quinta-feira, 12 de abril de 2018

Três imagens de um país rasgado ao meio

Foto: Francisco Proner
Por Rafael Cardoso, no blog Diário do Centro do Mundo:

Duas imagens andaram circulando pela imprensa e as redes sociais, esses dias, tidas como simbólicas do momento histórico atual. Uma, clicada por Francisco Proner Ramos e distribuída mundialmente pela agência Reuters, mostra Lula carregado nos braços do povo. A foto foi feita de cima, de ângulo inusitado, e mostra uma massa colorida de gente espremida em torno do cortejo que carrega o ex-presidente para fora do sindicato dos metalúrgicos em São Bernardo do Campo. A figura de Lula ocupa o centro nervoso da composição, para o qual convergem os olhares e a partir do qual irradiam círculos concêntricos de pessoas. O rosto dele não é visível por estar voltado para a multidão que o aclama, mas sua mão direita se estende ao encontro dos muitos braços erguidos na tentativa de tocá-lo. Em sua mão esquerda, firmada por outras mãos que o sustentam para que não caia, duas flores. Vários outros rostos, voltados para cima, são reconhecíveis. Logo atrás de Lula, por exemplo, vêm a deputada Manuela d’Ávila e o senador Lindbergh Farias. Porém, o enquadramento sagaz gera uma imagem que não valoriza nenhum indivíduo acima da massa, nem mesmo o próprio líder alçado fisicamente para o alto. Ela é a expressão visual acabada da frase pronunciada por Lula pouco tempo antes: “se não me deixarem caminhar, caminharei pelas pernas de vocês”.

A outra imagem, creditada a Túlio Vidal em diversos sites de notícias, mostra uma cena do ato promovido por Oscar Maroni, em frente ao seu Bahamas Club, em São Paulo, para comemorar a prisão de Lula. O chamado “magnata do sexo” contratou DJ e distribuiu latinhas de cerveja gratuita para cerca de três mil pessoas, quase todos homens pelo que se depreende das reportagens sobre o evento. Um palco foi improvisado à frente do local, no bairro de Moema, com fotos do juiz Sérgio Moro e da ministra Carmen Lúcia, adornadas com a Bandeira do Brasil, suspensas logo acima. Diante desses banners, o proprietário, vestido com uma fantasia de presidiário do gênero Irmãos Metralha, protagonizou interações teatralizadas com uma mulher seminua.



Esses registros dos respectivos acontecimentos são, cada qual, um entre muitos. Ninguém sabe explicar direito porque uma imagem viraliza nas redes sociais e outras não. Não é necessariamente por suas qualidades fotográficas. A foto no palco do Bahamas foi tirada com celular, sem maior aparato, e de modo aparentemente espontâneo, por um autor pouco conhecido. A outra, de Francisco Proner, parece ter sido realizada com equipamento profissional e planejamento meticuloso. Ao que indicam os laços de parentesco (o fotógrafo é filho da advogada e professora Carol Proner), assim como os caminhos pelos quais a imagem ganhou tração inicialmente, deve ter sido feita com o beneplácito da cúpula do PT. Seu autor já é um profissional de fotografia documental com portfólio impressionante para sua pouca idade (18 anos). Túlio Vidal também é fotógrafo profissional, mas não especializado em fotojornalismo. Não seria justo tecer comparações formais ou técnicas entre essas duas fotografias, produzidas e circuladas sob condições inteiramente distintas. Mesmo assim, há características da foto atribuída a Vidal que clamam por uma análise de imagem condigna. A começar pelo fato que foi clicada (ou, ao menos, divulgada) em preto e branco.

É incomum uma foto em preto e branco ganhar repercussão quando seu tema são acontecimentos do dia. Embora sejam compartilhadas muitas imagens em p&b nas redes sociais, trata-se geralmente de fotos antigas. O preto e branco está associado ao passado histórico ou, com menor frequência, a uma ideia um pouco démodé de “fotografia artística”. A opção do fotógrafo de registrar assim o evento do Bahamas é interessante, por si só, visto que empresta uma inflexão irônica a uma encenação que não tem nada de histórica ou estética. Ao contrário, o mau gosto do show de Maroni se situa em algum ponto do espectro entre o patético e o sórdido. Mais um espetáculo de auto-promoção desavergonhada de alguém que vai fazendo sua carreira de polêmicas no submundo televisivo de reality shows e assemelhados. Se existe uma figura pública no Brasil de hoje que não corre risco de ser lembrado com admiração é Oscar Maroni. Daí, o vitupério que vem sendo derramado sobre ele nas redes. Não somente por uma esquerda ultrajada em ver um personagem desse naipe emitir juízos morais sobre um de seus maiores ídolos, como também por alguns conservadores que começam a se envergonhar das alianças feitas com o propósito de derrubar Lula. É de se presumir que Carmen Lúcia e Moro tenham sentido uma pontada de constrangimento ao verem seus rostos elevados acima daquela careca sorridente à la Mussolini. A associação brechtiana entre cafetões, líderes fascistas e juízes corruptos não deve ter escapado ao repertório cultural deles.

A imagem de Túlio Vidal é rica em detalhes, alguns intencionais, outros acidentais. Pouco visíveis ao fundo, há dois homens que espreitam por cima da moita, um de óculos, outro suspendendo um celular para fotografar a cena pelo lado oposto. Ambos sinalizam o teor de voyeurismo explícito da ocasião, reforçado pelo rapaz que se posta ao fundo do palco, de cavanhaque, camiseta e mãos nos bolsos da calça jeans, atrás do microfone e da mesa de som. O olhar dele, observando Maroni, tem o ar meio entretido, meio admirado, como se pensasse, “que figura, o chefe”. No plano próximo está o próprio empresário pimpão, com a cabeça erguida e um leve sorriso nos lábios, logo abaixo da carranca austera de Moro. Sua postura e seu rosto não deixam dúvida que se sente altivo e no comando dos acontecimentos. Com sua mão direita, ele tapa a boca da mulher e esconde o rosto dela. A outra mão não está visível, mas a posição do corpo dela sugere que ele a aperta contra si. Ela veste uma camiseta baby-look, que só cobre até em cima do umbigo, e botinas de couro. De resto, está nua. A calcinha, baixada até logo acima dos joelhos, sugere vulnerabilidade, como se estivesse prestes a ser estuprada. Não se sabe, pela foto, qual o restante da encenação que cercou esse momento, mas não é difícil adivinhar alguns roteiros plausíveis.

O detalhe talvez mais interessante da foto do Bahamas é que foi divulgada com uma tarja preta retangular cobrindo o sexo da moça. É provável que esse elemento tenha sido acrescentado – não se sabe se pelo fotógrafo ou por outros – para burlar os rígidos padrões das redes sociais com respeito à nudez. Seja como for, a tarja opera como ponto fulcral da imagem, competindo por atenção com os quatro rostos visíveis. Tal qual a figura de Lula na imagem de Francisco Proner, a tarja está bem próxima do centro ótico da composição (um pouco abaixo, para ser exato, em ambas). Interessante se deter sobre essa coincidência e ainda sobre os contrastes entre as duas imagens. Uma colorida, movimentada, vibrante, retrata uma cena de entrega de um líder aos seus seguidores. A outra acromática, estática, apagada, retrata a dominação de uma mulher jovem por um homem de idade. A primeira é clara e nítida, com uma uniformidade de foco que faz com que tudo nela seja igualmente visível. A segunda é escura e granulada, com gradações de iluminação, textura e foco que tornam a imagem menos legível e chegam a esconder detalhes relevantes em seus contornos. O alto contraste entre o preto e o branco acaba por exercer uma função imprevista, aproximando visualmente a tarja preta das listras na fantasia de Maroni. No plano analítico mais sofisticado, é quase como se a imagem afirmasse que, ao celebrar a prisão de Lula, encarcera-se também um prazer e uma liberdade que não podem mais ser dados a ver. O sexo que, a priori, é de usufruto exclusivo da moça no palco, agora passa a ser propriedade de quem tem poder e dinheiro para encená-lo como espetáculo e mercadoria. Mesmo que seja para distribui-lo de graça à turba sedenta, como tantas latinhas de cerveja.

Leituras psicanalíticas à parte, é inegável o contraste entre entrega e dominação nessas duas imagens símbolo da prisão de Lula. A contraposição leva a outra: entre o êxtase público compartilhado e o gozo secreto solitário dos prazeres proibidos. Muito apropriado que a festa do antipetismo em seu dia de apoteose tenha sido realizada diante de uma boate privée, que dedica esforços a não ser descrita como prostíbulo. Não há moralismo de direita que não traga em seu bojo as sementes da velha hipocrisia tarada. Ainda mais em se tratando do universo alegórico latino onde, conforme Pier Paolo Pasolini em Salò ou os 120 dias de Sodoma (1975), o bispo e o banqueiro, o presidente e o magistrado são eternos convivas no banquete da degradação humana. Por outro lado, a festa da militância petista em São Bernardo foi bonita. Mesmo quem odeia o petismo terá de admitir que foi uma manifestação emocionante e forte. Talvez o PT deva à perseguição jurídica de Moro a Lula a redescoberta de algo que andava há muito enterrado na memória coletiva do partido: o jeito “sem medo de ser feliz” de se jogar nas lutas políticas. Os governos do PT cometeram alguns crimes. Um deles foi matar a alegria e a pureza que moveram a militância até o dia em que o partido chegou ao poder.

Quem leu esse artigo até aqui deve ter reparado que só se falou em duas imagens, quando o título anuncia três. É que a terceira ainda não se materializou, embora fosse a mais antecipada de todas. Desde aquela irresponsável capa da revista Veja, em novembro de 2015, que trazia uma montagem de Lula vestido com roupa listrada de presidiário – a mesma evocada pela fantasia de Maroni – o desejo de vê-lo na cadeia tornou-se uma obsessão para os movimentos antipetistas raivosos. Não havia passeata de Vem Pra Rua ou MBL que não lançasse mão de bonecos ou cartazes com essa efígie do “Lula presidiário”. O desejo foi saciado em parte pela condução coercitiva do ex-presidente, em março de 2016, quando o juiz Moro mandou a polícia trazer à força um depoente que nem havia sido convidado a comparecer voluntariamente ao juízo, e sua equipe tomou a iniciativa ainda mais indecorosa de alertar a imprensa para a hora e o local em que ocorreria a “prisão” para as câmeras. A expectativa agora, portanto, quando da prisão de fato, era de novas imagens capazes de celebrar e eternizar a derrocada final do petismo. Só que Lula conseguiu inverter o jogo ao desobedecer à ordem de prisão e se refugiar em São Bernardo. Por mais questionável que seja em qualquer outro sentido, a missa-comício do sindicato dos metalúrgicos gerou uma série de imagens que representam um renascimento do PT no plano simbólico. Para a eterna frustração das hordas antipetistas, as imagens do 7 de abril de 2018 que ficarão para a História são as de Lula nos braços do povo. Num distante segundo lugar – como Bolsonaro nas pesquisas – ficará a imagem repugnante de Maroni em seu show para os desocupados de Moema. Para quem não apoiava o PT (como o autor destas linhas), mas se escandalizava com o cinismo da perseguição a Lula, a trincheira rasgada entre os dois lados do Brasil ficou tão grande que já não dá mais para manter um pé de cada lado. O cheiro que sobe da fossa é podre demais. Entre essas imagens e o que elas representam, não resta dúvida qual dos males é o menor. Parabéns a Francisco Proner Ramos pela habilidade e delicadeza em contruir essa foto tão simbólica de uma esperança. Parabéns a Túlio Vidal pelo olhar de fotojornalista que soube clicar o registro certo na hora certa e compartilhar com outros o testemunho cru daquilo que viu de errado. Pêsames aos que continuam a aguardar a prova fotográfica da maldição que se abateu sobre o Brasil. O ódio de vocês é o combustível que incendiará a todos nós.

* Rafael Cardoso é escritor e historiador da arte, PhD pelo Courtauld Institute of Art (Londres). Seu livro mais recente é O Remanescente, publicado em 2016 pela Companhia das Letras e traduzido para alemão (S. Fischer) e holandês (Nieuw Amsterdam). É autor de mais três livros de ficção e co-roteirista do longa-metragem Maresia (dir. Marcos Guttmann, 2016). É também autor de diversos livros sobre história da arte e do design no Brasil, incluindo Design para um mundo complexo (Cosac Naify, 2012). Atua ainda como curador independente, responsável, entre outras, pelas exposições Do Valongo à Favela: Imaginário e periferia (Museu de Arte do Rio, 2014). E colaborador do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mora atualmente em Berlim.

* Artigo publicado originalmente na Revista Pessoa.

0 comentários: