Por Renata Mielli, no site do Centro de Estudos Barão de Itararé:
Em 2 de fevereiro, na sessão solene de reabertura do ano legislativo, a presidenta Dilma Rousseff frisou em seu discurso na Câmara: “No ano legislativo que se inicia, nossa agenda com o Congresso Nacional terá, além das propostas para a reforma fiscal a médio e longo prazo, também medidas para melhorar o ambiente de investimentos. Pretendemos ver retomado o debate sobre o marco regulatório da mineração, já submetido ao Congresso. Encaminharemos, ainda, um novo marco regulatório das telecomunicações, ajustado ao novo cenário de convergência tecnológica”.
Alguns dias antes, na primeira reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, ela deu atenção especial para o novo marco regulatório das telecomunicações. Seu ministro das Comunicações, André Figueiredo, anunciava no mesmo dia que esse projeto de novo marco regulatório chegaria no Congresso em março.
De que se trata?
Em 23 de novembro de 2015 foi lançada uma consulta pública relâmpago sobre a revisão do atual modelo legal de prestação de Serviços de Telecomunicações. Prevista para receber contribuições da sociedade por apenas 30 dias, acabou se estendendo por 45 devido à pressão da sociedade, encerrando-se em 15 de janeiro de 2016. A consulta foi organizada em cinco eixos: Objeto da Política Pública; Política de Universalização; Regime Público vs Regime Privado; Concessão e Outros Temas, precedido por um texto de Origens, cenário atual, desafios e visão de futuro para o modelo de telecomunicações.
O ofício encaminhado pelo Barão de Itararé ao Ministério das Comunicações, solicitando a prorrogação da consulta para 90 dias, destacou que o prazo estipulado pelo Ministério era “totalmente insuficiente e inadequado para reunir os mais distintos atores sociais e apresentar propostas para uma discussão que é muito abrangente e complexa”. O pedido sublinhou preocupação com o resultado da consulta e as propostas finais que “podem aprofundar ou fragilizar a soberania nacional, impactar de forma positiva ou negativa no desenvolvimento interno e externo, e podem alavancar ou comprometer o papel inalienável do Estado em prover serviços de telecomunicações que são essenciais para o exercício da cidadania, para o livre fluxo de informações e, portanto, são chaves para a democracia”.
O que motivou a iniciativa?
Está claro no texto de apoio à consulta, nos preâmbulos de cada eixo e no direcionamento das questões que o seu objetivo era dar credibilidade e legalidade a uma proposta de novo marco regulatório para o setor de telecomunicações que visa atender aos reclamos do setor privado, ávido por menos regras e obrigações, e por mais lucratividade.
De outro lado, no atual cenário de crise política e econômica que aprisiona o governo federal é preciso atrair investimentos e tentar dinamizar algum setor da economia. Então, o acordo com um segmento que movimenta profundamente a economia é muito atrativo e um bom negócio a curto prazo.
Os objetivos do governo são compreensíveis, mas os meios que estão sendo usados para atingí-los, ao fim e ao cabo, atentam contra o interesse nacional e da sociedade. Se o roteiro da consulta for seguido à risca e o projeto resultante acolher as propostas oriundas do setor empresarial, será extinto o regime público para a prestação dos serviços de telecomunicações e as obrigações a ele vinculadas. Quem vai definir onde, como e quando serão feitos os investimentos em infraestrutura de telecomunicações serão as empresas, e quanto nós vamos pagar, também. Ao Estado... bem, ao estado as batatas. Será a privatização da privatização.
Breve histórico e contexto
Nos primeiros cinco anos da década de 1990, o Brasil recém-saído de um regime autoritário teve sua redemocratização orientada pela política neoliberal, que na economia seguia essencialmente o tripé desnacionalização, desestatização e desregulametação. O principal condutor político deste processo foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em seu governo, vários setores estratégicos da economia nacional foram privatizados, apesar da forte resistência do movimento social. Entre eles, as telecomunicações.
Sob o argumento da ineficiência do Estado, o governo iniciou o processo de privatização do setor de telecomunicações com a promulgação da Emenda Constitucional nº 8, que alterou o inciso XI do artigo 21:
XI - explorar, diretamente ou mediante concessão a empresas sob controle acionário estatal, os serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão de dados e demais serviços públicos de telecomunicações, assegurada a prestação de serviços de informações por entidades de direito privado através da rede pública de telecomunicações explorada pela União.
XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95:).
Em seguida, veio a aprovação da Lei Geral de Telecomunicações, em 1997, e a privatização do sistema Telebras, em 1998.
A LGT definiu como seria o desenho regulatório do setor. O seu texto é resultado dos embates entre a forte pressão das empresas de telecomunicações e dos objetivos privatizantes do estado neoliberal em choque com a pressão social que se mobilizava contra a venda de empresas estratégicas para o desenvolvimento nacional.
Assim, ficaram definidas em lei dois tipos de serviços de telecomunicação: os classificados como de interesse coletivo e os serviços de interesse restrito. E dois regimes distintos para a prestação destes serviços: um regime público e um privado. Foi a maneira encontrada de impedir que a “mão invisível do mercado” atuasse ao seu bel prazer no setor.
Trocado em miúdos, o setor foi totalmente privatizado, mas com a presença de obrigações regulatórias distintas para os serviços considerados essenciais e para os não essenciais.
No primeiro caso, no período da privatização, ficou definido pela LGT como serviço de interesse coletivo apenas a telefonia fixa – Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC). Este serviço deveria então ser prestado em regime público, o que implica maior rigor regulatório, com obrigações para as empresas concessionárias para garantir a descontinuidade da prestação dos serviços, controle tarifário e metas de universalização. Além disso, no momento da concessão ficou definido que os bens móveis e imóveis poderiam compor bens reversíveis que deveriam retornar para a União no final dos contratos, com duração de 25 anos. Em linhas bem gerais, esse é o desenho regulatório que rege o setor.
Ocorre que neste quarto de século o desenvolvimento das tecnológicas de informação e comunicação impactaram profundamente o setor de telecomunicações e a sociedade. Em 1997, quando a LGT foi aprovada, a internet engatinhava. A oferta de internet Banda Larga, algo que praticamente nem existia, passou a ser essencial para a toda a sociedade, portanto, um serviço de interesse coletivo. E o telefone fixo, com a expansão da telefonia móvel (celular) e da própria internet, entrou em franco declínio.
A LGT previu, em seu artigo 18, a possibilidade do surgimento de novos serviços de interesse coletivo e incumbiu o Poder Executivo de, por meio de decreto, criar ou extingui-los:
“Art. 18. Cabe ao Poder Executivo, observadas as disposições desta Lei, por meio de decreto:
I - instituir ou eliminar a prestação de modalidade de serviço no regime público, concomitantemente ou não com sua prestação no regime privado;”.
Contudo, o Executivo abdicou desta prerrogativa e apenas o STFC permanece prestado em regime público. Todos os outros serviços continuam prestados em regime privado – onde praticamente não há obrigações regulatórias e as poucas que estão previstas são muito flexíveis. Assim, assimetrias de mercado foram avassaladoras e resultaram num cenário onde a telefonia móvel é uma das mais caras do planeta e a Banda Larga tem baixíssima penetração – está concentrada em grandes conglomerados urbanos, marcadamente nas regiões de maior poder aquisitivo. A exclusão digital no século XXI é um indicador que aprofunda as diferenças sociais, econômicas e culturais. O Brasil figura vergonhosamente nessas estatísticas.
Pior: nos últimos anos o governo insistiu em ceder aos interesses privados que atuam neste segmento – um dos mais rentáveis do planeta – colocando em segundo plano o interesse público.
O ex-ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, chegou a ser eleito, em 2012, o homem do ano pela Associação Brasileira de Telecomunicações (Telebrasil), pela Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) e pela Futurecom. Reconhecimento pelos bons serviços prestados ao mercado de telecomunicações. Enquanto as empresas ganham, as iniciativas do governo em criar políticas públicas para enfrentar a baixa penetração de infraestrutura para oferta da Banda Larga, como o Plano Nacional de Banda Larga, foram asfixiadas no seu nascedouro, abandonadas ou inconclusas.
A pressão das Teles só não impediu a aprovação do Marco Civil da Internet devido principalmente à intensa mobilização social que se aglutinou em torno da proposta. E, também, porque ela se deu num contexto em que o setor empresarial das telecomunicações tinham nesta matéria interesses conflitantes com outro setor de forte peso político e econômico: o da radiodifusão. O final de sua tramitação também coincidiu com o escândalo internacional da espionagem norte-americana que veio à tona pelas denúncias de Edward Snowden, o que contribuiu para a sua aprovação.
O Marco Civil da Internet é importante não só por definir os direitos e deveres dos usuários na rede, garantindo princípios como a da neutralidade da rede, mas porque no seu artigo 4º apontou a Internet como direito de todos. O artigo 7º afirma que o “acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania”. Ou seja, o Marco Civil da Internet, interpretado à luz da LGT e da Constituição, impõe ao governo colocar a Banda Larga como serviço essencial e, portanto, veda a possibilidade de que seja prestado apenas em regime privado. O Estado tem o dever de impor obrigações e regras para a garantia da prestação deste serviço para todos.
Voltando à proposta de mudança no modelo
Derrotadas no episódio do Marco Civil e preocupadas com o aumento da pressão para o governo declarar a Banda Larga um serviço essencial, as Teles procuraram os meios para ampliar seus lucros nas entrelinhas da lei, driblando a neutralidade da rede com práticas comerciais como o zero-rating. Também aproveitaram o cenário de crise e elevaram o tom da chantagem contra o governo, alegando que o atual modelo de prestação do serviço está ameaçando o equilíbrio econômico-financeiro das empresas.
Assim, continuaram pressionando o governo para não só manter a Banda Larga em regime privado como, inclusive, acabar com regime público para todos os serviços, antecipar o fim dos contratos de concessão de 2025 para já e, a partir disso, zerar o jogo com a criação de novas regras para todo o setor. Regras nas quais não existam mais concessões por tempo determinado e o serviço seja prestado por uma autorização sem prazo de expiração. O argumento das empresas é a necessidade de destravar os investimentos e reduzir as obrigações para ampliar os serviços.
O Barão de Itararé e as outras entidades que participam da campanha Banda Larga é Um Direito Seu não são contrários, por princípio, em rediscutir o marco legal para o setor. A questão é em que bases, em qual contexto político, com quais objetivos e com qual envolvimento social.
Consideramos que o que deve pautar a discussão deste tema é o interesse público e a urgência de o Brasil enfrentar o seu grave déficit de infraestrutura de redes de alta capacidade para levar Banda Larga para todos. O Brasil precisa ampliar a capacidade das redes já existentes – inclusive as redes do STFC a partir da tecnologia Gfast – já testada em outros países e que consiste em utilizar o par de cobre em conjunto com a fibra ótica para ampliar a penetração da Banda Larga. Isso pode ser feito de várias formas, sob vários modelos jurídicos, desde que pautados por obrigações e metas estabelecidos pelo Estado, e não pelo mercado.
A campanha Banda Larga é Um direito Seu já apresentou sua proposta para universalização da Banda Larga no país (tanto para o governo como para as empresas), realizou debate sobre o tema com a presidenta Dilma Rousseff em sua campanha de reeleição, e tem procurado dialogar tanto com o setor privado quanto com o governo para discutir propostas que consigam harmonizar o interesse público com os objetivos comerciais do setor privado.
É por tudo isso – pelo mérito do que vem sendo proposto e pelo método de dialogar apenas com um interlocutor deste processo – que consideramos que a discussão encabeçada pelo governo começa mal. No afogadilho, sem diálogo amplo e com objetivos de curto prazo para o governo e de longuíssimo prazo para as empresas que, se vingarem, terão um alto custo social.
Em 2 de fevereiro, na sessão solene de reabertura do ano legislativo, a presidenta Dilma Rousseff frisou em seu discurso na Câmara: “No ano legislativo que se inicia, nossa agenda com o Congresso Nacional terá, além das propostas para a reforma fiscal a médio e longo prazo, também medidas para melhorar o ambiente de investimentos. Pretendemos ver retomado o debate sobre o marco regulatório da mineração, já submetido ao Congresso. Encaminharemos, ainda, um novo marco regulatório das telecomunicações, ajustado ao novo cenário de convergência tecnológica”.
Alguns dias antes, na primeira reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, ela deu atenção especial para o novo marco regulatório das telecomunicações. Seu ministro das Comunicações, André Figueiredo, anunciava no mesmo dia que esse projeto de novo marco regulatório chegaria no Congresso em março.
De que se trata?
Em 23 de novembro de 2015 foi lançada uma consulta pública relâmpago sobre a revisão do atual modelo legal de prestação de Serviços de Telecomunicações. Prevista para receber contribuições da sociedade por apenas 30 dias, acabou se estendendo por 45 devido à pressão da sociedade, encerrando-se em 15 de janeiro de 2016. A consulta foi organizada em cinco eixos: Objeto da Política Pública; Política de Universalização; Regime Público vs Regime Privado; Concessão e Outros Temas, precedido por um texto de Origens, cenário atual, desafios e visão de futuro para o modelo de telecomunicações.
O ofício encaminhado pelo Barão de Itararé ao Ministério das Comunicações, solicitando a prorrogação da consulta para 90 dias, destacou que o prazo estipulado pelo Ministério era “totalmente insuficiente e inadequado para reunir os mais distintos atores sociais e apresentar propostas para uma discussão que é muito abrangente e complexa”. O pedido sublinhou preocupação com o resultado da consulta e as propostas finais que “podem aprofundar ou fragilizar a soberania nacional, impactar de forma positiva ou negativa no desenvolvimento interno e externo, e podem alavancar ou comprometer o papel inalienável do Estado em prover serviços de telecomunicações que são essenciais para o exercício da cidadania, para o livre fluxo de informações e, portanto, são chaves para a democracia”.
O que motivou a iniciativa?
Está claro no texto de apoio à consulta, nos preâmbulos de cada eixo e no direcionamento das questões que o seu objetivo era dar credibilidade e legalidade a uma proposta de novo marco regulatório para o setor de telecomunicações que visa atender aos reclamos do setor privado, ávido por menos regras e obrigações, e por mais lucratividade.
De outro lado, no atual cenário de crise política e econômica que aprisiona o governo federal é preciso atrair investimentos e tentar dinamizar algum setor da economia. Então, o acordo com um segmento que movimenta profundamente a economia é muito atrativo e um bom negócio a curto prazo.
Os objetivos do governo são compreensíveis, mas os meios que estão sendo usados para atingí-los, ao fim e ao cabo, atentam contra o interesse nacional e da sociedade. Se o roteiro da consulta for seguido à risca e o projeto resultante acolher as propostas oriundas do setor empresarial, será extinto o regime público para a prestação dos serviços de telecomunicações e as obrigações a ele vinculadas. Quem vai definir onde, como e quando serão feitos os investimentos em infraestrutura de telecomunicações serão as empresas, e quanto nós vamos pagar, também. Ao Estado... bem, ao estado as batatas. Será a privatização da privatização.
Breve histórico e contexto
Nos primeiros cinco anos da década de 1990, o Brasil recém-saído de um regime autoritário teve sua redemocratização orientada pela política neoliberal, que na economia seguia essencialmente o tripé desnacionalização, desestatização e desregulametação. O principal condutor político deste processo foi o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Em seu governo, vários setores estratégicos da economia nacional foram privatizados, apesar da forte resistência do movimento social. Entre eles, as telecomunicações.
Sob o argumento da ineficiência do Estado, o governo iniciou o processo de privatização do setor de telecomunicações com a promulgação da Emenda Constitucional nº 8, que alterou o inciso XI do artigo 21:
XI - explorar, diretamente ou mediante concessão a empresas sob controle acionário estatal, os serviços telefônicos, telegráficos, de transmissão de dados e demais serviços públicos de telecomunicações, assegurada a prestação de serviços de informações por entidades de direito privado através da rede pública de telecomunicações explorada pela União.
XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95:).
Em seguida, veio a aprovação da Lei Geral de Telecomunicações, em 1997, e a privatização do sistema Telebras, em 1998.
A LGT definiu como seria o desenho regulatório do setor. O seu texto é resultado dos embates entre a forte pressão das empresas de telecomunicações e dos objetivos privatizantes do estado neoliberal em choque com a pressão social que se mobilizava contra a venda de empresas estratégicas para o desenvolvimento nacional.
Assim, ficaram definidas em lei dois tipos de serviços de telecomunicação: os classificados como de interesse coletivo e os serviços de interesse restrito. E dois regimes distintos para a prestação destes serviços: um regime público e um privado. Foi a maneira encontrada de impedir que a “mão invisível do mercado” atuasse ao seu bel prazer no setor.
Trocado em miúdos, o setor foi totalmente privatizado, mas com a presença de obrigações regulatórias distintas para os serviços considerados essenciais e para os não essenciais.
No primeiro caso, no período da privatização, ficou definido pela LGT como serviço de interesse coletivo apenas a telefonia fixa – Serviço Telefônico Fixo Comutado (STFC). Este serviço deveria então ser prestado em regime público, o que implica maior rigor regulatório, com obrigações para as empresas concessionárias para garantir a descontinuidade da prestação dos serviços, controle tarifário e metas de universalização. Além disso, no momento da concessão ficou definido que os bens móveis e imóveis poderiam compor bens reversíveis que deveriam retornar para a União no final dos contratos, com duração de 25 anos. Em linhas bem gerais, esse é o desenho regulatório que rege o setor.
Ocorre que neste quarto de século o desenvolvimento das tecnológicas de informação e comunicação impactaram profundamente o setor de telecomunicações e a sociedade. Em 1997, quando a LGT foi aprovada, a internet engatinhava. A oferta de internet Banda Larga, algo que praticamente nem existia, passou a ser essencial para a toda a sociedade, portanto, um serviço de interesse coletivo. E o telefone fixo, com a expansão da telefonia móvel (celular) e da própria internet, entrou em franco declínio.
A LGT previu, em seu artigo 18, a possibilidade do surgimento de novos serviços de interesse coletivo e incumbiu o Poder Executivo de, por meio de decreto, criar ou extingui-los:
“Art. 18. Cabe ao Poder Executivo, observadas as disposições desta Lei, por meio de decreto:
I - instituir ou eliminar a prestação de modalidade de serviço no regime público, concomitantemente ou não com sua prestação no regime privado;”.
Contudo, o Executivo abdicou desta prerrogativa e apenas o STFC permanece prestado em regime público. Todos os outros serviços continuam prestados em regime privado – onde praticamente não há obrigações regulatórias e as poucas que estão previstas são muito flexíveis. Assim, assimetrias de mercado foram avassaladoras e resultaram num cenário onde a telefonia móvel é uma das mais caras do planeta e a Banda Larga tem baixíssima penetração – está concentrada em grandes conglomerados urbanos, marcadamente nas regiões de maior poder aquisitivo. A exclusão digital no século XXI é um indicador que aprofunda as diferenças sociais, econômicas e culturais. O Brasil figura vergonhosamente nessas estatísticas.
Pior: nos últimos anos o governo insistiu em ceder aos interesses privados que atuam neste segmento – um dos mais rentáveis do planeta – colocando em segundo plano o interesse público.
O ex-ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, chegou a ser eleito, em 2012, o homem do ano pela Associação Brasileira de Telecomunicações (Telebrasil), pela Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee) e pela Futurecom. Reconhecimento pelos bons serviços prestados ao mercado de telecomunicações. Enquanto as empresas ganham, as iniciativas do governo em criar políticas públicas para enfrentar a baixa penetração de infraestrutura para oferta da Banda Larga, como o Plano Nacional de Banda Larga, foram asfixiadas no seu nascedouro, abandonadas ou inconclusas.
A pressão das Teles só não impediu a aprovação do Marco Civil da Internet devido principalmente à intensa mobilização social que se aglutinou em torno da proposta. E, também, porque ela se deu num contexto em que o setor empresarial das telecomunicações tinham nesta matéria interesses conflitantes com outro setor de forte peso político e econômico: o da radiodifusão. O final de sua tramitação também coincidiu com o escândalo internacional da espionagem norte-americana que veio à tona pelas denúncias de Edward Snowden, o que contribuiu para a sua aprovação.
O Marco Civil da Internet é importante não só por definir os direitos e deveres dos usuários na rede, garantindo princípios como a da neutralidade da rede, mas porque no seu artigo 4º apontou a Internet como direito de todos. O artigo 7º afirma que o “acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania”. Ou seja, o Marco Civil da Internet, interpretado à luz da LGT e da Constituição, impõe ao governo colocar a Banda Larga como serviço essencial e, portanto, veda a possibilidade de que seja prestado apenas em regime privado. O Estado tem o dever de impor obrigações e regras para a garantia da prestação deste serviço para todos.
Voltando à proposta de mudança no modelo
Derrotadas no episódio do Marco Civil e preocupadas com o aumento da pressão para o governo declarar a Banda Larga um serviço essencial, as Teles procuraram os meios para ampliar seus lucros nas entrelinhas da lei, driblando a neutralidade da rede com práticas comerciais como o zero-rating. Também aproveitaram o cenário de crise e elevaram o tom da chantagem contra o governo, alegando que o atual modelo de prestação do serviço está ameaçando o equilíbrio econômico-financeiro das empresas.
Assim, continuaram pressionando o governo para não só manter a Banda Larga em regime privado como, inclusive, acabar com regime público para todos os serviços, antecipar o fim dos contratos de concessão de 2025 para já e, a partir disso, zerar o jogo com a criação de novas regras para todo o setor. Regras nas quais não existam mais concessões por tempo determinado e o serviço seja prestado por uma autorização sem prazo de expiração. O argumento das empresas é a necessidade de destravar os investimentos e reduzir as obrigações para ampliar os serviços.
O Barão de Itararé e as outras entidades que participam da campanha Banda Larga é Um Direito Seu não são contrários, por princípio, em rediscutir o marco legal para o setor. A questão é em que bases, em qual contexto político, com quais objetivos e com qual envolvimento social.
Consideramos que o que deve pautar a discussão deste tema é o interesse público e a urgência de o Brasil enfrentar o seu grave déficit de infraestrutura de redes de alta capacidade para levar Banda Larga para todos. O Brasil precisa ampliar a capacidade das redes já existentes – inclusive as redes do STFC a partir da tecnologia Gfast – já testada em outros países e que consiste em utilizar o par de cobre em conjunto com a fibra ótica para ampliar a penetração da Banda Larga. Isso pode ser feito de várias formas, sob vários modelos jurídicos, desde que pautados por obrigações e metas estabelecidos pelo Estado, e não pelo mercado.
A campanha Banda Larga é Um direito Seu já apresentou sua proposta para universalização da Banda Larga no país (tanto para o governo como para as empresas), realizou debate sobre o tema com a presidenta Dilma Rousseff em sua campanha de reeleição, e tem procurado dialogar tanto com o setor privado quanto com o governo para discutir propostas que consigam harmonizar o interesse público com os objetivos comerciais do setor privado.
É por tudo isso – pelo mérito do que vem sendo proposto e pelo método de dialogar apenas com um interlocutor deste processo – que consideramos que a discussão encabeçada pelo governo começa mal. No afogadilho, sem diálogo amplo e com objetivos de curto prazo para o governo e de longuíssimo prazo para as empresas que, se vingarem, terão um alto custo social.
* Renata Mielli é secretária-geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, secretária-geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e membro da Câmara de Inclusão Digital do CGI.Br.
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