Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:
Na manhã deste domingo, dia de eleição presidencial na Venezuela, um correspondente da Nigéria convidou Rosa Caraballo, dona de casa no morro do Vale Alegre, ponto de concentração de famílias de baixa renda e trabalhadores de salários modestos em Caracas, para uma entrevista sobre as dificuldades e carências produzidas pela guerra econômica.
- Como é passar fome? perguntou o jornalista.
- Você acha que eu passo fome? Olha para o meu corpo -- respondeu a dona de casa, aos risos, mostrando as formas volumosas de quem se alimenta muito mais do que seria recomendado por qualquer nutricionista.
A resposta na ponta da língua provocou gargalhadas prolongadas num grupo de mulheres do lugar que formara uma rodinha para acompanhar a entrevista. Divertindo-se com o ar desconcertado do jornalista, a reação daquelas mulheres – solteiras, casadas ou viúvas, mães e avós, com as gorduras, cansaço, rugas e dores que marcam a batalha da vida feminina em toda parte do mundo – ajuda a entender o que se passou na Venezuela neste domingo, quando o governo de Nicolas Maduro enfrentou e venceu o mais duro ataque sofrido pelo chavismo desde a entrada de Hugo Chávez pelos portões do Palácio Miraflores, em 2002, após derrotar o golpe militar que o manteve preso por 3 dias em local secreto.
Produto de um esforço organizado de sabotagem ao governo Maduro, que copia estratégias clássicas exibidas no Chile de Salvador Allende e na Cuba de Fidel Castro, o mercado negro de alimentos joga o preço da comida nas alturas e priva as famílias de uma dieta farta e saudável. A subnutrição é real e indiscutível, ainda que sua gravidade seja inferior aquela registrada nos anos anteriores ao chavismo. Mas não há fome naquele sentido que todos conhecem.
É mais fácil encontrar uma mão estendida à espera de um prato de comida, na rua Oscar Freire, no coração do luxo paulistano dos Jardins, do que nas avenidas arborizadas de Chacao, região nobre de Caracas. Não se pede esmola na rua nem se avistam pessoas – muito menos famílias inteiras -- dormindo ao relento. As mulheres do Vale Alegre dispõem de áreas onde podem fazer uma horta para verduras e hortaliças.
De quinze em quinze dias, elas recebem a cesta do CLAP (sigla de Comitê Local de Alimentação Popular), com uma cesta básica de alimentos que será consumida cuidadosamente até a próxima remessa. Quando falam do CLAP, as mulheres do Vale Alegre se divertem com a sonoridade da sigla – e batem palmas para o visitante não ter dúvidas de sua avaliação a respeito. Estão aplaudindo.
Organizadas e politizadas, conhecem o risco de serem transformadas em troféu das campanhas de propaganda adversária – ainda mais num dia de eleição presidencial – e acham graça em quem imagina que podem fazer o papel de bobas.
A grande revelação das urnas de domingo encontra-se aqui. A vitória de Maduro só se explica em função da postura dos eleitores das fatias socialmente inferiorizadas, que já não aceitam ser colocados numa condição subalterna quando se trata de discutir o destino da nação e seus próprios interesses. Eles reconhecem as dificuldades – algumas ainda mais graves que os alimentos, como a falta de vários remédios -- mas preferem guarda-las para si, convencidas de que podem acabar prejudicando a si mesmas. Resistem a abandonar convicções e lealdades formadas naqueles anos em que Hugo Chávez redesenhou boa parte da paisagem do país.
“Não adianta falar de subnutrição como se fosse responsabilidade do nosso governo. Nós sabemos que estamos numa guerra econômica promovida para derrubar um presidente que fez muito pelo povo, pelos mais pobres”, afirma o metalúrgico Jhnnen Mariño, 48 anos, soldador profissional diplomado. “A comida não falta. Está cara pela ação dos atravessadores, que estão infiltrados nas veias do governo. Eles devem ser combatidos. Não o Maduro”.
Pergunto de onde vem a motivação para manter uma postura de tamanha fidelidade ao governo. Jhnnen Mariño fala que Hugo Chávez – a quem se refere, às vezes, como “esse louco”, mas sem perder um tom carinhoso – deu “um sentido de pertencer a uma bandeira, um país, de lutar contra o imperialismo”.
Ele reside – e vota – num conjunto residencial para trabalhadores de baixa renda que ajudou a construir. “Depois de Chávez, as casas populares se tornaram casas de verdade. Têm sala, quarto, banheiro, área de serviço. Antes, eram um cubículo único, com um teto e o piso. Se você quisesse mais, tinha de se virar e fazer por conta própria. Entendeu a diferença?”
“Eu acho que é preciso reconhecer de uma vez por todas que a luta de classes existe”, afirma Roberto Dias, 53 anos, casado, três filhos, um deles em carreira militar. “Muitos anos atrás, quando os pobres desceram os morros de Caracas para reclamar contra a fome, a elite não apoiou. Agora quer ajuda para derrubar o governo que nos ensinou a ler e escrever?”
Após uma infância num bairro pobre de Caracas, Roberto Dias teve a oportunidade de estudar para assumir uma posição melhor na vida. Tornou-se gerente de supermercado. Fiel a própria memória, continua residindo na área onde se criou, hoje batizada como “Mission Barrio Adentro,” em homenagem aos mais antigos programas sociais de Hugo Chávez, abrigo, entre outras coisas, da versão venezuelana do Mais Médicos. “Éramos um país de analfabetos completos. Agora não é mais assim”. Pergunto qual a diferença. “Não é só uma questão de dinheiro. É dignidade. Isso nós conseguimos com Chávez e Maduro”.
“Os pobres estão se levantando com uma força altíssima”, diz a secretária Carmen Rossa Gomes de Medina, 72 anos, mãe de cinco filhos, avó de cinco neto, casada com um médico aposentado. Residindo num enclave de classe média alta numa região de concentração de trabalhadores conhecida como La Vega, o local é um dos pontos de concentração dos partidos que dominaram a política venezuelana até a emergência de Hugo Chávez – e agora se converteram a formas abertas de fascismo.
Após cinco derrotas presidenciais consecutivas, renunciaram a luta democrática e passam as 24 horas do dia a espera do desembarque de tropas comandadas por Washington, imaginando que virão instalar um governo no qual possam ocupar um lugar mais honroso do que simples testas-de-ferro do ocupante estrangeiro.
Numa instituição de ensino privado, transformado em centro de votação destinada a receber 7800 eleitores, o lugar se transformou num ponto recorde de abstenção. Nem as freiras que auxiliam na administração do lugar compareceram às urnas, num exótico alinhamento com grupos radicais que, em 2016, quando tentavam impedir a constituinte. “Eles confundem a Venezuela com o bairro onde residem, a casa onde moram e dão ordens a seus empregados”, diz Carmen Gomes.
Na manhã deste domingo, dia de eleição presidencial na Venezuela, um correspondente da Nigéria convidou Rosa Caraballo, dona de casa no morro do Vale Alegre, ponto de concentração de famílias de baixa renda e trabalhadores de salários modestos em Caracas, para uma entrevista sobre as dificuldades e carências produzidas pela guerra econômica.
- Como é passar fome? perguntou o jornalista.
- Você acha que eu passo fome? Olha para o meu corpo -- respondeu a dona de casa, aos risos, mostrando as formas volumosas de quem se alimenta muito mais do que seria recomendado por qualquer nutricionista.
A resposta na ponta da língua provocou gargalhadas prolongadas num grupo de mulheres do lugar que formara uma rodinha para acompanhar a entrevista. Divertindo-se com o ar desconcertado do jornalista, a reação daquelas mulheres – solteiras, casadas ou viúvas, mães e avós, com as gorduras, cansaço, rugas e dores que marcam a batalha da vida feminina em toda parte do mundo – ajuda a entender o que se passou na Venezuela neste domingo, quando o governo de Nicolas Maduro enfrentou e venceu o mais duro ataque sofrido pelo chavismo desde a entrada de Hugo Chávez pelos portões do Palácio Miraflores, em 2002, após derrotar o golpe militar que o manteve preso por 3 dias em local secreto.
Produto de um esforço organizado de sabotagem ao governo Maduro, que copia estratégias clássicas exibidas no Chile de Salvador Allende e na Cuba de Fidel Castro, o mercado negro de alimentos joga o preço da comida nas alturas e priva as famílias de uma dieta farta e saudável. A subnutrição é real e indiscutível, ainda que sua gravidade seja inferior aquela registrada nos anos anteriores ao chavismo. Mas não há fome naquele sentido que todos conhecem.
É mais fácil encontrar uma mão estendida à espera de um prato de comida, na rua Oscar Freire, no coração do luxo paulistano dos Jardins, do que nas avenidas arborizadas de Chacao, região nobre de Caracas. Não se pede esmola na rua nem se avistam pessoas – muito menos famílias inteiras -- dormindo ao relento. As mulheres do Vale Alegre dispõem de áreas onde podem fazer uma horta para verduras e hortaliças.
De quinze em quinze dias, elas recebem a cesta do CLAP (sigla de Comitê Local de Alimentação Popular), com uma cesta básica de alimentos que será consumida cuidadosamente até a próxima remessa. Quando falam do CLAP, as mulheres do Vale Alegre se divertem com a sonoridade da sigla – e batem palmas para o visitante não ter dúvidas de sua avaliação a respeito. Estão aplaudindo.
Organizadas e politizadas, conhecem o risco de serem transformadas em troféu das campanhas de propaganda adversária – ainda mais num dia de eleição presidencial – e acham graça em quem imagina que podem fazer o papel de bobas.
A grande revelação das urnas de domingo encontra-se aqui. A vitória de Maduro só se explica em função da postura dos eleitores das fatias socialmente inferiorizadas, que já não aceitam ser colocados numa condição subalterna quando se trata de discutir o destino da nação e seus próprios interesses. Eles reconhecem as dificuldades – algumas ainda mais graves que os alimentos, como a falta de vários remédios -- mas preferem guarda-las para si, convencidas de que podem acabar prejudicando a si mesmas. Resistem a abandonar convicções e lealdades formadas naqueles anos em que Hugo Chávez redesenhou boa parte da paisagem do país.
“Não adianta falar de subnutrição como se fosse responsabilidade do nosso governo. Nós sabemos que estamos numa guerra econômica promovida para derrubar um presidente que fez muito pelo povo, pelos mais pobres”, afirma o metalúrgico Jhnnen Mariño, 48 anos, soldador profissional diplomado. “A comida não falta. Está cara pela ação dos atravessadores, que estão infiltrados nas veias do governo. Eles devem ser combatidos. Não o Maduro”.
Pergunto de onde vem a motivação para manter uma postura de tamanha fidelidade ao governo. Jhnnen Mariño fala que Hugo Chávez – a quem se refere, às vezes, como “esse louco”, mas sem perder um tom carinhoso – deu “um sentido de pertencer a uma bandeira, um país, de lutar contra o imperialismo”.
Ele reside – e vota – num conjunto residencial para trabalhadores de baixa renda que ajudou a construir. “Depois de Chávez, as casas populares se tornaram casas de verdade. Têm sala, quarto, banheiro, área de serviço. Antes, eram um cubículo único, com um teto e o piso. Se você quisesse mais, tinha de se virar e fazer por conta própria. Entendeu a diferença?”
“Eu acho que é preciso reconhecer de uma vez por todas que a luta de classes existe”, afirma Roberto Dias, 53 anos, casado, três filhos, um deles em carreira militar. “Muitos anos atrás, quando os pobres desceram os morros de Caracas para reclamar contra a fome, a elite não apoiou. Agora quer ajuda para derrubar o governo que nos ensinou a ler e escrever?”
Após uma infância num bairro pobre de Caracas, Roberto Dias teve a oportunidade de estudar para assumir uma posição melhor na vida. Tornou-se gerente de supermercado. Fiel a própria memória, continua residindo na área onde se criou, hoje batizada como “Mission Barrio Adentro,” em homenagem aos mais antigos programas sociais de Hugo Chávez, abrigo, entre outras coisas, da versão venezuelana do Mais Médicos. “Éramos um país de analfabetos completos. Agora não é mais assim”. Pergunto qual a diferença. “Não é só uma questão de dinheiro. É dignidade. Isso nós conseguimos com Chávez e Maduro”.
“Os pobres estão se levantando com uma força altíssima”, diz a secretária Carmen Rossa Gomes de Medina, 72 anos, mãe de cinco filhos, avó de cinco neto, casada com um médico aposentado. Residindo num enclave de classe média alta numa região de concentração de trabalhadores conhecida como La Vega, o local é um dos pontos de concentração dos partidos que dominaram a política venezuelana até a emergência de Hugo Chávez – e agora se converteram a formas abertas de fascismo.
Após cinco derrotas presidenciais consecutivas, renunciaram a luta democrática e passam as 24 horas do dia a espera do desembarque de tropas comandadas por Washington, imaginando que virão instalar um governo no qual possam ocupar um lugar mais honroso do que simples testas-de-ferro do ocupante estrangeiro.
Numa instituição de ensino privado, transformado em centro de votação destinada a receber 7800 eleitores, o lugar se transformou num ponto recorde de abstenção. Nem as freiras que auxiliam na administração do lugar compareceram às urnas, num exótico alinhamento com grupos radicais que, em 2016, quando tentavam impedir a constituinte. “Eles confundem a Venezuela com o bairro onde residem, a casa onde moram e dão ordens a seus empregados”, diz Carmen Gomes.
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