Charge: Ramón Díaz Yanes |
Ler a autobiografia do tenista sérvio Novak Djokovic, Serve To Win (Servir para Vencer), assombra pelo modo como ele se revela vulnerável a todo tipo de charlatanismo e propaganda contra a ciência. Não se trata de apenas mais um esportista desconfiado com a vacinação ou vítima do discurso negacionista de tantos políticos idiotas da extrema direita.
Sua biografia não se contenta em apenas relatar sua história vitoriosa em meio a um país envolvido em muito sofrimento de guerra. O livro peculiar está cheio de entusiasmo ingênuo com o caldo interminável de terapias e conselhos pseudo e anticientíficos da nova era, com títulos de capítulos como “Como abrir minha mente mudou meu corpo”. Ele entra na seara da “mudança do pensamento a respeito de si mesmo” para se tornar o sucesso que é, hoje.
É preciso compreender que sua posição cética em relação à medicina convencional e seu entusiasmo por tratamentos alternativos estão bem no centro de sua auto-imagem, mais que colocar sua carreira em primeiro lugar. Afinal, o homem chegou ao primeiro lugar do mundo seguindo seus instintos. Há um claro arco de história em ação aqui, tudo levando a uma sala de interrogatório no Aeroporto Tullamarine de Melbourne.
Djokovic menciona os bombardeios da OTAN em Belgrado durante sua infância, para falar das doenças físicas recorrentes – alergias, dificuldades respiratórias, seios nasais bloqueados – até abandonar o glúten. Nada de estranho até que ele explica como sua intolerância ao glúten foi diagnosticada. Um nutricionista sérvio chamado Dr. Igor Cetojevic pediu a Djokovic que estendesse o braço direito em ângulos retos e resistisse à pressão enquanto o empurrava. Então o exercício foi repetido, só que desta vez enquanto Djokovic segurava uma fatia de pão contra o estômago. “Eu estava visivelmente mais fraco”, escreve Djokovic, que acrescenta que “o teste cinesiológico do braço [tem] sido usado como uma ferramenta de diagnóstico por curandeiros naturais”.
Basta dizer que este ramo da medicina alternativa – a chamada “cinesiologia aplicada” – permanece em grande parte sem qualquer evidência científica. “Crescendo sob o comunismo, você não é ensinado a ter a mente aberta”, escreve Djokovic, algumas páginas depois, antes de copiar uma página de mais pseudociência ligada à medicina tradicional chinesa. Do tipo que mata rinocerontes raros para usar o chifre como farinha de “medicamento” para qualquer doença. Se os sintomas melhorarem, funcionou, se não, foi alguma falha no processo do tratamento.
Novak diz buscar a verdade na natureza. O homem que interrompeu suas visitas a Wimbledon com viagens ao Templo Buddhapadipa nas proximidades para meditar à beira de um lago. Um homem que revelou há dois anos que tem um “amigo” no Jardim Botânico de Melbourne – “uma figueira brasileira que gosto de escalar”. Um espiritualismo que soa encantador, com seus efeitos colaterais potencialmente letais.
Serve To Win descreve um chamado “pesquisador” tomando dois copos de água e direcionando energia amorosa para um, enquanto xinga com raiva o outro. “Depois de alguns dias … [o vidro irritado] estava levemente esverdeado … o outro vidro ainda estava brilhante e cristalino”. Inofensivo, talvez, se não fosse tolo. Mas então, no ano passado, Djokovic foi encontrado hospedando um ex-agente imobiliário chamado Chervin Jafarieh em seu canal ao vivo no Instagram. Jafarieh estava vendendo garrafas de Nutrientes Cerebrais Avançados a US$ 50 cada, o que parece ser contrário aos interesses da saúde pública.
Se Djokovic tivesse descoberto sua intolerância ao glúten por meio de um exame de sangue convencional, talvez nunca tivesse decidido que a medicina alternativa representa um grande recurso inexplorado. Sua “evolução contínua” levou a pontos de vista como o que Djokovic expressou em uma entrevista de 2018: “Acredito que é nossa missão alcançar uma frequência superior através do autocuidado, explorando e respeitando nosso próprio avatar, nosso corpo e, com isso, elevando a vibração do planeta.
As excentricidades “instintivas” de Djokovic atrapalham sua carreira, quando ele demorou a se decidir por uma cirurgia no cotovelo que tornou seus jogos por volta de 2017 um deserto de derrotas. “Eu estava tentando evitar subir naquela mesa porque não sou fã de cirurgias ou medicamentos”, disse Djokovic. “Estou apenas tentando ser o mais natural possível, e acredito que nossos corpos são mecanismos de autocura.” A operação foi um sucesso triunfante, permitindo que Djokovic encerrasse um período de seca de dois anos ao vencer Wimbledon cinco meses depois.
Na mesma época, ele foi uma das vozes mais influentes na estrutura de gestão do tênis, ao sugerir equipar cada torneio com um pod móvel que – usando alguma combinação de crioterapia ou pressão de ar – deveria rejuvenescer seus músculos. No final, esse item grande, caro e pesado teve que ser riscado da lista de desejos, em parte porque foi considerado inseguro por vários países.
E assim voltamos ao lado sombrio de toda essa história peculiar. Se Djokovic fosse apenas um jogador de segundo categoria, suas crenças pseudocientíficas seriam apenas uma curiosidade risível. Do jeito que está, ele é um modelo poderoso, particularmente nos Bálcãs, onde a vacinação é baixa e a pandemia mortal e devastadora, depois de tanto tempo. Como todo negacionista, Djokovic é um personagem teimoso, acostumado a fazer o que quer, e isolado da sociedade normal por seu próprio sucesso.
* Com informações de Simon Briggs do The Telegraph.
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