terça-feira, 22 de abril de 2014

O futuro da internet no Brasil

Por Maurício Ayer e Antonio Martins, no site Outras Palavras:

O sociólogo catalão Manuel Castells, autor de A Sociedade da Informação; o engenheiro inglês sir Tim Berners-Lee, que criou a World Wide Web; o músico e ex-ministro brasileiro Gilberto Gil, cujo currículo inclui participação destacada na conferência internacional que debateu, em Túnis (2005) o futuro da internet, têm uma tarefa árdua, esta semana, em São Paulo. Junto com oitocentos representantes (de duzentos países) e com outros intelectuais e ativistas destacados, eles tentarão afastar sombras que pairam sobre o futuro da rede mundial de computadores – e, em muitos sentidos, da democracia.

Como permitir que a internet continue a alimentar a esperança de comunicação direta, sem intermediários e fundamentalmente desmercantilizada, entre os seres humanos? De que modo evitar que ela seja contaminada pela espionagem maciça, censurada por governos autoritários ou reduzida a um espaço mercantil, em que o grande poder econômico controla os fluxos de informação relevantes? Estes são alguns dos temas da Net Mundial e Arena Net Mundial, eventos marcados para 22 a 24 de abril, no Hotel Grand Hyatt e Centro Cultural de São Paulo.

Os encontros não têm poder mandatório. Invenção recente, a internet surgiu, além disso, numa época de crises de hegemonias, instituições e projetos. Continuará, nos próximos anos, ameaçada por governos, grandes empresas e agências militares de atuação global, como a NSA norte-americana.

Mas sobre a rede agirá, também, um contrapoder notável. Exercido pelas sociedades civis – de forma ora explícita, ora difusa –, ele tem sido capaz de manter um grau de liberdade surpreendente, se se levam em conta as turbulências do cenário global. Derrubou leis autoritárias. Driblou tentativas de censura. Estimulou o surgimento de plataformas que multiplicam a colaboração (como a Wikipedia), os diálogos (como as redes sociais) e as trocas não mediadas pelo dinheiro (como os sistemas de compartilhamento de música, livros e outros bens culturais). Criou formas embrionárias de democracia pós-estatal (uma delas é o Comitê Gestor da Internet brasileiro, o CGI.br). Articular este contrapoder, prepará-lo para os desafios mais duros que virão, é, provavelmente, o que se pode esperar de melhor dos encontros desta semana.

O engenheiro Tim Berners-Lee é uma das grandes atrações da Arena Net Mundial – uma espécie de fórum de debates da sociedade civil que se desenvolverá no Centro Cultural de São Paulo, aberto ao público (veja programação) e transmitido ao vivo (inclusive no blog de Outras Palavras). Além de ter proposto, há 25 anos, os protocolos de comunicação que permitiram o surgimento da World Wide Web (a internet como a conhecemos hoje), ele mantém-se atento, como personalidade ativista, às lutas pela liberdade da rede. Há poucas semanas, envolveu-se diretamente na luta pela aprovação, na Câmara dos Deputados, do Marco Civil para a rede brasileira. Lembrou, em nota pública que, a lei (que ainda depende de aprovação no Senado) “reflete a Internet como esta deveria ser: uma rede aberta, neutra e descentralizada, na qual os usuários são o motor da colaboração e da inovação”. Por meio dela, acrescentou, o país ajudará “a desencadear uma nova era – em que os direitos dos cidadãos em todos os países sejam protegidos por uma Carta de Direitos Digitais”.

Não foram palavras gratuitas. Desde Lula, o governo brasileiro mantém, como se verá adiante, uma posição de vanguarda, na batalha pela gestão democrática da internet. Mas esta postura só se manteve porque se apoiou num movimento autônomo e vibrante, entre a sociedade civil – capaz de derrotar e reverter, em algumas ocasiões, as posições dos líderes de partidos governistas. Um de seus feitos é conhecido: a luta pelo próprio Marco Civil, que já dura dez anos. Outra, é quase ignorada: um Comitê Gestor da Internet (CGI.br), visto por muitos como protótipo do que pode ser a governança global da rede. Ambas estão entrelaçadas e remontam a 2003.

A eleição de Lula permitiu que chegassem a órgãos da área de tecnologia antigos ativistas pela liberdade na rede. O sociólogo Sérgio Amadeu, por exemplo, dirigiu por alguns anos o Instituto Nacional de Tecnologia da Informação (ITI). Sob sua influência, e de um grupo de pesquisadores com posições semelhantes, iniciou-se a reforma do CGI.br.

Partia-se de uma base importante. Criado em 1995, no início do governo FHC, o CGI.br adotou o inovador e democrático modelo multiparcerias (multistakeholder, em inglês). A internet brasileira não é, desde o início, controlada pelo Estado – mas gerida por uma pluralidade de representações, com membros provenientes do governo, academia, sociedade civil organizada (ONGs), empresários e especialistas. A ideia é que toda decisão tomada contemple uma escuta de todos esses setores.

Mas o formato tinha limites claros. Todos os membros eram indicados pelo governo – mesmo os que não representavam instâncias governamentais. “Esse modelo, em que ouço a sociedade mas sou eu que digo quem pode falar comigo, não parecia o bastante para a nossa ideia de participação”, lembra Amadeu. “Então, houve uma reforma. Conseguimos que os membros representantes da sociedade fossem eleitos por voto direto de cada setor. E também, que o governo fosse minoria no Comitê”. Hoje, dos 21 membros, nove representam ministérios e agências do governo e doze são reservados aos outros setores. É um exemplo de democracia participativa, livre em certa medida da institucionalidade estatal, que funciona com sucesso no Brasil.

Tais características permitiram que o CGI.br fosse protagonista decisivo numa luta na construção do Marco Civil – a lei que Berners-Lee vê como exemplo para a internet global. O embate começa também em 2003.

Usando como pretexto “proteger a sociedade contra a pornografia infantil”, o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) apresentou projeto para ampliar o controle de conteúdos na internet, que ficou conhecido como o “AI-5 digital”. Após passar pelas comissões de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática e de Assuntos Econômicos (CAE), viria a ser aprovado no Senado em 2008 – com parecer favorável de um expoente da bancada governista, o senador Aloízio Mercadante (PT-SP).

Em 25 de junho daquele ano, o projeto subiu para votação no Senado, no mesmo momento em que ocorria o 10º Fórum Internacional do Software Livre (FISL) em Porto Alegre. Houve uma forte reação contrária, na internet, e a votação foi adiada. No dia 26, o presidente Lula visitou o FISL, conversou com ativistas e fez um discurso que seria o estopim do processo de confecção colaborativa do texto do Marco Civil. Respondendo a ativistas que pediam “veto ao AI-5 digital”, ele fez duras críticas ao projeto de Azeredo. Afirmou tratar-se de censura na internet. Assegurou que no seu governo era “proibido proibir”. Diante de um público de mais de 2 mil pessoas, convocou o então ministro da Justiça, Tarso Genro, a construir um projeto de lei da internet que contemplasse os anseios da sociedade civil.

Mesmo diante da clara disposição do Executivo, o Senado aprovou, em 9 de julho, um texto do AI-5 Digital com emendas do senador Mercadante, encaminhando-o à Câmara.

Paralelamente, o Ministério da Justiça (MJ), juntamente com o CGI.br, iniciou o diálogo com a sociedade civil para a construção da nova proposta. Decidiu-se utilizar, para tanto, uma rede social específica (CulturaDigital.br), criada pouco antes pelo Ministério da Cultura, num processo de consulta pública conduzido pelo MJ e com a operacionalização de técnicos da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Após intensas contribuições, principalmente ao longo do ano de 2010, redigiu-se o projeto de lei. Sua coluna dorsal era a lista de dez princípios para governança e uso da Internet no Brasil que o CGI.br havia produzido e divulgado em 2009, em que as garantias de segurança, estabilidade jurídica, privacidade e neutralidade da rede já estavam colocadas.

Este projeto, construído de maneira exemplarmente participativa, é o que foi apresentado à Câmara dos Deputados. No momento da votação, já com apoio de diversos setores da sociedade, teve que enfrentar o poderoso lobby das empresas de telecomunicação e sua bancada, liderada pelo deputado federal Eduardo Cunha (PMDB/RJ). Sabendo da prioridade que o governo Dilma dava à aprovação do Marco Civil, pois seria um importante legitimador de suas propostas para o NETmundial, Eduardo Cunha angariou apoios para travar o debate na Câmara, o que acabou lhe rendendo a capa da revista IstoÉ sendo chamado de “O sabotador da República”.

O Marco Civil foi finalmente aprovado na Câmara, e está neste momento submetido ao Senado brasileiro. A bancada governista aposta na possibilidade de votar e aprovar o projeto antes do NETmundial, para que a presidenta Dilma possa sancionar a lei durante o evento.

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Enquanto a Arena Net, no Centro Cultural tende a ser expansiva e caótica, a Net Mundialserá mais circunspecta e formal. Ocupará os luxuosos auditórios do Hotel Hyatt, em é organizada em parceria pelo CGI.br e pelo /1Net, que se define como um “fórum que reúne entidades internacionais dos vários setores envolvidos com a governança da Internet”.

O evento adota o modelo de organização multiparcerias, que tem sido predominante nos principais fóruns de discussão e instituições de governança de Internet. Seus 800 delegados originam-se de cinco setores: governos; sociedade civil organizada; empresas; universidades e outras instituições acadêmicas; especialistas técnicos.

Funcionará como um grande fórum de debates. Embora não deliberativo, sua importância cresceu nas últimas semanas, desde que o governo Obama, sob pressão internacional intensa, após as denúncias de espionagem global da NSA, admitiu, em palavras, compartilhar a gestão da internet, que hoje os EUA exercem solitariamente.

Coincidentemente, a trajetória até a Net Mundial também começa em 2003, quando a União Internacional das Telecomunicações (UIT), órgão da ONU que congrega grandes corporações do setor, organizou, em Genebra, a primeira etapa da Cúpula sobre a Sociedade da Informação – que seria concluída dois anos depois, em Túnis.

A pauta era ampla. A internet era um, entre muitos temas. Sobre ela, ninguém imaginava polêmicas – mas a postura da delegação brasileira surpreendeu. Chefiada pelo embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ela marcou o evento ao frisar a necessidade de se rever a governança da Internet, no sentido de torná-la menos concentrada em mãos estadunidenses. Até então, a questão era discutida apenas por ativistas. Além de incorporar suas preocupações ao discurso do governo brasileiro, Samuel compôs o grupo brasileiro que foi a Genebra incluindo representantes da sociedade civil – entre eles, lideranças do ciberativismo.

Sérgio Amadeu, então no ITI e também presente em Genebra, relembra: “Índia e África do Sul apoiaram imediatamente a posição brasileira. Mas a China também o fez; então os Estados Unidos passaram a acusar os brasileiros de quererem jogar a internet nas mãos de ‘Estados autoritários’. A posição deles era: ‘a Internet é nossa, se quiserem façam a de vocês’”.

No início de novembro de 2005, houve a Cúpula Mundial de Cidades e Autoridades Locais sobre a Sociedade da Informação, em Bilbao, Espanha, onde o debate tomou corpo. Quando chegou a Túnis, dias depois, a articulação em torno da proposta primeiramente formulada pelo Brasil estava muito mais consolidada. Contava om o apoio dos BRICS e de muitos outros países chamados “periféricos”.

Desta vez liderada pelo ministro da Cultura, Gilberto Gil, a delegação brasileira atraiu muita atenção. Sua base, na capital da Tunísia, tornou-se um verdadeiro centro informal de debates abertos, para o qual afluía, após as conferências oficiais, grande parte dos intelectuais, ativistas e mesmo representantes governamentais presentes. Ao final do evento, a União Europeia juntou-se ao grupo de países que apoiavam a internacionalização e democratização da governança da Internet.

Tornou-se incontornável propor um passo a mais. A solução encontrada foi criar o Fórum de Governança da Internet (IGF, na sigla em inglês), que passaria a se reunir anualmente e também seria composto segundo o modelo de multiparcerias.

O primeiro encontro do grupo aconteceu em Atenas (Grécia), em 2006, com o tema “Governança da Internet para o desenvolvimento”, que foi mantido para a edição seguinte, no Rio de Janeiro, em 2007. Já em Hyderabad (Índia) 2008, mudou-se o foco para uma proposta de cunho mais popular, “Internet para todos”. Ela daria a tônica dos temas nos anos seguintes, realizados em Sharm el Sheikh (Egito) 2009, Vilnius (Lituania) 2010, Nairóbi (Quênia) 2011, Baku (Azerbaijão) 2012, e Bali (Indonésia) 2013.

O IGF mantém o debate sobre a governança da internet na cena internacional. Porém, nunca se configurou como uma instância de proposições, cujas decisões fossem capazes de direcionar os rumos das relações entre os países na rede. Para superar este limite, foi necessária uma virada. Ela veio com a série de denúncias abertas por Edward Snowden em 2013. O ex-contratado da CIA deixou claro que a rede de espionagem montada pelas agências militares norte-americanas era global; baseava-se na Internet, ameaçando desfigurar por completo os objetivos da rede; voltava-se inclusive contra chefes de Estado (entre os quais, Dilma e a alemã Angela Merkel); e nada tinha a ver com “combate ao terrorismo”.

O marco na construção de um novo momento foi o discurso de Dilma Rousseff na ONU, em setembro daquele ano. “Pela primeira vez, uma chefe de Estado pronunciava-se claramente defendendo os direitos civis como a liberdade de expressão e a privacidade, e atacando a intervenção na rede”, analisa Sérgio Amadeu. Em outras palavras, o discurso que ativistas de todo mundo faziam há anos tinha ressonância na Assembleia Geral da ONU. O teor da fala de Dilma surpreendia inclusive em relação ao seu próprio governo: o Ministério das Comunicações vinha sinalizando com ideias bastante diferentes dessas, mais alinhadas aos interesses das grandes corporações das telecomunicações.

Depois do histórico discurso de Dilma na ONU, líderes das principais instituições de governança da internet, como ISOC, ICANN, IAB/IETF, IANA – os cinco RIRs (Regional Internet Registries) – e W3C, (às vezes referidas como “organizações técnicas da internet”, segundo elas mesmas)reuniram-se em Montevidéu, na chamada iniciativa /1NET, e produziram uma declaração, com proposições que incluem:

• Forte preocupação com a vigilância e o monitoramento invasivos.

• Necessidade de encarar os desafios da Governança da Internet.

• Necessidade de evolução da cooperação multiparcerias global da Internet.

• Necessidade de globalizar funções do ICANN e IANA.

Passo seguinte, os técnicos da /1NET reúnem-se ao CGI.br e buscam a presidência do Brasil para organizar o Net Mundial em São Paulo. Mas quais serão as possíveis pautas do encontro?

Uma das mais cruciais, diz Sérgio Amadeu, é desconcentrar as decisões sobre a internet. “Os Estados Unidos têm legitimidade em relação à rede, pois foi lá que ela surgiu – mas hoje, tornou-se planetária”, lembra ele.

Hoje, alguns dos principais organismos de governança da Internet global estão sediados nos EUA e, portanto, submetidos às leis daquele país. Mesmo que realizem um trabalho respeitável, do ponto de vista técnico, a ideia de que operações estratégicas estejam sob jurisdição internacional é central para tornar possível a pluralidade plena da Internet.

Pode-se citar o caso do ICANN – Internet Corporation for Assigned Names and Numbers‎. Responsável pela gestão dos “nomes e números” dos domínios da Internet, isto é, dos endereços que digitamos ao acessar algum site, o órgão é, juridicamente, uma empresa privada. Procura seguir o modelo de multiparcerias – mas atua por contrato com o governo dos EUA. Será sensato mantê-lo sob este controle, sabendo que seus serviços são centrais para o funcionamento da rede em escala global, e que as agências militares de Washington já não hesitam em contrariar o Direito internacional, em nome de seus objetivos particulares?

Na luta contra o poder opressivo dos EUA, é preciso evitar respostas fáceis. Um caminho indesejável seria que, na mudança, ocorresse a fragmentação da Internet – ou “balcanização”, como se costuma designar esse risco. Significaria construir um modelo em que cada Estado-Nação ganha “autonomia” para gerir a rede em suas fronteiras. Tal fórmula abriria espaço, por exemplo, para que os governos estabelecessem, em nome do “interesse nacional”, diversas modalidades de censura, vigilância e controle. Assegurar uma só Internet, que garanta mundialmente aos cidadãos a privacidade, a liberdade de expressão, a neutralidade e a democracia dos processos de governança, impedindo que interesses privados ou unilaterais se sobreponham ao imenso potencial criativo e libertário da rede, é o desafio que está no centro palco.

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