Por Diogo Cunha, no site Carta Maior:
Se há um consenso entre os diversos observadores da vida política nacional é que Jair Bolsonaro não cometeu estelionato eleitoral. O atual ocupante do Palácio do Planalto nunca escondeu seu desprezo pelas regras do jogo democrático, nem tampouco seu total desconhecimento das mais diversas esferas da ação governamental. Em poucas palavras, é um político autoritário que nunca se preocupou em esconder ou disfarçar sua ignorância. Oriundo do baixíssimo clero, ele passou quase trinta anos como deputado praticamente sem apresentar propostas ou projetos de lei e sem participar das diversas comissões da Câmara. Ainda assim, ele conseguiu se reeleger ad infinitum graças a defesa de uma categoria profissional específica e à sua retórica reacionária. Não é de surpreender, portanto, que desde que assumiu a presidência da República, há pouco mais de 100 dias, Jair Bolsonaro venha testando a capacidade de resiliência da democracia brasileira.
Há, contudo, uma discordância entre esses mesmos observadores no que se refere à sua real capacidade em solapar a democracia. Para os otimistas, a incompetência e a ignorância do presidente teriam ao menos o lado positivo de reduzir os danos potenciais de sua administração. Afinal de contas, um político habilidoso com um projeto autoritário seria muito mais temerário para o regime democrático. Para os mais pessimistas, o governo Bolsonaro caminha a passos largos em direção ao autoritarismo. É o que pensa, por exemplo, Eliana Brum, para quem, como escreveu em sua coluna do El País do dia 24/04/2019, “o projeto autoritário que Bolsonaro representa avança a cada dia sobre o Brasil com velocidade assombrosa”. A afirmação é consistentemente apoiada em vários exemplos que vão desde a utilização da Força Nacional para impedir o Acampamento Terra Livre, uma ocupação de Brasília pelos indígenas que ocorre desde 2004, até a extinção dos conselhos sociais com participação popular, passando pelo decreto de sigilo sobre os dados da proposta de reforma da Previdência.
Se há um planejamento consciente da parte do presidente de levar o país em direção ao autoritarismo ou se é uma atuação errática marcada por avanços e recuos autoritários, ainda não é claro. Mas é necessário acrescentar um novo ingrediente autoritário desse governo: o anti-intelectualismo e a investida contra as universidades federais. Já presente há tempos em seu discurso, ele agora está sendo colocado em prática. No último dia 26 de abril, o presidente da República defendeu a contenção de recursos para os cursos de filosofia e de sociologia do país. Segundo ele, é necessário “focar em áreas que gerem retorno imediato aos contribuintes”. Ainda segundo o presidente da República, os jovens devem aprender a “a leitura, a escrita e a fazer contas e depois um ofício que gere renda”. Alguns dias depois, em 30 de abril, o Ministro da Educação Abraham Weintraub desferiu um golpe no conjunto das universidades federais e anunciou um corte de 30% em seus orçamentos. Essas declarações – e as medidas anunciadas – se inscrevem na esteira de outros ataques desferidos a outras áreas do conhecimento, como a história, mas também de declarações que externam um desejo de desmobilização e desengajamento da sociedade, particularmente das gerações mais jovens. Está claro, portanto, que o novo alvo do bolsonarismo é o instrumental que possibilita a compreensão da realidade e que permite o pensamento crítico. É, em última instância, um ataque ao próprio exercício da cidadania.
Os alvos da investida bolsonarista no que se refere especificamente aos campos do conhecimento – a história, a sociologia e a filosofia – não foram escolhidos ao acaso. Ao contrário do que o presidente afirmou, as razões não são de ordem econômica e prática e sim ideológicas. O primeiro ataque foi desferido contra a história, não especificamente em termos de cortes de investimento, mas a partir de propostas negacionistas e de falsificação histórica. Trata-se claramente de uma estratégia política: ao se negar a existência de determinados acontecimentos (golpe de 1964 e ditadura militar) ou ao falsifica-los (nazismo como movimento de esquerda), busca-se no fundo reabilitar a extrema-direita como força política legítima e respeitável. A sociologia, por sua vez, tem uma importância crucial em qualquer sociedade. O sociólogo contribui a tornar o mundo mais suportável, na medida em que esclarece as leis que regem o funcionamento da sociedade. Além disso, ampliando o campo da consciência social, o sociólogo contribui a superar as desigualdades produzidas pelas estruturas objetivas e impulsionar a capacidade de mudança que cada agente possui. A filosofia, finalmente, como disse Marilena Chauí, é ao mesmo tempo análise (das condições da ciência, da religião, da arte, da moral), reflexão (volta da consciência para si mesma para conhecer-se enquanto capacidade para o conhecimento, o sentimento e a ação) e crítica (das ilusões, dos preconceitos individuais e coletivos, das teorias e práticas científicas, políticas e artistas). Valorizar a ciência (que supostamente traz resultados imediatos para a sociedade) e menosprezar a filosofia (“inútil” segundo o senso comum) é um paradoxo em si pois, como a filósofa explicou, a ciência pressupõe como condição a filosofia. Isso porque o que fundamenta o trabalho científico – verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e prática, correção e acúmulo de saberes – são questões filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a filosofia que as formula e busca repostas para elas.
O anti-intelectualismo, contudo, não se restringe ao Brasil de Bolsonaro. Ele é fundamentalmente autoritário e se adequa perfeitamente ao discurso populista ambiente. Isso porque os populistas têm uma concepção moralista do mundo político, mundo este que seria marcado por uma divisão entre um povo moralmente puro e unificado e elites corruptas e moralmente inferiores. Além de antielitistas, populistas são antipluralistas, pois clamam que apenas eles representam realmente o povo: os opositores políticos dos líderes populistas são, como estes últimos argumentam, parte da elite corrupta e imoral e quem não os apoiam não fazem realmente parte do povo. Nada mais lógico, portanto, que na visão de mundo populista os intelectuais sejam considerados inimigos: eles são parte da “elite-corrupta-imoral-antipovo”.
Donald Trump, por exemplo, já declarou que o common sense vale mais do que os argumentos sustentados pelos chamados experts. Recentemente, na Itália, membros do partido de extrema direita Liga do Norte, do homem forte do atual governo populista Matteo Salvini, questionaram na Assembleia da região Emilia-Romanha a utilização, em um curso de Ciência Política, de um livro que eles consideraram “anti-Salvini”. Esse episódio guarda semelhanças surpreendentes com o que vêm ocorrendo no Brasil. Os parlamentares da Liga defenderam medidas para proteger os estudantes “ideologicamente próximos do partido e que são discriminados na universidade”. Ainda segundo esses parlamentares, as universidades não deveriam promover materiais “antipartidos” e chegaram a afirmar que os professores, enquanto funcionários públicos, deviam ser “leais ao governo”. Em uma matéria sobre esse episódio, o jornal inglês Independent chamou atenção para o grave risco que isso representava: “o desejo de remover escritos baseados em dados e raciocínio científico, ou questionar o ensino acadêmico [...] é uma tentativa preocupante de silenciar as vozes livres e o pensamento crítico, juntamente com o enfraquecimento de todas as formas de oposição social e cultural. É como voltar o relógio para os anos fascistas da Itália, forçando os intelectuais e professores a se conformarem à ideologia antidemocrática e antiliberal da autoridade governamental. Este é o meio pelo qual regimes autoritários e ditaduras governam” [Italy has edged closer to fascism with a startling attack on academic freedom, 15/04/2019].
Uma coisa, porém, é a retórica populista; outra, é a implementação e concretização da verborragia autoritária. Como nos tempos atuais a morte da democracia pode ser lenta e gradual, pode haver dificuldades em mensurar a partir de que ponto a situação se torna grave. Qual é o limite do aceitável? Onde está a linha vermelha? Em que momento se atinge o ponto de não-retorno? Sem querer minimizar os riscos que Trump e Salvini representam para os Estados Unidos e a Itália, é forçoso constatar que esses países ainda contam com sólidas instituições democráticas. A situação é muito mais preocupante em países menos desenvolvidos e com longas tradições autoritárias.
Analistas ao redor do mundo tem alertado para esses processos de morte da democracia, alertando sobretudo para o court-packing como uma etapa fundamental. Ou seja, uma das medidas mais evidentes no caminho para o autoritarismo é a tentativa do Executivo de controlar do judiciário, especialmente a suprema corte, frequentemente aumentando o número de juízes próximos ao governo. Mas talvez outras ações autoritárias merecessem mais atenção como, por exemplo, a perseguição a intelectuais e o ataque às universidades. Junto com o court-packing, essa é uma etapa crucial na consolidação do autoritarismo. Isso pode ser atestado a partir da experiência de outros países que se tornaram autoritários a partir de governos democraticamente eleitos.
A Turquia de Tayyip Erdo%u01Fan, por exemplo, caminha há alguns anos em direção ao autoritarismo, marcha que foi incrivelmente acelerada com a tentativa fracassada de golpe de Estado de julho de 2016. Desde então, três grupos têm sido visados por Erdo%u01Fan. Em primeiro lugar, as pessoas identificadas como membros ou simpatizantes do que o poder turco considera a “organização terrorista de Fethullah (FETÖ)”, ou seja, a confraria Gülen. Em segundo lugar, o grupo composto por militantes e políticos dos movimentos kurdos. Finalmente, em terceiro lugar, professores, intelectuais, jornalistas sindicalistas ou ativistas de organizações não-governamentais. O governo de Erdo%u01Fan vem reestruturando e remodelando as instituições, entre as quais as de ensino superior, e perseguindo os intelectuais que o presidente da República chegou a chamar de “traidores da nação”, “atores de terror acadêmico” e de “intelectuais de má qualidade”.
Na Hungria, Viktor Orbán, arauto do iliberalismo, empreende uma verdadeira Kulturkampf e busca promover uma cultura oficial. Desde 2010, o seu partido Fidesz vêm ocupando os lugares de cultura – teatros, óperas –, e ditando as manifestações culturais e espetáculos que estão ou não alinhados ideologicamente com suas ideias. Mas um dos alvos prioritários de Orbán é a Universidade da Europa Central. Essa instituição se tornou uma espécie de símbolo a ser derrubado, pois concentra animosidade do presidente húngaro contra George Soros, mas também contra as elites intelectuais progressistas.
Em outros países, o ataque aos intelectuais e às universidade é menos direto, mas frequentemente atinge determinadas áreas do conhecimento, que passam a ser objeto de verdadeiros embates. Nesse sentido, o caso da Polônia é emblemático. Nos últimos anos, esse país conheceu uma preocupante virada autoritária. Nas eleições legislativas de outubro de 2015, saiu vencedor o partido xenófobo e nacionalista Lei e Justiça (PiS), que também elegeu o presidente da República Andrzej Duda. Desde então, a marcha autoritária se acelerou através de uma série de medidas visando a minar a autonomia do judiciário, a independência da imprensa e as liberdades individuais. Essa ascensão do autoritarismo não está dissociada da transição democrática de 1989. Nesse ano, a saída do comunismo se fez a partir de um acordo entre o poder comunista e a oposição ou, para ser mais específico, entre os setores reformistas do Partido Operário Unificado Polonês (PZPR) e os moderados do sindicato Solidarnosc. Na ocasião, duas visões se afrontaram: uma que defendia uma perspectiva “conciliadora” e outra “revanchista”, que insistia na punição dos ex-dirigentes comunistas. Tadeusz Mazowiecki, que formou o primeiro governo democrático, optou pela conciliação. Os defensores da perspectiva “revanchista” se inscrevem numa linhagem nacionalista e tradicionalista, especialmente no que se refere aos costumes.
Esses elementos de contextualização são necessários para se compreender o conflito que vem sendo travado em torno da história do país, conflito que passou a girar em torno do Instituto da Memória Nacional (IPN), criado em 1999. Esse instituto polariza as tensões em torno da “descomunização”, tensões que aumentaram em 2008 com a publicação de dois livros sobre a suposta implicação de Lech Walesa na polícia política do antigo regime comunista. Foi o início do caso “Bolek”, suposto pseudônimo de Walesa na polícia política. Arquivos foram restituídos pela viúva do general Kiszczak, antigo chefe dos serviços secretos, ao IPN, e publicados e divulgados na mídia sem nenhum tipo de verificação. Como se pode perceber, há nesse affaire a tentativa de construção de uma nova narrativa da história nacional, uma “política histórica” que hoje é central na ação governamental: Jaroslaw Sellin, ministro da Cultura e do Patrimônio, anunciou a criação de vários museus “patrióticos” e chegou a declarar que “a política histórica deve ser ofensiva e forçar o mundo a pensar e a respeitar os poloneses” [ver o artigo “La Pologne, de mal em PiS”, publicado em La vie des idées em 18 de maio de 2016].
Caberia ainda um último e breve exemplo, até pela proximidade com relação ao que vem ocorrendo no Brasil. Como se sabe, o alvo de Rodrigo Duterte nas Filipinas é menos os intelectuais do que os traficantes e usuários de drogas, contra quem ele instaurou uma verdadeira caça, com inúmeros assassinatos extrajudiciais. Mas o que chama atenção, e aqui o paralelo com Jair Bolsonaro é incontestável, é sua visão dos direitos humanos. Há uma disseminação da ideia nas Filipinas de que a defesa de direitos humanos está mais associada à defesa de criminosos do que à proteção dos mais fracos e vulneráveis. É importante lembrar que se a política de assassinatos extrajudiciais de traficantes e usuários de drogas choca o Ocidente, ela é aprovada por amplos setores da sociedade filipina. Ainda no que se refere à esfera dos discursos e valores, vale mencionar o presidente da Malásia Mahathir, que voltou ao poder em 2018 após já ter sido Primeiro Ministro entre 1981 e 2003 e que vem defendendo a ideia de um retorno aos “valores asiáticos”, incompatíveis com a democracia liberal.
Esses exemplos tirados de países governados por populistas e que se encontram em um estágio avançado no caminho para o autoritarismo, são suficientes para dar uma ideia do risco dos atuais ataques do bolsonarismo às universidades e ao conhecimento de uma forma geral. O que o governo Bolsonaro busca não é apenas perseguir seus inimigos reais ou imaginários, personificados em filósofos, sociólogos e historiadores; é um ataque ao próprio conhecimento e uma tentativa de acabar com uma sociedade capaz de pensar criticamente.
Ao longo da história, a tradição da filosofia política ocidental associou a dominação despótica a indivíduos incapazes de governarem a si próprios e, portanto, naturalmente “inclinados” à obediência. Até Montesquieu, esses povos inclinados à obediência eram sempre orientais: persas, turcos, etíopes, chineses e, em alguma medida, esse despotismo foi aceito como legítimo, pois correspondia a uma espécie de ordenação da barbárie. Já no Ocidente, segundo essa mesma tradição, o despotismo não poderia perdurar, pois o homem ocidental tinha uma natureza livre. Foi Alexis de Tocqueville que rompeu com essa tradição ao conceber a possibilidade de um “despotismo ocidental”, resultado da revolução democrática e do processo de igualização das condições. Essa revolução teria engendrado o isolamento dos indivíduos e a privatização das relações sociais, afastando-os das preocupações com a coisa pública, o que teria corrompido a natureza política do homem europeu e o condenado à eterna menoridade. É clara, portanto, na esfera das ideias políticas, a associação entre democracia e liberdade e/ou virtude do povo, por um lado, e entre despotismo e menoridade e/ou incapacidade do povo, por outro.
Vemos hoje uma tentativa do presidente da República de infantilização da sociedade brasileira, entendida aqui como o desejo de torna-la desinteressada com a coisa pública. Nada expressa isso de forma tão clara quanto a afirmação feita por ele na posse do ministro da Educação quando disse que “queremos uma garotada que comece a não se interessar por política”. O ataque do bolsonarismo aos intelectuais, universidades públicas e ao próprio conhecimento faz parte desse desejo de desmobilização e embrutecimento da sociedade e é um dos aspectos mais marcantes e alarmantes do seu autoritarismo.
Se há um consenso entre os diversos observadores da vida política nacional é que Jair Bolsonaro não cometeu estelionato eleitoral. O atual ocupante do Palácio do Planalto nunca escondeu seu desprezo pelas regras do jogo democrático, nem tampouco seu total desconhecimento das mais diversas esferas da ação governamental. Em poucas palavras, é um político autoritário que nunca se preocupou em esconder ou disfarçar sua ignorância. Oriundo do baixíssimo clero, ele passou quase trinta anos como deputado praticamente sem apresentar propostas ou projetos de lei e sem participar das diversas comissões da Câmara. Ainda assim, ele conseguiu se reeleger ad infinitum graças a defesa de uma categoria profissional específica e à sua retórica reacionária. Não é de surpreender, portanto, que desde que assumiu a presidência da República, há pouco mais de 100 dias, Jair Bolsonaro venha testando a capacidade de resiliência da democracia brasileira.
Há, contudo, uma discordância entre esses mesmos observadores no que se refere à sua real capacidade em solapar a democracia. Para os otimistas, a incompetência e a ignorância do presidente teriam ao menos o lado positivo de reduzir os danos potenciais de sua administração. Afinal de contas, um político habilidoso com um projeto autoritário seria muito mais temerário para o regime democrático. Para os mais pessimistas, o governo Bolsonaro caminha a passos largos em direção ao autoritarismo. É o que pensa, por exemplo, Eliana Brum, para quem, como escreveu em sua coluna do El País do dia 24/04/2019, “o projeto autoritário que Bolsonaro representa avança a cada dia sobre o Brasil com velocidade assombrosa”. A afirmação é consistentemente apoiada em vários exemplos que vão desde a utilização da Força Nacional para impedir o Acampamento Terra Livre, uma ocupação de Brasília pelos indígenas que ocorre desde 2004, até a extinção dos conselhos sociais com participação popular, passando pelo decreto de sigilo sobre os dados da proposta de reforma da Previdência.
Se há um planejamento consciente da parte do presidente de levar o país em direção ao autoritarismo ou se é uma atuação errática marcada por avanços e recuos autoritários, ainda não é claro. Mas é necessário acrescentar um novo ingrediente autoritário desse governo: o anti-intelectualismo e a investida contra as universidades federais. Já presente há tempos em seu discurso, ele agora está sendo colocado em prática. No último dia 26 de abril, o presidente da República defendeu a contenção de recursos para os cursos de filosofia e de sociologia do país. Segundo ele, é necessário “focar em áreas que gerem retorno imediato aos contribuintes”. Ainda segundo o presidente da República, os jovens devem aprender a “a leitura, a escrita e a fazer contas e depois um ofício que gere renda”. Alguns dias depois, em 30 de abril, o Ministro da Educação Abraham Weintraub desferiu um golpe no conjunto das universidades federais e anunciou um corte de 30% em seus orçamentos. Essas declarações – e as medidas anunciadas – se inscrevem na esteira de outros ataques desferidos a outras áreas do conhecimento, como a história, mas também de declarações que externam um desejo de desmobilização e desengajamento da sociedade, particularmente das gerações mais jovens. Está claro, portanto, que o novo alvo do bolsonarismo é o instrumental que possibilita a compreensão da realidade e que permite o pensamento crítico. É, em última instância, um ataque ao próprio exercício da cidadania.
Os alvos da investida bolsonarista no que se refere especificamente aos campos do conhecimento – a história, a sociologia e a filosofia – não foram escolhidos ao acaso. Ao contrário do que o presidente afirmou, as razões não são de ordem econômica e prática e sim ideológicas. O primeiro ataque foi desferido contra a história, não especificamente em termos de cortes de investimento, mas a partir de propostas negacionistas e de falsificação histórica. Trata-se claramente de uma estratégia política: ao se negar a existência de determinados acontecimentos (golpe de 1964 e ditadura militar) ou ao falsifica-los (nazismo como movimento de esquerda), busca-se no fundo reabilitar a extrema-direita como força política legítima e respeitável. A sociologia, por sua vez, tem uma importância crucial em qualquer sociedade. O sociólogo contribui a tornar o mundo mais suportável, na medida em que esclarece as leis que regem o funcionamento da sociedade. Além disso, ampliando o campo da consciência social, o sociólogo contribui a superar as desigualdades produzidas pelas estruturas objetivas e impulsionar a capacidade de mudança que cada agente possui. A filosofia, finalmente, como disse Marilena Chauí, é ao mesmo tempo análise (das condições da ciência, da religião, da arte, da moral), reflexão (volta da consciência para si mesma para conhecer-se enquanto capacidade para o conhecimento, o sentimento e a ação) e crítica (das ilusões, dos preconceitos individuais e coletivos, das teorias e práticas científicas, políticas e artistas). Valorizar a ciência (que supostamente traz resultados imediatos para a sociedade) e menosprezar a filosofia (“inútil” segundo o senso comum) é um paradoxo em si pois, como a filósofa explicou, a ciência pressupõe como condição a filosofia. Isso porque o que fundamenta o trabalho científico – verdade, pensamento, procedimentos especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e prática, correção e acúmulo de saberes – são questões filosóficas. O cientista parte delas como questões já respondidas, mas é a filosofia que as formula e busca repostas para elas.
O anti-intelectualismo, contudo, não se restringe ao Brasil de Bolsonaro. Ele é fundamentalmente autoritário e se adequa perfeitamente ao discurso populista ambiente. Isso porque os populistas têm uma concepção moralista do mundo político, mundo este que seria marcado por uma divisão entre um povo moralmente puro e unificado e elites corruptas e moralmente inferiores. Além de antielitistas, populistas são antipluralistas, pois clamam que apenas eles representam realmente o povo: os opositores políticos dos líderes populistas são, como estes últimos argumentam, parte da elite corrupta e imoral e quem não os apoiam não fazem realmente parte do povo. Nada mais lógico, portanto, que na visão de mundo populista os intelectuais sejam considerados inimigos: eles são parte da “elite-corrupta-imoral-antipovo”.
Donald Trump, por exemplo, já declarou que o common sense vale mais do que os argumentos sustentados pelos chamados experts. Recentemente, na Itália, membros do partido de extrema direita Liga do Norte, do homem forte do atual governo populista Matteo Salvini, questionaram na Assembleia da região Emilia-Romanha a utilização, em um curso de Ciência Política, de um livro que eles consideraram “anti-Salvini”. Esse episódio guarda semelhanças surpreendentes com o que vêm ocorrendo no Brasil. Os parlamentares da Liga defenderam medidas para proteger os estudantes “ideologicamente próximos do partido e que são discriminados na universidade”. Ainda segundo esses parlamentares, as universidades não deveriam promover materiais “antipartidos” e chegaram a afirmar que os professores, enquanto funcionários públicos, deviam ser “leais ao governo”. Em uma matéria sobre esse episódio, o jornal inglês Independent chamou atenção para o grave risco que isso representava: “o desejo de remover escritos baseados em dados e raciocínio científico, ou questionar o ensino acadêmico [...] é uma tentativa preocupante de silenciar as vozes livres e o pensamento crítico, juntamente com o enfraquecimento de todas as formas de oposição social e cultural. É como voltar o relógio para os anos fascistas da Itália, forçando os intelectuais e professores a se conformarem à ideologia antidemocrática e antiliberal da autoridade governamental. Este é o meio pelo qual regimes autoritários e ditaduras governam” [Italy has edged closer to fascism with a startling attack on academic freedom, 15/04/2019].
Uma coisa, porém, é a retórica populista; outra, é a implementação e concretização da verborragia autoritária. Como nos tempos atuais a morte da democracia pode ser lenta e gradual, pode haver dificuldades em mensurar a partir de que ponto a situação se torna grave. Qual é o limite do aceitável? Onde está a linha vermelha? Em que momento se atinge o ponto de não-retorno? Sem querer minimizar os riscos que Trump e Salvini representam para os Estados Unidos e a Itália, é forçoso constatar que esses países ainda contam com sólidas instituições democráticas. A situação é muito mais preocupante em países menos desenvolvidos e com longas tradições autoritárias.
Analistas ao redor do mundo tem alertado para esses processos de morte da democracia, alertando sobretudo para o court-packing como uma etapa fundamental. Ou seja, uma das medidas mais evidentes no caminho para o autoritarismo é a tentativa do Executivo de controlar do judiciário, especialmente a suprema corte, frequentemente aumentando o número de juízes próximos ao governo. Mas talvez outras ações autoritárias merecessem mais atenção como, por exemplo, a perseguição a intelectuais e o ataque às universidades. Junto com o court-packing, essa é uma etapa crucial na consolidação do autoritarismo. Isso pode ser atestado a partir da experiência de outros países que se tornaram autoritários a partir de governos democraticamente eleitos.
A Turquia de Tayyip Erdo%u01Fan, por exemplo, caminha há alguns anos em direção ao autoritarismo, marcha que foi incrivelmente acelerada com a tentativa fracassada de golpe de Estado de julho de 2016. Desde então, três grupos têm sido visados por Erdo%u01Fan. Em primeiro lugar, as pessoas identificadas como membros ou simpatizantes do que o poder turco considera a “organização terrorista de Fethullah (FETÖ)”, ou seja, a confraria Gülen. Em segundo lugar, o grupo composto por militantes e políticos dos movimentos kurdos. Finalmente, em terceiro lugar, professores, intelectuais, jornalistas sindicalistas ou ativistas de organizações não-governamentais. O governo de Erdo%u01Fan vem reestruturando e remodelando as instituições, entre as quais as de ensino superior, e perseguindo os intelectuais que o presidente da República chegou a chamar de “traidores da nação”, “atores de terror acadêmico” e de “intelectuais de má qualidade”.
Na Hungria, Viktor Orbán, arauto do iliberalismo, empreende uma verdadeira Kulturkampf e busca promover uma cultura oficial. Desde 2010, o seu partido Fidesz vêm ocupando os lugares de cultura – teatros, óperas –, e ditando as manifestações culturais e espetáculos que estão ou não alinhados ideologicamente com suas ideias. Mas um dos alvos prioritários de Orbán é a Universidade da Europa Central. Essa instituição se tornou uma espécie de símbolo a ser derrubado, pois concentra animosidade do presidente húngaro contra George Soros, mas também contra as elites intelectuais progressistas.
Em outros países, o ataque aos intelectuais e às universidade é menos direto, mas frequentemente atinge determinadas áreas do conhecimento, que passam a ser objeto de verdadeiros embates. Nesse sentido, o caso da Polônia é emblemático. Nos últimos anos, esse país conheceu uma preocupante virada autoritária. Nas eleições legislativas de outubro de 2015, saiu vencedor o partido xenófobo e nacionalista Lei e Justiça (PiS), que também elegeu o presidente da República Andrzej Duda. Desde então, a marcha autoritária se acelerou através de uma série de medidas visando a minar a autonomia do judiciário, a independência da imprensa e as liberdades individuais. Essa ascensão do autoritarismo não está dissociada da transição democrática de 1989. Nesse ano, a saída do comunismo se fez a partir de um acordo entre o poder comunista e a oposição ou, para ser mais específico, entre os setores reformistas do Partido Operário Unificado Polonês (PZPR) e os moderados do sindicato Solidarnosc. Na ocasião, duas visões se afrontaram: uma que defendia uma perspectiva “conciliadora” e outra “revanchista”, que insistia na punição dos ex-dirigentes comunistas. Tadeusz Mazowiecki, que formou o primeiro governo democrático, optou pela conciliação. Os defensores da perspectiva “revanchista” se inscrevem numa linhagem nacionalista e tradicionalista, especialmente no que se refere aos costumes.
Esses elementos de contextualização são necessários para se compreender o conflito que vem sendo travado em torno da história do país, conflito que passou a girar em torno do Instituto da Memória Nacional (IPN), criado em 1999. Esse instituto polariza as tensões em torno da “descomunização”, tensões que aumentaram em 2008 com a publicação de dois livros sobre a suposta implicação de Lech Walesa na polícia política do antigo regime comunista. Foi o início do caso “Bolek”, suposto pseudônimo de Walesa na polícia política. Arquivos foram restituídos pela viúva do general Kiszczak, antigo chefe dos serviços secretos, ao IPN, e publicados e divulgados na mídia sem nenhum tipo de verificação. Como se pode perceber, há nesse affaire a tentativa de construção de uma nova narrativa da história nacional, uma “política histórica” que hoje é central na ação governamental: Jaroslaw Sellin, ministro da Cultura e do Patrimônio, anunciou a criação de vários museus “patrióticos” e chegou a declarar que “a política histórica deve ser ofensiva e forçar o mundo a pensar e a respeitar os poloneses” [ver o artigo “La Pologne, de mal em PiS”, publicado em La vie des idées em 18 de maio de 2016].
Caberia ainda um último e breve exemplo, até pela proximidade com relação ao que vem ocorrendo no Brasil. Como se sabe, o alvo de Rodrigo Duterte nas Filipinas é menos os intelectuais do que os traficantes e usuários de drogas, contra quem ele instaurou uma verdadeira caça, com inúmeros assassinatos extrajudiciais. Mas o que chama atenção, e aqui o paralelo com Jair Bolsonaro é incontestável, é sua visão dos direitos humanos. Há uma disseminação da ideia nas Filipinas de que a defesa de direitos humanos está mais associada à defesa de criminosos do que à proteção dos mais fracos e vulneráveis. É importante lembrar que se a política de assassinatos extrajudiciais de traficantes e usuários de drogas choca o Ocidente, ela é aprovada por amplos setores da sociedade filipina. Ainda no que se refere à esfera dos discursos e valores, vale mencionar o presidente da Malásia Mahathir, que voltou ao poder em 2018 após já ter sido Primeiro Ministro entre 1981 e 2003 e que vem defendendo a ideia de um retorno aos “valores asiáticos”, incompatíveis com a democracia liberal.
Esses exemplos tirados de países governados por populistas e que se encontram em um estágio avançado no caminho para o autoritarismo, são suficientes para dar uma ideia do risco dos atuais ataques do bolsonarismo às universidades e ao conhecimento de uma forma geral. O que o governo Bolsonaro busca não é apenas perseguir seus inimigos reais ou imaginários, personificados em filósofos, sociólogos e historiadores; é um ataque ao próprio conhecimento e uma tentativa de acabar com uma sociedade capaz de pensar criticamente.
Ao longo da história, a tradição da filosofia política ocidental associou a dominação despótica a indivíduos incapazes de governarem a si próprios e, portanto, naturalmente “inclinados” à obediência. Até Montesquieu, esses povos inclinados à obediência eram sempre orientais: persas, turcos, etíopes, chineses e, em alguma medida, esse despotismo foi aceito como legítimo, pois correspondia a uma espécie de ordenação da barbárie. Já no Ocidente, segundo essa mesma tradição, o despotismo não poderia perdurar, pois o homem ocidental tinha uma natureza livre. Foi Alexis de Tocqueville que rompeu com essa tradição ao conceber a possibilidade de um “despotismo ocidental”, resultado da revolução democrática e do processo de igualização das condições. Essa revolução teria engendrado o isolamento dos indivíduos e a privatização das relações sociais, afastando-os das preocupações com a coisa pública, o que teria corrompido a natureza política do homem europeu e o condenado à eterna menoridade. É clara, portanto, na esfera das ideias políticas, a associação entre democracia e liberdade e/ou virtude do povo, por um lado, e entre despotismo e menoridade e/ou incapacidade do povo, por outro.
Vemos hoje uma tentativa do presidente da República de infantilização da sociedade brasileira, entendida aqui como o desejo de torna-la desinteressada com a coisa pública. Nada expressa isso de forma tão clara quanto a afirmação feita por ele na posse do ministro da Educação quando disse que “queremos uma garotada que comece a não se interessar por política”. O ataque do bolsonarismo aos intelectuais, universidades públicas e ao próprio conhecimento faz parte desse desejo de desmobilização e embrutecimento da sociedade e é um dos aspectos mais marcantes e alarmantes do seu autoritarismo.
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