Por Venício A. de Lima, no Observatório da Imprensa:
Inúmeras têm sido as dificuldades enfrentadas pelos que lutam pela liberdade de expressão ao longo dos anos. Talvez a maior delas seja encontrar uma maneira simples e clara, capaz de traduzir para a linguagem comum, as diversas maneiras pelas quais o direito à comunicação diz respeito e afeta diretamente o cotidiano de cada um de nós.
Não temos conseguido realizar esta tarefa básica. Em consequência, o indispensável envolvimento e a mobilização popular em torno da luta pela liberdade de expressão ainda não foram suficientes para provocar as mudanças estruturais necessárias no quadro institucional que regula a atividade de comunicações no Brasil.
Não há dúvida, todavia, que estamos avançando e o livro que o leitor(a) tem em mãos é um exemplo importante desse caminhar.
O que Pedrinho Guareschi consegue fazer, com sua habitual competência, neste O direito humano à comunicação – Pela democratização da mídia é exatamente uma tradução sumarizada da ampla questão que envolve o direito à comunicação, em suas diferentes dimensões – conceitual, histórica e ética – além de avançar na proposição de ações que possam conduzir, afinal, à conquista desse direito fundamental.
Ideia de liberdade
Escrito, como diz seu autor, em tempos de mudança (kairós), o leitor(a) encontrará aqui elementos que ajudam a desvendar o que ele apropriadamente chama de “estratégia de confusão”. Adotada – com sucesso – pela grande mídia e seus aliados, ela tenta esconder a natureza de um sistema cuja característica principal é a exclusão histórica das vozes da maioria dos brasileiros do debate público.
Na verdade, decisões tomadas ainda no início da década de 1930 definiram nossa radiodifusão como um serviço público explorado, preferencialmente, pela iniciativa privada. A partir daí, consolidou-se uma legislação assimétrica em relação a outros serviços públicos, omissa, desatualizada e, no que se refere a normas e princípios da Constituição de 1988, não regulamentada, vale dizer, não cumprida.
A total ausência de controle da propriedade cruzada dos meios e da formação de redes (de rádio e televisão) deu origem a poderosos oligopólios empresarias multimídia – nacionais, regionais e/locais – que exercem seu controle, não só sobre a maioria das concessões de radiodifusão, como também sobre a mídia impressa (jornais e revistas) e, mais recentemente, sobre os principais provedores de internet.
Paralelo a estes oligopólios, em decorrência da privatização das telecomunicações promovida pelos governos neoliberais da década de 1990, emergiram megaempresas globais que exploram os serviços de telefonia fixa e móvel e, em alguns casos, também os serviços de televisão paga (distribuição de conteúdo).
Diante deste quadro, Guareschi retoma a matriz “dialógica” elaborada pelo educador brasileiro Paulo Freire que se diferencia da tradição clássica ao retornar à raiz semântica da palavra e a ela acrescentar a dimensão política da igualdade e da ausência de dominação. Recorrendo ao mito do Gênesis, no qual o domínio de Adão sobre o universo é representado por sua ação de “dar nome” aos animais, Freire define a comunicação como “um encontro entre homens, mediados pela palavra, a fim de dar nome ao mundo” e, dessa forma, antecipa o que mais tarde seria chamado de “ação comunicativa” ou “ética do discurso”.
Ao restringir o significado da comunicação a uma relação entre sujeitos, necessariamente iguais, toda “relação de poder” fica excluída. A comunicação passa a ser, portanto, de “mão dupla”, contemplando, ao mesmo tempo, o direito de voz e o direito de ser ouvido, além do direito de acesso aos meios tecnológicos necessários à plena liberdade de expressão. E o próprio conhecimento gerado pelo diálogo comunicativo só será verdadeiro e autêntico quando comprometido com a justiça e a transformação social.
Até recentemente, este modelo da comunicação dialógica parecia inadequado para qualquer tipo de aplicação no contexto da comunicação midiatizada. Na verdade, Freire teorizou essa comunicação antes da revolução digital, antes da internet e antes das redes sociais. Hoje as TICs reabrem a possibilidade da interação permanente e on-line no próprio ato da comunicação. O modelo normativo construído por Freire, portanto, ganha atualidade e passa a servir de ideal para a comunicação publica midiatizada.
Guareschi, corretamente, nos lembra da necessidade de verticalizar o debate sobre o direito à comunicação que, em sua base, implica uma visão do ser humano e de sua liberdade. Recorrendo a Hanna Arendt, ele desnuda as diferenças entre a concepção liberal de liberdade – amoldada ao sistema capitalista – e outra liberdade que se constrói na relação com o outro.
Na verdade – sem que isso seja explicitado – Guareschi está falando da liberdade que encontra sua raiz na democracia ateniense e no humanismo cívico do republicanismo moderno. A mesma liberdade de que está impregnada a comunicação dialógica de Paulo Freire e que equaciona autogoverno com participação política, contrariamente à liberdade negativa do liberalismo clássico.
Como sabemos, a liberdade liberal tem sua matriz no liberalismo que se constrói a partir do século XVII na Inglaterra, depois como reação conservadora à Revolução Francesa e se consolida no século XIX em complemento à ideia de mercado livre, isto é, à liberdade privada de produzir, distribuir e vender mercadorias. Prevalece o caráter pré-político da liberdade, como um direito exclusivo da esfera privada. A versão mais conhecida dessa perspectiva é a que reduz a liberdade à ausência de interferência externa na ação do indivíduo, a chamada liberdade negativa.
A liberdade republicana, ao contrário, se associa historicamente à democracia clássica grega, à república romana e ao humanismo cívico do início da Idade Moderna. Nela prevalece a ideia de liberdade associada à vida ativa, ao livre-arbítrio, ao autogoverno e à participação na vida pública.
Liberdade e democracia
São tradições distintas: a republicana se origina em Atenas, passa por Roma e se filia modernamente a pensadores como Maquiavel, John Milton, Thomas Paine e Hanna Arendt. A liberal, em Hobbes, Locke, Benjamin Constant e, mais recentemente, em Isaiah Berlin.
Para Hanna Arendt e Paulo Freire, o eixo principal da vida pública está na participação ativa, no direito à voz e a ser ouvido. A liberdade não antecede à política, mas se constrói a partir dela.
Por fim, Guareschi discute a TV pública, a internet e, sobretudo, os conselhos de comunicação – nacional, estaduais e municipais – como possibilidades de se avançar através da participação popular na formulação, acompanhamento e avaliação das políticas públicas – participativas e democráticas – de comunicação em seus diferentes níveis. Temos aí um longo percurso a ser percorrido, mas a direção está indicada.
Não há dúvida de que O direito humano à comunicação – Pela democratização da mídia de Pedrinho Guareschi constituirá, a partir de agora, referência obrigatória para todos e todas que lutam pelo direito à comunicação, fundamental para a liberdade humana e para a construção democrática.
* Apresentação de O direito humano à comunicação – Pela democratização da mídia, de Pedrinho Guareschi, Editora Vozes, 2013; R$ 36,00 [Brasília, Outono de 2013].
Não temos conseguido realizar esta tarefa básica. Em consequência, o indispensável envolvimento e a mobilização popular em torno da luta pela liberdade de expressão ainda não foram suficientes para provocar as mudanças estruturais necessárias no quadro institucional que regula a atividade de comunicações no Brasil.
Não há dúvida, todavia, que estamos avançando e o livro que o leitor(a) tem em mãos é um exemplo importante desse caminhar.
O que Pedrinho Guareschi consegue fazer, com sua habitual competência, neste O direito humano à comunicação – Pela democratização da mídia é exatamente uma tradução sumarizada da ampla questão que envolve o direito à comunicação, em suas diferentes dimensões – conceitual, histórica e ética – além de avançar na proposição de ações que possam conduzir, afinal, à conquista desse direito fundamental.
Ideia de liberdade
Escrito, como diz seu autor, em tempos de mudança (kairós), o leitor(a) encontrará aqui elementos que ajudam a desvendar o que ele apropriadamente chama de “estratégia de confusão”. Adotada – com sucesso – pela grande mídia e seus aliados, ela tenta esconder a natureza de um sistema cuja característica principal é a exclusão histórica das vozes da maioria dos brasileiros do debate público.
Na verdade, decisões tomadas ainda no início da década de 1930 definiram nossa radiodifusão como um serviço público explorado, preferencialmente, pela iniciativa privada. A partir daí, consolidou-se uma legislação assimétrica em relação a outros serviços públicos, omissa, desatualizada e, no que se refere a normas e princípios da Constituição de 1988, não regulamentada, vale dizer, não cumprida.
A total ausência de controle da propriedade cruzada dos meios e da formação de redes (de rádio e televisão) deu origem a poderosos oligopólios empresarias multimídia – nacionais, regionais e/locais – que exercem seu controle, não só sobre a maioria das concessões de radiodifusão, como também sobre a mídia impressa (jornais e revistas) e, mais recentemente, sobre os principais provedores de internet.
Paralelo a estes oligopólios, em decorrência da privatização das telecomunicações promovida pelos governos neoliberais da década de 1990, emergiram megaempresas globais que exploram os serviços de telefonia fixa e móvel e, em alguns casos, também os serviços de televisão paga (distribuição de conteúdo).
Diante deste quadro, Guareschi retoma a matriz “dialógica” elaborada pelo educador brasileiro Paulo Freire que se diferencia da tradição clássica ao retornar à raiz semântica da palavra e a ela acrescentar a dimensão política da igualdade e da ausência de dominação. Recorrendo ao mito do Gênesis, no qual o domínio de Adão sobre o universo é representado por sua ação de “dar nome” aos animais, Freire define a comunicação como “um encontro entre homens, mediados pela palavra, a fim de dar nome ao mundo” e, dessa forma, antecipa o que mais tarde seria chamado de “ação comunicativa” ou “ética do discurso”.
Ao restringir o significado da comunicação a uma relação entre sujeitos, necessariamente iguais, toda “relação de poder” fica excluída. A comunicação passa a ser, portanto, de “mão dupla”, contemplando, ao mesmo tempo, o direito de voz e o direito de ser ouvido, além do direito de acesso aos meios tecnológicos necessários à plena liberdade de expressão. E o próprio conhecimento gerado pelo diálogo comunicativo só será verdadeiro e autêntico quando comprometido com a justiça e a transformação social.
Até recentemente, este modelo da comunicação dialógica parecia inadequado para qualquer tipo de aplicação no contexto da comunicação midiatizada. Na verdade, Freire teorizou essa comunicação antes da revolução digital, antes da internet e antes das redes sociais. Hoje as TICs reabrem a possibilidade da interação permanente e on-line no próprio ato da comunicação. O modelo normativo construído por Freire, portanto, ganha atualidade e passa a servir de ideal para a comunicação publica midiatizada.
Guareschi, corretamente, nos lembra da necessidade de verticalizar o debate sobre o direito à comunicação que, em sua base, implica uma visão do ser humano e de sua liberdade. Recorrendo a Hanna Arendt, ele desnuda as diferenças entre a concepção liberal de liberdade – amoldada ao sistema capitalista – e outra liberdade que se constrói na relação com o outro.
Na verdade – sem que isso seja explicitado – Guareschi está falando da liberdade que encontra sua raiz na democracia ateniense e no humanismo cívico do republicanismo moderno. A mesma liberdade de que está impregnada a comunicação dialógica de Paulo Freire e que equaciona autogoverno com participação política, contrariamente à liberdade negativa do liberalismo clássico.
Como sabemos, a liberdade liberal tem sua matriz no liberalismo que se constrói a partir do século XVII na Inglaterra, depois como reação conservadora à Revolução Francesa e se consolida no século XIX em complemento à ideia de mercado livre, isto é, à liberdade privada de produzir, distribuir e vender mercadorias. Prevalece o caráter pré-político da liberdade, como um direito exclusivo da esfera privada. A versão mais conhecida dessa perspectiva é a que reduz a liberdade à ausência de interferência externa na ação do indivíduo, a chamada liberdade negativa.
A liberdade republicana, ao contrário, se associa historicamente à democracia clássica grega, à república romana e ao humanismo cívico do início da Idade Moderna. Nela prevalece a ideia de liberdade associada à vida ativa, ao livre-arbítrio, ao autogoverno e à participação na vida pública.
Liberdade e democracia
São tradições distintas: a republicana se origina em Atenas, passa por Roma e se filia modernamente a pensadores como Maquiavel, John Milton, Thomas Paine e Hanna Arendt. A liberal, em Hobbes, Locke, Benjamin Constant e, mais recentemente, em Isaiah Berlin.
Para Hanna Arendt e Paulo Freire, o eixo principal da vida pública está na participação ativa, no direito à voz e a ser ouvido. A liberdade não antecede à política, mas se constrói a partir dela.
Por fim, Guareschi discute a TV pública, a internet e, sobretudo, os conselhos de comunicação – nacional, estaduais e municipais – como possibilidades de se avançar através da participação popular na formulação, acompanhamento e avaliação das políticas públicas – participativas e democráticas – de comunicação em seus diferentes níveis. Temos aí um longo percurso a ser percorrido, mas a direção está indicada.
Não há dúvida de que O direito humano à comunicação – Pela democratização da mídia de Pedrinho Guareschi constituirá, a partir de agora, referência obrigatória para todos e todas que lutam pelo direito à comunicação, fundamental para a liberdade humana e para a construção democrática.
* Apresentação de O direito humano à comunicação – Pela democratização da mídia, de Pedrinho Guareschi, Editora Vozes, 2013; R$ 36,00 [Brasília, Outono de 2013].
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