Por Wagner Iglecias, no site A terra é redonda:
Incorporada à nascente economia capitalista, no início do século XVI, de forma subalterna, a América Latina viveu, até o início do século XX, um longo ciclo de integração à economia mundial. Nos 300 primeiros anos de sua existência na condição de colônia, obviamente. E depois, durante o século XIX, ainda como um continente prioritariamente voltado ao exterior, com suas nações, recém independentes, competindo entre si pelo acesso privilegiado aos mercados da Europeu e dos EUA.
Somente a partir da debacle do modelo liberal, simbolizado pelo crash da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, é que esses países tiveram de adotar outro modelo de desenvolvimento, marcado pelo papel indutor do Estado na economia. Alguns conseguiram, inclusive, galgar posições destacadas na divisão mundial do trabalho, com a incorporação e o desenvolvimento de importantes e variados segmentos da indústria, como Argentina, Brasil e México. Outros, como Chile, Colômbia, Peru e Venezuela, também tiveram algum grau de industrialização, embora menos diversificado. O modelo contemplou, também, alguma mobilidade social e a criação de setores de classe média, com a estruturação de mercados de consumo domésticos em proporções até então inéditas na história latino-americana.
O nacional-desenvolvimentismo e a industrialização por substituição de importações, como se sabe, entraram em crise na América Latina a partir da segunda metade da década de 1970, por uma série de fatores. Entre os principais estiveram as duas crises do petróleo, com seu efeito desestruturador sobre economias dependentes, da elevação das taxas de juros pelo Federal Reserve no início dos anos 1980 e o fim abrupto da liquidez no mercado financeiro internacional, tornando caríssimos os recursos com o qual esses países financiavam investimentos estatais em infraestrutura. Some-se a isso a Terceira Revolução Industrial, com o desenvolvimento da microeletrônica, da robótica, da biotecnologia e o salto tecnológico que isso representou, distanciando ainda mais a região dos países desenvolvidos no contexto da estrutura global do capitalismo.
Desde o fim dos anos 1970 Chile e Argentina já haviam sido convertidos, pelas ditaduras de Pinochet e Videla, nos primeiros laboratórios das fórmulas neoliberais difundidas a partir da Universidade de Chicago. Mas foi o default da divida externa de países como o México e o Brasil, no começo dos anos 1980 (acompanhado pela quebra da Venezuela, e inclusive da Argentina e do Chile) que abriu definitivamente as portas do continente para o neoliberalismo. A partir daquele momento o FMI passou a pilotar, na prática, a gestão econômica de várias nações da região, reestruturando suas dívidas externas mediante uma série de duras contrapartidas, como o arrocho fiscal, a abertura comercial, as privatizações de empresas estatais e a desregulação das economias visando a atração de investimento externo.
Ainda que países como o Brasil tenham implementado pacotes econômicos heterodoxos até o início da década de 1990, entre o começo dos anos 1980 e a virada para o século XX a onda neoliberal varreu todo o continente, à exceção de Cuba, produzindo em alguns casos estabilidade monetária, sim, mas com um custo social bastante elevado, com o aumento da pobreza e da desigualdade, problemas crônicos e seculares na região.
Os fatos mais recentes da história latino-americana estão mais frescos na memória de todos nós. Por uma série de fatores, que vão da crise econômica e social agravada pelo neoliberalismo ao giro geopolítico dos EUA em direção ao Oriente Médio a partir da chamada “Guerra ao Terror”, a América Latina viveu nas duas últimas décadas um fato inédito em sua trajetória: a chegada, em sequência, de uma série de partidos políticos de esquerda ao poder.
O primeiro foi Hugo Chávez, eleito presidente da Venezuela em 1998. A ele seguiram-se os triunfos de Lula (2002) no Brasil e Néstor Kirchner (2002) na Argentina. Na sequência Tabaré Vasquez (2005) no Uruguai, Evo Morales (2006) na Bolívia, Daniel Ortega (2006) na Nicarágua, Rafael Correa (2007) no Equador e Maurício Funes (2009) em El Salvador. Todos eleitos empunhando a bandeira do resgate da dívida social agravada nas duas décadas de economia neoliberal, bem como da soberania nacional e da integração regional. Seus respectivos projetos políticos foram renovados por meio de reeleições ou da eleição de correligionários, como aconteceu no Uruguai, na Venezuela, no Brasil e na Argentina.
Um dos principais pilares de sustentação econômica da chamada “onda rosa” foi o crescimento da economia chinesa no período. O chamado “boom das commodities” beneficiou toda a América Latina, e mais marcadamente os governos progressistas, que reverteram parcela significativa do crescimento de suas economias para uma significativa ampliação de políticas sociais. Os altos índices de popularidade resultantes daquelas medidas garantiram um longo ciclo político para forças políticas como o PT no Brasil, o PSUV na Venezuela e o MAS na Bolívia.
Mais recentemente a direita retomou terreno na região, com a eleição de Mauricio Macri em 2015 na Argentina e o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 no Brasil. Em 2012, Fernando Lugo já havia sofrido o mesmo processo no Paraguai, e no mesmo 2015 em que Macri chegou à Casa Rosada a direita obteve maioria na eleição para a Assembleia Nacional da Venezuela. Setores conservadores e os mercados comemoraram, naquele momento, o que seria o começo do fim da onda progressista latino-americana.
Mas indícios de reação das esquerdas latino-americanas também surgiram no mesmo período, em países inclusive improváveis para tanto. Em 2016 Veronika Mendoza, da Frente Ampla, quase foi ao segundo turno da eleição presidencial no Peru. E em 2018, ano em que o neoliberal Sebatian Piñera voltou ao Palácio de la Moneda, no Chile, o ex-prefeito de Bogotá Gustavo Petro chegou ao segundo turno contra o direitista Ivan Duque na Colômbia liderando uma coalizão de esquerda.
A eleição de Andrés Manuel López Obrador, no mesmo ano de 2018, rompeu um longo ciclo de governos conservadores no México. AMLO tem feito, na visão de seus críticos à esquerda, um governo excessivamente moderado. No entanto ele lida com a árdua tarefa de governar em meio à pesada herança de décadas de políticas neoliberais, aplicadas tanto pelo tradicionalíssimo PRI quanto pelo PAN, os dois maiores partidos da direita mexicana. Agora, em outubro de 2019, o peronismo triunfou nas urnas na Argentina. Alberto Fernandez e Cristina Kirchner impuseram uma significativa derrota ao neoliberalismo macrista, iniciando talvez, junto com Obrador, um novo giro à esquerda na América Latina.
É bem verdade que na Bolívia Evo Morales teve sua candidatura a re-re-reeleição muito contestada, e ainda está às voltas com denúncias de fraude na recentíssima vitória sobre o conservador Carlos Mesa, o ex-presidente que o antecedeu em meados da década passada. Também são bastante complicadas as chances da Frente Ampla derrotar a união das direitas no segundo turno da eleição uruguaia, marcado para este mês. E também é preocupante, para as esquerdas, a situação do Equador, onde o presidente Lenin Moreno parece ter conseguido dar a volta por cima e recompor sua base de sustentação política depois dos massivos protestos populares iniciados pela elevação do preço dos combustíveis.
Obrador e Fernandez talvez venham a simbolizar, desta forma, uma nova onda rosa na América Latina. As lições do passado recente podem lhes ser bastante úteis. A eles e a todos os outros governos de esquerda da região. Em meio à crônica e generalizada crise fiscal do Estado será necessária muita engenhosidade para garantir crescimento econômico com distribuição de renda e diminuição da pobreza. Ao mesmo tempo já não será possível contar tanto com as importações chinesas, tendo em vista a desaceleração da economia do gigante asiático.
Aliás, apostar no aprofundamento do modelo primário exportador, como fizeram vários governos de esquerda do período anterior (ao fim e ao cabo reiterando um modelo econômico de cinco séculos) poderá render superávits comerciais, mas tende a tensionar as já tão difíceis relações com os movimentos sociais, aí incluídos os povos originários. Ao contrário, novos governos de esquerda terão de ampliar os mecanismos de participação democrática, congregando setores progressistas para garantir estabilidade política e superar as crises econômicas.
O futuro das esquerdas na América Latina passará, nos próximos anos, pelo Zocalo e pela Plaza de Mayo, numa provável aliança entre Obrador e Fernandez. E passará também pelas ruas de Santiago, Porto Príncipe e Quito, recentemente conflagradas contra o neoliberalismo, e ainda por eventuais surpresas que possam surgir de Lima e Bogotá.
Por fim, como grande incógnita permanece o Brasil. Não se sabe para onde caminhará, se mantendo a atual guinada à direita ou realinhando-se, no médio prazo, a este novo ciclo progressista que parece estar se formando na região.
* Wagner Iglecias é professor do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM) e da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
Incorporada à nascente economia capitalista, no início do século XVI, de forma subalterna, a América Latina viveu, até o início do século XX, um longo ciclo de integração à economia mundial. Nos 300 primeiros anos de sua existência na condição de colônia, obviamente. E depois, durante o século XIX, ainda como um continente prioritariamente voltado ao exterior, com suas nações, recém independentes, competindo entre si pelo acesso privilegiado aos mercados da Europeu e dos EUA.
Somente a partir da debacle do modelo liberal, simbolizado pelo crash da Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, é que esses países tiveram de adotar outro modelo de desenvolvimento, marcado pelo papel indutor do Estado na economia. Alguns conseguiram, inclusive, galgar posições destacadas na divisão mundial do trabalho, com a incorporação e o desenvolvimento de importantes e variados segmentos da indústria, como Argentina, Brasil e México. Outros, como Chile, Colômbia, Peru e Venezuela, também tiveram algum grau de industrialização, embora menos diversificado. O modelo contemplou, também, alguma mobilidade social e a criação de setores de classe média, com a estruturação de mercados de consumo domésticos em proporções até então inéditas na história latino-americana.
O nacional-desenvolvimentismo e a industrialização por substituição de importações, como se sabe, entraram em crise na América Latina a partir da segunda metade da década de 1970, por uma série de fatores. Entre os principais estiveram as duas crises do petróleo, com seu efeito desestruturador sobre economias dependentes, da elevação das taxas de juros pelo Federal Reserve no início dos anos 1980 e o fim abrupto da liquidez no mercado financeiro internacional, tornando caríssimos os recursos com o qual esses países financiavam investimentos estatais em infraestrutura. Some-se a isso a Terceira Revolução Industrial, com o desenvolvimento da microeletrônica, da robótica, da biotecnologia e o salto tecnológico que isso representou, distanciando ainda mais a região dos países desenvolvidos no contexto da estrutura global do capitalismo.
Desde o fim dos anos 1970 Chile e Argentina já haviam sido convertidos, pelas ditaduras de Pinochet e Videla, nos primeiros laboratórios das fórmulas neoliberais difundidas a partir da Universidade de Chicago. Mas foi o default da divida externa de países como o México e o Brasil, no começo dos anos 1980 (acompanhado pela quebra da Venezuela, e inclusive da Argentina e do Chile) que abriu definitivamente as portas do continente para o neoliberalismo. A partir daquele momento o FMI passou a pilotar, na prática, a gestão econômica de várias nações da região, reestruturando suas dívidas externas mediante uma série de duras contrapartidas, como o arrocho fiscal, a abertura comercial, as privatizações de empresas estatais e a desregulação das economias visando a atração de investimento externo.
Ainda que países como o Brasil tenham implementado pacotes econômicos heterodoxos até o início da década de 1990, entre o começo dos anos 1980 e a virada para o século XX a onda neoliberal varreu todo o continente, à exceção de Cuba, produzindo em alguns casos estabilidade monetária, sim, mas com um custo social bastante elevado, com o aumento da pobreza e da desigualdade, problemas crônicos e seculares na região.
Os fatos mais recentes da história latino-americana estão mais frescos na memória de todos nós. Por uma série de fatores, que vão da crise econômica e social agravada pelo neoliberalismo ao giro geopolítico dos EUA em direção ao Oriente Médio a partir da chamada “Guerra ao Terror”, a América Latina viveu nas duas últimas décadas um fato inédito em sua trajetória: a chegada, em sequência, de uma série de partidos políticos de esquerda ao poder.
O primeiro foi Hugo Chávez, eleito presidente da Venezuela em 1998. A ele seguiram-se os triunfos de Lula (2002) no Brasil e Néstor Kirchner (2002) na Argentina. Na sequência Tabaré Vasquez (2005) no Uruguai, Evo Morales (2006) na Bolívia, Daniel Ortega (2006) na Nicarágua, Rafael Correa (2007) no Equador e Maurício Funes (2009) em El Salvador. Todos eleitos empunhando a bandeira do resgate da dívida social agravada nas duas décadas de economia neoliberal, bem como da soberania nacional e da integração regional. Seus respectivos projetos políticos foram renovados por meio de reeleições ou da eleição de correligionários, como aconteceu no Uruguai, na Venezuela, no Brasil e na Argentina.
Um dos principais pilares de sustentação econômica da chamada “onda rosa” foi o crescimento da economia chinesa no período. O chamado “boom das commodities” beneficiou toda a América Latina, e mais marcadamente os governos progressistas, que reverteram parcela significativa do crescimento de suas economias para uma significativa ampliação de políticas sociais. Os altos índices de popularidade resultantes daquelas medidas garantiram um longo ciclo político para forças políticas como o PT no Brasil, o PSUV na Venezuela e o MAS na Bolívia.
Mais recentemente a direita retomou terreno na região, com a eleição de Mauricio Macri em 2015 na Argentina e o impeachment de Dilma Rousseff em 2016 no Brasil. Em 2012, Fernando Lugo já havia sofrido o mesmo processo no Paraguai, e no mesmo 2015 em que Macri chegou à Casa Rosada a direita obteve maioria na eleição para a Assembleia Nacional da Venezuela. Setores conservadores e os mercados comemoraram, naquele momento, o que seria o começo do fim da onda progressista latino-americana.
Mas indícios de reação das esquerdas latino-americanas também surgiram no mesmo período, em países inclusive improváveis para tanto. Em 2016 Veronika Mendoza, da Frente Ampla, quase foi ao segundo turno da eleição presidencial no Peru. E em 2018, ano em que o neoliberal Sebatian Piñera voltou ao Palácio de la Moneda, no Chile, o ex-prefeito de Bogotá Gustavo Petro chegou ao segundo turno contra o direitista Ivan Duque na Colômbia liderando uma coalizão de esquerda.
A eleição de Andrés Manuel López Obrador, no mesmo ano de 2018, rompeu um longo ciclo de governos conservadores no México. AMLO tem feito, na visão de seus críticos à esquerda, um governo excessivamente moderado. No entanto ele lida com a árdua tarefa de governar em meio à pesada herança de décadas de políticas neoliberais, aplicadas tanto pelo tradicionalíssimo PRI quanto pelo PAN, os dois maiores partidos da direita mexicana. Agora, em outubro de 2019, o peronismo triunfou nas urnas na Argentina. Alberto Fernandez e Cristina Kirchner impuseram uma significativa derrota ao neoliberalismo macrista, iniciando talvez, junto com Obrador, um novo giro à esquerda na América Latina.
É bem verdade que na Bolívia Evo Morales teve sua candidatura a re-re-reeleição muito contestada, e ainda está às voltas com denúncias de fraude na recentíssima vitória sobre o conservador Carlos Mesa, o ex-presidente que o antecedeu em meados da década passada. Também são bastante complicadas as chances da Frente Ampla derrotar a união das direitas no segundo turno da eleição uruguaia, marcado para este mês. E também é preocupante, para as esquerdas, a situação do Equador, onde o presidente Lenin Moreno parece ter conseguido dar a volta por cima e recompor sua base de sustentação política depois dos massivos protestos populares iniciados pela elevação do preço dos combustíveis.
Obrador e Fernandez talvez venham a simbolizar, desta forma, uma nova onda rosa na América Latina. As lições do passado recente podem lhes ser bastante úteis. A eles e a todos os outros governos de esquerda da região. Em meio à crônica e generalizada crise fiscal do Estado será necessária muita engenhosidade para garantir crescimento econômico com distribuição de renda e diminuição da pobreza. Ao mesmo tempo já não será possível contar tanto com as importações chinesas, tendo em vista a desaceleração da economia do gigante asiático.
Aliás, apostar no aprofundamento do modelo primário exportador, como fizeram vários governos de esquerda do período anterior (ao fim e ao cabo reiterando um modelo econômico de cinco séculos) poderá render superávits comerciais, mas tende a tensionar as já tão difíceis relações com os movimentos sociais, aí incluídos os povos originários. Ao contrário, novos governos de esquerda terão de ampliar os mecanismos de participação democrática, congregando setores progressistas para garantir estabilidade política e superar as crises econômicas.
O futuro das esquerdas na América Latina passará, nos próximos anos, pelo Zocalo e pela Plaza de Mayo, numa provável aliança entre Obrador e Fernandez. E passará também pelas ruas de Santiago, Porto Príncipe e Quito, recentemente conflagradas contra o neoliberalismo, e ainda por eventuais surpresas que possam surgir de Lima e Bogotá.
Por fim, como grande incógnita permanece o Brasil. Não se sabe para onde caminhará, se mantendo a atual guinada à direita ou realinhando-se, no médio prazo, a este novo ciclo progressista que parece estar se formando na região.
* Wagner Iglecias é professor do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (PROLAM) e da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP.
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