domingo, 3 de julho de 2016

Historiadores incomodam a velha mídia

O grande Marc Bloch transformou a historiografia e lutou
na resistência francesa. O frágil “Estadão” é capaz de citá-lo
e defender a velha noção de “ciência neutra”
Por Jocelito Zalla, no site Outras Palavras:

Um capítulo triste para a história da mídia impressa brasileira foi recentemente escrito por O Estado de S.Paulo. No dia 14 de junho, o jornal publicou editorial, intitulado “O lugar de Dilma na História”, que condena a participação de historiadores no movimento em defesa da democracia. Não nesses termos, evidentemente. A histórica relação do periódico com grupos políticos conservadores, e o poder econômico que eles representam, não é nenhum segredo. Seus malabarismos verbais para esconder a realidade também não são novos. No dia 2 de abril de 1964, por exemplo, o jornal noticiava o golpe militar que iniciou a última ditadura brasileira com a seguinte manchete: “Vitorioso o movimento democrático”. Mas talvez seja inédito um ataque tão explícito a profissionais que estudam o passado.

No cerne desse ataque encontra-se uma disputa pela imagem social da disciplina acadêmica e escolar de História, incluindo a definição do lugar dos historiadores na sociedade.

Memória e ideologia no editorial do Estadão

Há, pelo menos, três tipos de artifícios empregados na ofensiva contra o movimento “Historiadores pela Democracia”: a autolegitimação do emissor (autor/veículo do texto), a desqualificação do oponente/objeto do ataque; a deturpação da realidade. Em todos os níveis do discurso, o editorial do Estadão apela a representações equivocadas do senso comum. Como lembrou Pierre Bourdieu, a ideologia é “uma ilusão interesseira, sem deixar de ser bem fundamentada”. Ou, dizendo de outra forma, socialmente ancorada em verdades aparentes.

O texto começa e termina com a primeira estratégia. Afirma um autor supostamente iniciado na historiografia profissional, que cita, de maneira descontextualizada, um dos fundadores da chamada Escola dos Annales na França, Marc Bloch. Esquece, no entanto, que o “grande mestre desse ofício”, nas palavras do próprio editorial, se envolveu com a luta política de seu tempo (um dos alegados crimes dos historiadores brasileiros, como veremos), defendeu a democracia e foi fuzilado por tropas nazistas em 1944. Esse tipo de dado biográfico, assim como uma leitura densa da obra de Bloch, evidentemente não interessa ao Estadão. A referência é apenas um recurso de autoridade. Tão frágil, vale dizer, quanto sua descrição da tarefa dos historiadores: “reconstituir o passado para entender o que somos no presente”. Aqui predomina a visão ultrapassada da história-memória pré-acadêmica, que enxerga no passado uma entidade autônoma e absoluta, passível de reconstituição factual neutra. Não é preciso demonstrar que esse passado apresentado como puro — “a História como realmente aconteceu”, na fórmula do historiador alemão oitocentista Leopold von Ranke — é sempre uma seleção daquilo que interessa ser lembrado pelo seu defensor. Uma interpretação que esconde a operação interpretativa que a gerou.

A segunda estratégia, a da desqualificação do movimento, começa pela alegação de que os profissionais da área não estão cumprindo seus deveres, ao privilegiar sua “militância”. Assim, o texto advoga um isolamento do historiador de seu entorno social, principalmente da atividade política. Essa construção do editorial seria apenas mais uma visão positivista ingênua e simplista do trabalho intelectual, se não fosse também uma artimanha ideológica comum na disputa política atual: criminalizar as posições consideradas de esquerda, ao mesmo tempo em que se apresentam posições de direita como verdades universais incontestáveis e, no limite da dissimulação, apartidárias. É o mesmo mecanismo utilizado por políticos profissionais de direita para surfar na atual rejeição pública da atividade política, quando esses atrelam os problemas de corrupção no país ao Partido dos Trabalhadores e creditam a crise econômica às opções de governo próximas da pauta da esquerda (como os programas sociais e os investimentos em setores como o da cultura), ao invés das políticas monetárias recessivas adotadas por Dilma em resposta às suas próprias demandas; políticas de austeridade reforçadas e aprofundadas por Temer no governo provisório, vale lembrar. Dessa maneira, historiadores reconhecidos internacionalmente por trabalhos rigorosos de pesquisa são apresentados pelo editorial como agentes do “lulopetismo” ou “intelectuais a serviço de partidos que se dizem revolucionários”. Forçando ainda mais a nota, o Estadão afirma que os historiadores profissionais são “incapazes de aceitar a democracia”, reduzida pelo periódico ao respeito à Constituição. Como se os historiadores não estivessem se apoiando, também, na Constituição Cidadã de 1988. Como se a democracia fosse apenas uma questão de legislação, não de voto e de soberania popular (todo regime autoritário recente, aliás, conta com uma carta constitucional).

A terceira estratégia é ainda mais preocupante, pois revela o baixo nível intelectual e a falta de compromisso profissional da empresa com a atividade jornalística. Acusando os historiadores de prescreverem uma versão conspiratória da história, o Estadão constrói uma narrativa mirabolante de conquista das almas. Para começar, haveria nas escolas e nas universidades a imposição de “pensamento único”. Entrincheirados na academia, os historiadores teriam a missão de fazer crer que o PT transformou o Brasil no país da justiça social. Com o advento da operação Lava-Jato e o início do impeachment de Dilma Rousseff (outro serviço prestado à desinformação, como se pesasse alguma denúncia de corrupção contra a presidenta no processo de impedimento), caberia a eles fazer vencer a tese do golpe. O que os historiadores ganhariam com isso? Segundo o Estadão, “a glória de ditar os termos da história”. Delírio e difamação pura e simples.

Não é preciso muito para mostrar que a fábula do pensamento único não se sustenta. A universidade, como instituição, é principalmente um espaço de debate. O campo historiográfico é pautado por regras sólidas de construção de conhecimento (como a crítica das fontes, a definição refletida de problemas de investigação, a seleção adequada de teorias e conceitos explicativos, a pesquisa empírica exaustiva), sempre passível de confirmação e de revisão. Não é o plano do vale-tudo narrativo, muito menos de imposição de visões unidimensionais. Quanto ao suposto compromisso dos historiadores com o governo petista, basta lembrarmos que houve duas grandes greves de professores universitários nos últimos anos (em 2012 e 2015), com grande envolvimento da área de História. Além disso, muitos historiadores estão na linha de frente da crítica à política econômica da era PT, junto a sociólogos e economistas progressistas. Por fim, a justificativa para a ação dos historiadores soa patética. É óbvio que esses não possuem o monopólio da representação do passado, mas o aparato científico e institucional no Brasil, hoje, dá sustentação e legitimidade à história dos historiadores profissionais. E nunca, na história da historiografia brasileira, houve tanta autonomia no trabalho do historiador. Aí residem duas das grandes insatisfações do Estadão.

O cerco ao pensamento livre e à educação crítica

O ataque do Estadão, portanto, se baliza em pressupostos da memória histórica refutados pelos historiadores profissionais contemporâneos, mas que ainda ecoam no senso comum (como noções simplistas de verdade e de passado). Dessa forma, cumpre sua função político-ideológica: deturpa a realidade para fazer valer seus interesses. Cabe tudo na tarefa. Inclusive a contradição. Logo no início do editorial, há a afirmação de que o “lulopetismo” posicionou bem os historiadores na academia, lugar de onde eles pretendem difundir sua versão dos fatos. Mais adiante, diz que o patrulhamento dos historiadores engajados tem levado ao isolamento dos colegas dissidentes, justamente, nas universidades, “como se fossem doentes cujo contato se deveria evitar”. O contrassenso seria até risível, se não demonstrasse a trágica pobreza argumentativa de um dos maiores jornais em circulação no Brasil.

Não é possível levar o editorial do Estadão a sério. Mas acredito que ele não tenha a ambição de ser considerado com seriedade. Aí mora todo o perigo. Como artefato ideológico, procura, antes de tudo, disseminar preconceitos políticos e, mais do que nunca, reforçar o cerceamento às vozes que denunciam o processo de (re)tomada do poder pelas forças mais conservadoras do país. Por isso ele precisa ser desconstruído. É esse tipo de discurso que tem buscado coibir as demandas sociais e a possibilidade de efetivação da democracia brasileira, com mais avanços nas conquistas das classes trabalhadoras rurais e urbanas, dos movimentos feminista, negro, LGBT e ecológico. É esse tipo de discurso que tem pavimentado a aceitação pública de projetos de censura à educação, como o “Escola Sem Partido”. A tentativa de retirar os historiadores (e outros intelectuais) do espaço público, ou de deslegitimar sua atuação para além da academia, é só o começo de um processo mais amplo de restrição das liberdades de pensamento e de expressão.

Na esteira do editorial do Estadão, por exemplo, que recebeu contraponto de diversos historiadores, o geógrafo Demétrio Magnoli publicou artigo na Folha de São Paulo, no dia 25 de junho, criminalizando o movimento, rotulado por ele de “quadrilha”. O novo ataque segue estratégias muito semelhantes às do primeiro. Afirma conhecer o ofício do historiador, supostamente violado pelos profissionais que se posicionam no debate público atual, e o define de maneira (neo)positivista como “reconstrução da trama dos eventos”. Chega, ainda, a indicar “vocação totalitária” na iniciativa do grupo, que excluiria do universo democrático os historiadores não alinhados. Recurso retórico para esvaziar o sentido do nome adotado pelo movimento e desacreditar os seus propósitos. Logo se alcança a razão mais profunda de seu texto, lutar pela classificação social do processo político atual, minando a compreensão de que o impeachment é um golpe político contra a presidenta eleita Dilma Roussef e o sistema democrático brasileiro: “Eles decidiram (ou, de fato, o Partido decidiu) que o impeachment é ‘golpe’ – e isso, antes mesmo da deliberação final do Senado”, diz Magnoli.

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Como sabemos, o golpe de 1964 foi chamado, por muito tempo, de “Revolução”. E, para legitimar o episódio, agentes da mídia da época encontraram até mesmo uma dose de “democracia” nas motivações dos militares. Disputar a representação da história, portanto, é fundamental para o pensamento autoritário com o qual, mais uma vez, o Estadão (e parcela majoritária da grande mídia brasileira), se imiscui, na media em que ela justifica determinados projetos políticos para o presente.

Nesse contexto, o lugar dos historiadores só pode ser o da resistência.

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