sábado, 2 de junho de 2012

Imigrantes e o preconceito paulistano

Séries: Maternidades andinas - Roberto Mamani Mamani
http://mamanimamani-bolivia.blogspot.com.br
Por João Peres, na Revista do Brasil:

Os irmãos Mamani sofrem da sina do mal viver. Uns nasceram na Bolívia, outros vieram ao mundo no Brasil. Não importa: os traços andinos, o jeito tímido e a pele morena são pecados suficientes para dar-lhes, em vida, o direito ao calvário. Não há idade para começar a pagar penitência. É o despertar dos colegas à intolerância ao diferente o que sela a sorte desses meninos e meninas.


Laura (*), de 11 anos, vive distante do mundo colorido de seus ancestrais. “Não quero mais ir para a escola”, diz, envergonhada, sem fitar os olhos alheios, na casa em que vive, uma mistura de oficina de costura e moradia. Ultrapassado um pesado portão de ferro, revelam-se uma escadaria íngreme e, logo adiante, uma construção inacabada dividida em três pisos, todos habitados por várias famílias. A mãe trabalha das 7h às 22h30, de segunda a sexta, e faz umas horinhas no sábado em uma sala quente, de telhas plásticas, um ventilador ruidoso e luminárias amarradas por barbantes, prontas para despencar. Os problemas de Laura aumentaram no ano passado, quando passou a ser xingada dentro e fora da sala de aula. E também na rua de casa, onde é agredida fisicamente, o que torna as saídas cada vez mais escassas. “Falam que não gostam de bolivianos. A professora não faz nada”, queixa-se. Como ocorreu aos mais velhos, tomam-lhe o dinheiro do lanche. Como lhe ocorreu, contra o irmão de 7 anos, Álvaro*, atiram maçãs.Também batem e roubam.

A família Mamani, na verdade, não é uma triste exceção. “Boliviano, vai para casa. Você veio aqui roubar meu emprego” é o resumo do ideário que move os xenófobos de São Paulo. “Preconceitos que se encontram na rua estão na escola de maneira bastante evidente. Muitos professores moram no bairro e acabam por reproduzir o discurso”, afirma a pesquisadora Giovanna Modé, responsável pela tese de mestrado “Fronteiras do direito humano à educação”.

A São Paulo do século 21, sempre orgulhosa de sua vanguarda, sai na frente outra vez ao tratar os bolivianos de agora como os nordestinos de outrora. “À medida que o Brasil se consolida como polo regional, naturalmente nossas fronteiras vão receber um contingente cada vez maior de estrangeiros. É uma inversão da história”, afirma o promotor Eduardo Valério, do Ministério Público Estadual em São Paulo. Em janeiro, ele enviou ofício à prefeitura da capital e ao governo do estado em que questiona quais políticas públicas específicas são oferecidas aos imigrantes bolivianos, calculados em 150 mil pessoas. Há trabalhos de esclarecimento na área de saúde? Assistência social voltada aos que chegam? Reforço de aulas de português nas escolas? Valério continua a esperar por uma resposta. “É o momento de mostrarmos que no Brasil se acolhe o estrangeiro com respeito aos direitos humanos”, adverte.

Bahia ou Bolívia?

“Cabeça chata” era a expressão generalizadora da segunda metade do século 20 em São Paulo. Trazia implícito um pacote de adjetivos: lento, vagabundo, burro, incompetente, todos em oposição a uma suposta aptidão paulistana ao trabalho e ao sucesso individual. O “Bahia”, designação para todos os migrantes nordestinos, deu lugar ao “Bolívia”. “Vocês são índios. Sai daqui” é frase comum aos ouvidos de Cristina Rivas, de 27 anos, há 20 em São Paulo. Um preconceito mal resolvido se soma a outro. Os traços similares aos de grupos indígenas brasileiros rendem aos bolivianos chegados à cidade uma série de preconceitos: sujo, preguiçoso e bêbado. “As crianças viam a gente como se fosse um bicho diferente”, lembra. “Como eu era tímida, nem falava. Não conseguia aprender porque tinha medo de perguntar.”

Problema parecido passou Carla Yanapa, hoje com 19 anos. Chegou ao Brasil com 9, já na 4ª série, e logo contou com a compreensão das professoras para a fase de adaptação: “Vai escrever ou não vai escrever?” Em seguida, tomava “ponto negativo” por não conseguir redigir nada em português. Foi na marra, no passeio com o tio pelo bairro, no diálogo com a televisão, que ela aprendeu a se virar. “As professoras davam indireta de que boliviano não toma banho.” Quando mudou para outra escola, passou a contar com a ajuda dos docentes. Mas, aí, eram os colegas que não davam sossego. “Empurravam, quebravam minha presilha de cabelo.”

Giovanna Modé analisou um universo estimado em quase 1.500 bolivianos que estudam na rede pública em São Paulo. Eram raras as iniciativas de dar reforço escolar aos recém-chegados e de respeitar o tempo de adaptação a um novo país. Muitos dos imigrantes estão, na verdade, em um segundo momento de mudança. Primeiro, deixaram o interior da Bolívia, muitas vezes falando pouco de castelhano – a língua mais usada é o aimara –, e se mudaram de La Paz, com 900 mil habitantes, para uma selva de 11 milhões de almas. “Não existe política pública no sentido de reconhecer as particularidades da população”, aponta a hoje integrante da Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação. No caso de Carla, a persistência e a vontade de ajudar os pais a terem uma vida melhor acabaram prevalecendo, e este ano ela começou a cursar Jornalismo.

Mas a cidade que recebe a todos de braços abertos tem os punhos cerrados para os bolivianos. A cada cinco palavras ditas por María Sosa*, uma é medo. Outra é insegurança. Desde que apanhou, em novembro do ano passado, raramente ultrapassa o portão de casa. A filha, Jimena*, havia se transformado em alvo predileto das “brincadeiras” na classe. Um dia, colocaram em sua mochila objetos de outra menina, que logo a acusou de ladra.

Chamada à escola, María deparou com o pai da suposta vítima, que, ao notar sua origem, se transformou: “Seu lixo, boliviana de merda, vem aqui no meu país me roubar. Merda de boliviana”. A diretora pediu a María que esperasse na sala ao lado até que o senhor se acalmasse, mas, ao primeiro sinal de distração, ele correu atrás dela, puxou-a pelos cabelos e passou a arrastá-la pelo chão aos gritos de “boliviana de merda, vai embora”.

A única coisa em que o agressor acertou foi ao dizer que a agredida, por ser boliviana, jamais conseguiria puni-lo. Ao tentar o apoio da Polícia Militar, da Polícia Civil e da diretoria da unidade, só encontrou quem a desencorajasse a levar o caso adiante. Passou, então, a ter medo e, após dez anos em São Paulo, vive da porta para dentro. “Minha mãe me levava no parque, no zoológico”, lamenta Jimena, de olhos doces e fala mansa. “Ela ficou mais nervosa depois daquilo, briga comigo.” A família espera apenas o término do ano letivo para regressar a La Paz.

Problemas invisíveis

Se na educação os problemas se multiplicam, eles aparecem também na saúde e na assistência social. “O ilegal não quer ser notado”, diz Deisy Ventura, professora do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP) e atuante na área da integração sul-americana. E mesmo o legal enfrenta problemas: a Cristina tocou trabalhar na costura, outro pacote preconcebido por São Paulo ao boliviano. “Eu me preparei bem, fiz cursos, mas nas empresas não aceitam estrangeiros.”

Estrangeiros, aceitam. Segundo dados do Ministério do Trabalho e Emprego, 70.524 autorizações de trabalho foram concedidas a naturais de outros países em 2011, 14 mil a mais que no ano anterior e 36 mil a mais na comparação com 2008. “Acreditamos no mito de que somos um país aberto. A imigração bem-vinda é a branca, associada a um trabalho de formação do país”, diz Deisy. “O governo brasileiro dificulta a regularização. Não regularizar o imigrante é excluí-lo da vida social.”

Trancados em oficinas, muitas vezes submetidos a jornadas extenuantes, de segunda a sábado, não têm acesso a fontes de informação. “Nos países de origem não há saúde pública. É importante informá-los”, diz o coordenador-geral do Centro de Apoio ao Migrante (Cami), Roque Patussi. “Um dos fatores que afastam o estrangeiro do posto de saúde é o medo de não ser compreendido.” Ele sugere campanhas no rádio e panfletos em castelhano como forma de contar aos bolivianos que os direitos humanos básicos são, afinal, universais e não dependem de documentação. Faltaria, ainda, combinar com os servidores públicos, que muitas vezes desconhecem a obrigação do atendimento ao estrangeiro.

A advogada especializada em Direito Sanitário Tatiana Chang Waldman fez um levantamento com 28 mulheres bolivianas. Delas, três não haviam utilizado o sistema público de saúde. A dificuldade em ausentar-se do trabalho, o idioma e as diferentes relações culturais com o tratamento médico foram detectados como motivos para a frequência relativamente baixa de consultas. Três em cada quatro entrevistadas disseram haver diferenciação no tratamento – “olham feio”, “gritam” e “não têm paciência” foram alguns dos relatos. Para a pesquisadora, porém, a percepção sobre o preconceito no atendimento de saúde pode ser fruto de situações vividas em outras partes da cidade.

“Por que não se faz um trabalho na Kantuta?”, questiona Patussi, fazendo referência à praça adotada pela comunidade na zona norte paulistana. Aparentemente, não se vê muito glamour nos encontros de bolivianos. Em 24 de janeiro, a festa de Alacitas, tradicional celebração andina, tomou a rua Coimbra, na zona leste. Mas rapidamente apareceu a Guarda Civil Metropolitana, força de repressão municipal, para tentar barrar a reunião sob a alegação de irregularidades. Isso na véspera do aniversário do município, ocasião na qual vídeos e fotos exaltam uma vocação pluralista. “Somos descendentes dos incas. As pessoas veem que não somos daqui”, constata Marcelo Laura, há 18 anos no Brasil, hoje dono de um negócio de comidas típicas. Nada próximo do folclore do Bexiga, a Bela Vista, reduto italiano, ou da harmonia da Liberdade, de chineses e japoneses, ambos com festas promovidas pela administração municipal.

Anistia incompleta

O governo federal abriu em 2009 uma anistia aos estrangeiros. Na primeira fase, inscreveram-se 45 mil pessoas, mas, na hora de fazer a conversão ao visto permanente, dois anos depois, apenas 18 mil conseguiram. O problema principal, exposto ao secretário nacional de Justiça, Paulo Abrão, foi o tratamento pouco amável da Polícia Federal. Abrão assumiu o esforço de amenizar as exigências, mas esbarrou na atuação dos agentes federais.

A intransigência do órgão levou Elizabeth Espinoza e o marido, Rober Chuquimia, a cair no conto do vigário. Passando-se por advogado, um homem cobrou R$ 1.000 para ensinar o caminho da regularização. Por fim, tiveram de desembolsar R$ 4.200 à PF, o golpista sumiu e os papéis ainda não saíram. Toda vez que procuram alguma luz entre os servidores da polícia, recebem a recomendação de esperar. Sem dinheiro no bolso, com três filhos para sustentar, não conseguem voltar para a Bolívia nem viver em São Paulo.

Também convidada a sair foi Yeda*, mãe dos sete irmãos Mamani. O mais velho, de 19, deixou os estudos. A violência atrapalha igualmente os irmãos do meio. “Foi terrível”, lembra Jeferson*, de 16, sobre o dia em que bateram no primo. Andar pela rua é sinônimo de ser assaltado. “Tudo que acontece é nossa culpa. Falam que a gente só traz cocaína para cá.”

Para piorar, em dezembro o marido de Yeda deixou a família. Laura dorme pouco e, quando o faz, tem pesadelos. “Não tenho mais família. Quero ir para o orfanato. Aqui está ruim. Na escola está ruim.” A mãe recebe, em média, R$ 3 por peça costurada, o que toma uma hora e meia de trabalho. Sem o marido, não dá conta das despesas. Espera angariar R$ 1.400 para levar a família de volta. “A inclusão é boa para todos. É a convivência que faz a diferença para uma sociedade mais justa e igualitária”, diz Giovanna Modé. Se depender do senso de justiça de alguns órgãos públicos, o promotor Valério continuará a esperar sentado. Se depender da ajuda dos vizinhos, Yeda pode começar a rezar para Pachamama.

* Nomes fictícios

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