ 1 bilhão) e 700 vezes mais que em Saneamento. "Se as sociedades não têm meios para exercer a sua soberania sobre os capitais externos, só lhes resta cativá-los eternamente, oferecendo-lhes os rendimentos que eles exigirem" [2].

Esse mecanismo, tão idolatrado pelos neoliberais, ainda tem outros efeitos perversos. Faz com que o risco de abruptas crises cambiais se torne permanente, já que a qualquer momento os investidores podem deixar o país — e este perigo é instantâneo, on-line. Esta ameaça reforça ainda mais o poder do capital financeiro, que a usa como forma de chantagem. O Estado vira refém, sendo forçado a fazer sempre mais concessões — reformas liberalizantes, autonomia do BC, etc. Como analisa o deputado Sérgio Miranda, este poder descomunal só prova que o controle de capitais "é uma pré-condição para se debater a política econômica, pois não temos nenhum instrumento para combater esta ditadura do capital financeiro" [3].

Reforço à vulnerabilidade externa

Esta tirania ficou patente quando o governo Lula anunciou a retomada das contratações no setor público (congeladas desde Collor de Mello), abriu as negociações para reajustar os salários dos servidores (também arrochados há anos) e prometeu subsídios para a reforma agrária devido ao "abril vermelho". Na ocasião, as agências de risco (JP Morgan e Chase) elevaram as notas do famigerado "risco Brasil", numa típica chantagem, o que derrubou as ações da Bovespa e aumentou o dólar. A própria mídia burguesa não vacilou em interpretar estes relatórios como "puxões de orelha" no governo Lula por ter "cedido demais". Segundo o economista Marcos Antonio Cintra essa chantagem evidenciou os malefícios do tripé satânico.

"O modelo macroeconômico, ancorado no superávit primário, na meta de inflação e no cambio flutuante, restringe o raio de manobra das políticas domésticas. O relatório do JP Morgan simplesmente explicitou essas vulnerabilidades, interna e externa, sabidas por todos", explica Cintra. Para ele, esta tensão tende a aumentar nos próximos meses, o que pode comprometer de vez o programa de mudança do governo Lula. "A ameaça de fuga de capitais é permanente, uma espada sob a cabeça do presidente do BC e do ministro da Fazenda. Uma operação de remessa de recursos para o exterior, mediante a famosa conta CC-5, dura 15 minutos" [4].

Estímulo às atividades ilícitas

Outro efeito pernicioso do livre fluxo de capital, que só agora começa a vir à tona no país, é o incentivo às atividades ilícitas. Aproveitando-se da libertinagem financeira, da ausência de regulamentação e controle, grande parte das atividades ilegais que degradam o planeta, como a corrupção, o tráfico de drogas, de armas e de partes do corpo e o crime organizado, encontra o ambiente ideal para sua valorização e legalização. A CPI do Banestado, que apurou as denúncias da evasão ilegal de bilhões de dólares, descobriu novos traficantes, contrabandistas e políticos corruptos que utilizam os serviços "idôneos" dos bancos para a lavagem de dinheiro sujo e para a remessa de fortunas aos paraísos fiscais do exterior.

Só através do sinistro expediente da Carta Circular número 5, a famosa CC5 do Banco Central que sofreu drástica adulteração no governo FHC, bilhões sumiram do Brasil. "Pelas chamadas CC5 em geral, graças à liberalização, no período compreendido entre os anos de 1996 e 2002, saíram do país 219,2 bilhões de reais, perto de 80 bilhões de dólares... Em meados do ano passado, a polícia parisiense deteve por várias horas o ex-prefeito Paulo Maluf e sua esposa Sílvia em Paris, por conta de uma transferência de reais de conta brasileira que se transformou em 1,7 milhão de euros no Credit Agricole na capital francesa" [5].

Como se observa, o mundo vive sob a ditadura das finanças. A fração hegemônica do capital, a oligarquia financeira, manda e desmanda; manipula governos; arruína as economias nacionais; legaliza operações ilícitas. Enquanto as populações votam a cada quatro anos, as agências de risco e as instituições mundiais do capital, como o FMI e o Bird, "votam" a cada minuto, on-line. A movimentação financeira é frenética, sem qualquer controle. Ainda em 1998, estimava-se que o volume anual de transações chegava a US$ 380 trilhões de dólares, o equivalente a US$ 1,5 trilhão por dia. Hoje, o mercado financeiro especula com U$ 2,6 trilhões ao dia; enquanto isso, a humanidade é lançada diariamente na mais deprimente barbárie.


NOTAS

1- Flávia Pardini. "O aspirador de grana". Revista CartaCapital, 5/5/04.

2- Antonio Martins. "Alternativa ao caos". Portal Planeta Porto Alegre.

3- Nelson Breve. "Debate sobre controle de capitais chega ao Congresso". Carta Maior, 16/03/04.

4- Daniel Merli. "O abutre e sua gaiola". Portal Planeta Porto Alegre.

5- Raimundo Pereira. "O Banco Central dos fora-da-lei". Revista Reportagem, fevereiro de 2004.

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