Reproduzo artigo de Igor Felippe Santos, publicado no blog Escrevinhador:
As declarações do deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ) causaram indignação em todos aqueles que consideram o racismo uma ferida profunda e ainda aberta nosso país. Já a imprensa burguesa lançou mão da liberdade de expressão para limpar a barra do parlamentar. Um grupo de neonazistas convocou um “ato cívico” pró-Bolsonaro em São Paulo.
As manifestações do deputado, e toda a polêmica em torno do episódio, são apenas a ponta de um iceberg histórico da sociedade brasileira e suas contradições. A questão do racismo faz parte do processo da formação política, econômica, social e cultural do Brasil, que tem como elemento central a escravidão. Não podemos ignorar o passado, porque deixaríamos em segundo plano os fundamentos do preconceito contra os negros. Tanto que a associação de negros a promiscuidade vem desses tempos.
Desde a escravidão, os negros estão na base da pirâmide social e, os brancos, na parte superior. A escravidão acabou em 1888, com a Lei Áurea, mas pouca coisa mudou na estrutura social. Mesmo com a abolição, os negros ficaram impedidos de ter acesso à escola e à terra, por meio da Lei de Terras (decretada antes, em 1850). Com isso, foram obrigados a exercer para sobreviver atividades consideradas menos qualificadas, ficando como “serviçais dos brancos”.
No processo histórico do último século, os resultados do mecanismo de exclusão dos negros ficaram diluídos, ou seja, há negros com boas condições de vida, pardos pobres e brancos miseráveis. No entanto, a estrutura social continua sendo racista. Enquanto os brancos são excluídos por diferenças de classe, os negros são marginalizados por uma questão de classe e cor de pele.
O capitalismo brasileiro foi estruturado na dependência internacional e no racismo, que é um dos fatores determinantes da nossa formação. Ou seja, o racismo não é apenas uma declaração de preconceito na TV, mas uma cicatriz profunda no povo brasileiro. Enquanto os negros se identificam com os escravos, pois lá estão as raízes da atual exclusão, tem sido conveniente aos brancos deixar isso de lado, afinal de contas, não é nenhum orgulho. Daí surge o “esquecimento” das nossas raízes históricas.
Embora os homens e mulheres brancos não sejam “culpados” pela escravidão, se constituem como um bloco social, que sustenta e preserva essa formação social racista, que concentrou neles o poder e capital. Os negros, descendentes de escravos ou não, também formam um bloco social, marcado pela exploração do trabalho e discriminação.
O problema é que o processo de exclusão dos negros parece encoberto por um véu, como se as consequências de 300 anos de escravidão tivessem sido superadas. Só que o Brasil não passou uma Revolução Burguesa de tipo clássico, como na França e na Inglaterra, onde houve uma ruptura que levou ao enfrentamento das contradições sociais do regime anterior.
Florestan Fernandes ensina que não houve um colapso do poder oligárquico e a tomada do poder pela burguesia no Brasil. A oligarquia escravocrata entrou em crise, mas manteve a hegemonia sobre o processo de recomposição das estruturas de poder para a consolidação da dominação burguesa. Nesse processo, a oligarquia e burguesia conviveram nos mesmos círculos sociais, formando um padrão comum de ação e pensamento da elite brasileira.
Como não houve ruptura, não superamos os fundamentos que sustentam o racismo. Daí a importância da sociedade brasileira e o Estado admitirem que o nosso processo histórico marginalizou e marginaliza o negro. Só com esse diagnóstico entrará no horizonte as mudanças sociais necessárias para acabar com o ciclo racista. Isso pode representar um “sacrifício” da sociedade como um todo em benefício dos negros, só que não existiu sacrifício histórico maior do que a escravidão.
Uma medida importante é que a lei brasileira prevê a prisão por crime de racismo. Essa lei coloca no plano simbólico (lugar onde o racismo é muito forte) a noção de que ser racista é crime, que os negros precisam ser respeitados e tiveram força suficiente para que isso fosse regulamentado.
Só que essa lei só terá efetividade se for aplicada contra todos, principalmente os ricos e poderosos, que costumam ser beneficiados pela impunidade. Daí a importância da cassação do mandato do deputado Bolsonaro, que depois de perder a imunidade parlamentar deve ser preso por crime de racismo. Essa punição exemplar terá um significado importante pelo Estado admitir e punir o racismo na nossa sociedade.
No entanto, mais do que punir os racistas, a sociedade brasileira precisa ir à raiz da questão para subverter a lógica da exclusão do negro, por meio de mudanças estruturais que acabem com o processo histórico que se perpetua até hoje. Essa transformação só será possível com a organização e luta dos trabalhadores negros, em aliança com todo o povo brasileiro, para pressionar e sustentar essas transformações.
* Igor Felippe Santos (@igorfelippes) é jornalista, editor da Página do MST, integrante da Rede de Comunicadores pela Reforma Agrária e do Centro de Estudos Barão de Itararé.
2 comentários:
E se Bolsonaro defendesse a pedofilia?
Há duas distorções nos argumentos dos defensores de Jair Bolsonaro: uma visa proteger seu mandato; outra, a sua primariedade penal. Nenhuma delas tem a menor solidez. E ambas são terrivelmente hipócritas.
Durante o mandato, em manifestações públicas, um deputado federal jamais fala como “cidadão comum”. Ele representa o Congresso Nacional e, numa extensão simbólica, as próprias instituições democráticas do país. A imunidade parlamentar impõe responsabilidades que não se restringem ao ambiente do plenário. Caso contrário, o tal “decoro” ficaria restrito a etiquetas cerimoniais. Bolsonaro não usou sua baba retrógrada para discutir leis ou políticas públicas. Ofendendo as coletividades que odeia, ele insultou princípios constitucionais que é pago para preservar.
Ninguém defende o cerceamento da liberdade de expressão do imbecil. Tanto que ele pôde externar publicamente seu pensamento excrementício. Mas agora deve responder pelo gesto de expô-lo, daquela forma e naquelas circunstâncias. É sempre útil reafirmar que o pronunciamento racista e homofóbico do deputado não surgiu num contexto fictício, dramático, especulativo ou mesmo irônico. Ele tampouco foi flagrado numa conversa particular. Em pleno acirramento dos crimes motivados por raça e sexualidade, a fala do deputado ganha característica de incitação à delinqüência.
A hipocrisia dos defensores de Bolsonaro sobressai nas comparações com outros episódios que também precisaram de uma boa dose de ponderação e espírito democrático. Quando cassaram José Dirceu, não houve na imprensa corporativa quem o defendesse com base na sua representatividade ou na separação dos atos de ministro, parlamentar e líder partidário. O mesmo silêncio envolveu a absurda decisão de proibir a Marcha da Maconha em certas localidades, mesmo que os inúmeros argumentos favoráveis à legalização destruam a autoritária tese da “apologia ao crime”.
Caso Bolsonaro não tivesse atingido os negros ou os homossexuais, as reações da mídia conservadora seriam menos “tolerantes”. As boas famílias ficariam indignadas se ele dissesse, por exemplo, “tem umas garotinhas por aí, de onze, doze anos, que são umas delícias.” Notem que esta hipótese também expressaria um juízo individual. Mas será que alguém viria defendê-lo, ponderando que existe uma “pedofilia do bem”?
http://guilhermescalzilli.blogspot.com/
Perfeito! Comentário mais didático que esse, impossível!
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