Por Boaventura de Sousa Santos, no site Carta Maior:
Tenho escrito muito sobre as esquerdas, o seu passado e o seu futuro.
Tenho preferência pelas questões de fundo, coloco-me sempre numa perspectiva de médio e longo prazo e evito entrar nas conjunturas do momento. Neste texto sigo uma perspectiva diferente: centro-me na análise da conjuntura de alguns países, e é a partir dela que coloco questões de fundo e me movo para escalas temporais de médio e longo prazo.
Isto significa que muito do que está escrito neste texto não terá qualquer atualidade dentro de meses ou mesmo semanas. A utilidade dele pode estar precisamente nisso, no facto de proporcionar uma análise retrospectiva da atualidade política e do modo como ela nos confronta quando não sabemos como se vai desenrolar. E também pode contribuir para ilustrar a humildade com que as análises devem ser feitas e a distância crítica com que devem ser recebidas. Talvez este texto possa ser lido como uma análise não conjuntural da conjuntura.
À partida devo tornar claro o que entendo por esquerda. Esquerda é o conjunto de teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos cento e cinquenta anos, resistiram à expansão do capitalismo e ao tipo de relações econômicas, sociais, políticas e culturais que ele gera, e que assim procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do efetivo exercício da liberdade.
Num mundo cada vez mais interdependente tenho vindo a insistir na necessidade de aprendizagens globais. Nenhum país, cultura ou continente pode hoje arrogar-se o privilégio de ter encontrado a melhor solução para os problemas com que o mundo se confronta e muito menos o direito de a impor a outros países, culturas ou continentes. A alternativa está nas aprendizagens globais sem perder de vista os contextos e as necessidades específicas de cada um. Tenho vindo a defender as epistemologias do sul como uma das vias para promover tais aprendizagens e de o fazer a partir das experiências dos grupos sociais que sofrem nos diferentes países a exclusão e a discriminação causadas pelo capitalismo, colonialismo e patriarcado. Ora as necessidades e aspirações de tais grupos sociais devem ser a referência privilegiada das forças de esquerda em todo o mundo, sendo as aprendizagens globais um instrumento precioso nesse sentido. Acontece que as forças de esquerda têm uma enorme dificuldade em conhecer as experiências de outras forças de esquerda noutros países e em se disporem a aprender com elas. Nem estão interessadas em conhecer profundamente as realidades políticas doutros países nem tão pouco dão a atenção devida ao contexto internacional e às forças econômicas e políticas que o dominam. O desaparecimento analítico das múltiplas faces do imperialismo são prova disso. Além disso, tendem a ser pouco sensíveis à diversidade cultural e política do mundo.
Que as forças de esquerda do Norte global (Europa e América do Norte) sejam eurocêntricas não é novidade para ninguém. O que talvez seja menos conhecido é que a maior parte das forças de esquerda do Sul Global são igualmente eurocêntricas nas referências culturais que subjazem às suas análises. Basta ter em conta as atitudes racistas de muitas forças de esquerda da América Latina em relação aos povos indígenas e afrodescendentes.
Com o seu objectivo muito limitado de analisar a conjuntura das forças de esquerda em alguns países este texto pretende aumentar o inter-conhecimento entre elas e sugerir possibilidades de se articularem tanto nacional como internacionalmente.
O novo interregno
Estamos num interregno. O mundo que o neoliberalismo criou em 1989 com a queda do Muro de Berlim terminou com a primeira fase da crise financeira (2008-2011) e ainda não se definiu o novo mundo que se lhe vai seguir. O mundo pós-1989 teve duas agendas que tiveram um impacto decisivo nas políticas de esquerda um pouco em todo o mundo. A agenda explícita foi o fim definitivo do socialismo enquanto sistema social, económico e político liderado pelo Estado. A agenda implícita consistiu no fim de qualquer sistema social, económico e político liderado pelo Estado. Esta agenda implícita foi muito mais importante que a explícita, porque o socialismo de Estado estava já agonizante e, desde 1978, procurava reconstruir-se na China enquanto capitalismo de Estado no seguimento das reformas promovidas por Deng Xiaoping. O efeito mais directo do fim do socialismo de tipo soviético na esquerda foi o ter desarmado momentaneamente os partidos comunistas, alguns deles há muito já distanciados da experiência soviética. A agenda implícita foi a que verdadeiramente contou; por isso, teve que ocorrer de maneira silenciosa e insidiosa, sem queda de muros.
Na fase que até então tinha caracterizado o capitalismo dominante, a alternativa social ao socialismo de tipo soviético eram os direitos económicos e sociais universais de que beneficiavam sobretudo aqueles que, não tendo privilégios, só tinham o direito e os direitos para se defenderem do despotismo económico e político para que tendia o capitalismo sujeito exclusivamente à logica do mercado. A forma mais avançada desta alternativa tinha sido a social-democracia europeia do pós-guerra, que aliás no seu começo, no início do século XX, também se desdobrara numa agenda explícita (socialismo democrático) e numa agenda implícita (capitalismo com alguma compatibilidade com a democracia e a inclusão social mínima que ela pressupunha). Depois de 1945, rapidamente se mostrou que a agenda implícita era a única agenda. Desde então as esquerdas dividiram-se entre as que continuavam a defender uma solução socialista (mais ou menos distante do modelo soviético) e as que, por mais que se proclamassem socialistas, apenas queriam regular o capitalismo e controlar os seus “excessos”.
Depois de 1989, e tal como acontecera no início do século, a agenda implícita continuou durante algum tempo implícita, apesar de ser já a única em vigor. Foi-se tornando evidente que ambas as esquerdas do período anterior saíram derrotadas. Por isso se assistiu, depois de 1989, à difusão sem precedentes da ideia da crise da social-democracia, muitas vezes articulada com a ideia da impossibilidade ou inviabilidade da social-democracia. A secundá-la, a ortodoxia neoliberal doutrinava sobre o carácter predador ou, pelo menos, ineficiente do Estado e da regulação estatal, sem os quais não era possível garantir a efectividade dos direitos económicos e sociais.
O desarme da esquerda social democrática durante algum tempo foi disfarçado pela nova articulação das formas de dominação que vigoram no mundo desde o século XVII: capitalismo, colonialismo (racismo, monoculturalismo, etc.) e o patriarcado (sexismo, divisão arbitrária entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo, ou seja, entre trabalho pago e trabalho não-pago). As reivindicações sociais orientaram-se para as agendas ditas pós-materiais, os direitos culturais ou de quarta geração. Estas reivindicações eram genuínas e denunciavam modos de opressão e de discriminação repugnantes. Mas o modo como foram orientadas fez crer aos agentes políticos que as mobilizaram (movimentos sociais, ONGs, novos partidos) que as podiam levar a cabo com êxito sem tocar no terceiro eixo da dominação, o capitalismo. Houve mesmo uma negligência do que se foi chamando política de classe (distribuição) em favor das políticas de raça e sexo (reconhecimento). Essa convicção provou-se fatal no momento em que o regime pós-1989 caiu. A dominação capitalista, reforçada pela legitimidade que criou nestes anos, virou-se facilmente contras as conquistas anti-racistas e anti-sexistas na busca incessante de maior acumulação e exploração. E estas, desprovidas da vontade anti-capitalista ou separadas das lutas anti-capitalistas, estão a sentir muitas dificuldades para resistir.
Nestes anos de interregno resulta evidente que a agenda implícita visava dar total prioridade ao princípio do mercado na regulação das sociedades modernas em detrimento do princípio do Estado e da comunidade. No início do século XX o princípio da comunidade fora secundarizado em favor da rivalidade que então se instalou entre os princípios do Estado e do mercado. A relação entre ambos foi sempre muito tensa e contraditória. A social-democracia e os direitos económicos e sociais significaram momentos de trégua nos conflitos mais agudos entre os dois princípios. Esses conflitos não eram resultado de meras oposições teóricas. Resultavam das lutas sociais das classes trabalhadoras que procuravam encontrar no Estado o refúgio mínimo contra as desigualdades e os despotismos gerados pelo princípio de mercado. A partir de 1989, o neoliberalismo encontrou o clima político adequado para impor o princípio do mercado, contrapondo a sua lógica à lógica do princípio do Estado, entretanto colocado à defesa.
A globalização neoliberal, a desregulação, a privatização, os tratados de livre comércio, o papel inflacionado do Banco Mundial e do FMI foram sendo executadas paulatinamente para erodir o princípio do Estado, quer retirando-o da regulação social, quer convertendo esta numa outra forma de regulação mercantil. Para isso, foi necessária uma desvirtuação radical mas silenciosa da democracia. Esta, que no melhor dos casos fora encarregada de gerir as tensões entre o princípio do Estado e o princípio do mercado, passou a ser usada para legitimar a superioridade do princípio do mercado e, no processo, transformar-se ela própria num mercado (corrupção endémica, lobbies, financiamento de partidos, etc.). O objectivo era que o Estado passasse de Estado capitalista-com-contradições a Estado capitalista-sem-contradições. As contradições passariam a ser exteriorizadas para a sociedade, crises sociais a serem resolvidas como questões de polícia e não como questões políticas.
A grande maioria das forças de esquerda aceitaram esta viragem; pouca resistência lhe ofereceram quando não se tornaram cúmplices activas dela, o que aconteceu sobretudo na Europa. Na última fase deste período, alguns países da América Latina protagonizaram uma resistência significativa e tão significativa que não pode ser neutralizada pela monotonia das relações económicas promovidas pelo neoliberalismo global, nem resultou apenas dos erros próprios cometidos pelos governos progressistas. Envolveu a intervenção forte do imperialismo norte-americano, que na primeira década de 2000 tinha aliviado a pressão sobre os países latino-americanos por estar profundamente envolvido no Médio Oriente. Venezuela, Brasil e Argentina são talvez os casos mais emblemáticos desta situação. O imperialismo norte-americano entretanto mudou de rosto e de táctica, em vez de impor ditaduras por via da CIA e forças militares, promove e financia iniciativas de “democracia-amiga-do mercado” através de organizações não-governamentais libertárias e evangélicas e de desenvolvimento local, protestos, na medida do possível pacíficos, mas com slogans ofensivos para as personalidades, os princípios e as políticas de esquerda. Em situações mais tensas, pode financiar acções violentas que depois, com a cumplicidade dos media nacionais e internacionais, são atribuídas aos governos hostis, ou seja, governos hostis aos interesses norte-americanos. Tudo isto tutelado e financiado pela CIA, a embaixada norte-americana no país e o Departamento de Estado dos EUA.
Vivemos, pois, um período de interregno. Não sei se este interregno gera fenómenos mórbidos como o interregno famosamente analisado por Gramsci. Mas tem certamente assumido características profundamente dissonantes entre si. Nos últimos cinco anos, a actividade política em diferentes países e regiões do mundo adquiriu facetas e traduziu-se em manifestações surpreendentes ou desconcertantes. Eis uma selecção possível: o agravamento sem precedentes da desigualdade social; a intensificação da dominação capitalista, colonialista (racismo, xenofobia, islamofobia) e hetero-patriarcal (sexismo) traduzida no que chamo fascismo social em sua diferentes formas (fascismo do apartheid social, fascismo contratual, fascismo territorial, fascismo financeiro, fascismo da insegurança); a reemergência do colonialismo interno na Europa com um país dominante, a Alemanha, a aproveitar-se da crise financeira para transformar os países do sul numa espécie de protetorado informal, particularmente gritante no caso da Grécia; o golpe judiciário-parlamentar contra a Presidente Dilma Rousseff, um golpe continuado com o impedimento da candidatura de Lula da Silva às eleições presidenciais de 2018; a saída unilateral do Reino Unido da União Europeia; a renúncia às armas por parte da guerrilha colombiana e o início conturbado do processo de paz; o colapso ou crise grave do bipartidismo centrista em vários países, da França à Espanha, da Itália à Alemanha; a emergência de partidos de tipo novo a partir de movimentos sociais ou mobilizações anti-política, como o Podemos na Espanha, Cinco Stelle na Itália, AAP na Índia; a constituição de um governo de esquerda em Portugal com base num entendimento sem precedentes entre diferentes partidos de esquerda; a eleição presidencial de homens de negócios bilionários com fraca ou nula experiência política apostados em destruir a protecção social que os Estados têm garantido às classes sociais mais vulneráveis, sejam eles Macri na Argentina ou Trump nos EUA; o ressurgimento da extrema-direita na Europa com o seu tradicional nacionalismo de direita, mas surpreendentemente portadora da agenda das políticas sociais que tinham sido abandonadas pela social-democracia, com a ressalva de agora valerem apenas para “nós” e não para “eles” (imigrantes, refugiados); a infiltração de comportamentos fascizantes em governos democraticamente eleitos, como, por exemplo, na Índia do BJP e do presidente Modi, nas Filipinas de Duterte, nos EUA de Trump, na Polónia de Kaczynski, na Hungria de Orban, na Rússia de Putin, na Turquia de Erdogan, no México de Peña Nieto; a intensificação do terrorismo jihadista que se proclama como islâmico; a maior visibilidade de manifestações de identidade nacional, de povos sem Estado, nacionalismos de direita na Suíça, e na Áustria, nacionalismos com fortes componentes de esquerda na Espanha (Catalunha mas também País Basco, Galiza e Andaluzia) e na Nova Zelândia, e nacionalismos dos povos indígenas das Américas que se recusam a ser encaixados na dicotomia esquerda/direita; o colapso por uma combinação de erros próprios e interferência grave do imperialismo norte-americano de governos progressistas que procuraram combinar desenvolvimento capitalista com a melhoria do nível de vida das classes populares, no Brasil, Argentina e Venezuela; a agressividade sem paralelo na gravidade e na impunidade da ocupação da Palestina pelo Estado colonial de Israel; as profundas transformações internas combinadas com estabilidade (pelo menos aparente) em países que durante muito tempo simbolizaram as mais avançadas conquistas das políticas de esquerda, da China ao Vietname e a Cuba.
O significado histórico deste interregno
Este elenco deixa de fora os problemas sociais, económicos e ecológicos que talvez mais preocupem os democratas em tudo o mundo, tal como não menciona a violência familiar, urbana, rural ou a proliferação das guerras não-declaradas, embargos não declarados, o terrorismo e o terrorismo de Estado que estão a destruir povos inteiros (Palestina, Líbia, Síria, Afeganistão, Iémen) e a convivência pacífica em geral, a transformação do trabalho numa mercadoria como outra qualquer, os apelos ao consumismo, ao individualismo e à competitividade sem limites, ideologias com as quais muitas forças de esquerda têm sido tão complacentes ou aceitam como algo inevitável, o que dá no mesmo.
Neste sentido, este elenco é um elenco de sintomas e não de causas. Mesmo assim, serve-me para mostrar as características histórico-estruturais principais do interregno em que nos encontramos:
Embora o capitalismo seja um sistema globalizado desde o seu início o âmbito e as características internas da globalização têm variado ao longo dos séculos. Para me reportar exclusivamente ao mundo contemporâneo, podemos dizer que desde 1860 o mundo se encontra num processo particularmente acelerado de interdependência global, um processo atravessado por contradições internas, como é próprio do capitalismo, muito desigual e com descontinuidades significativas. O conceito de interregno visa precisamente dar conta dos processos de ruptura e de transição. Os períodos de mais intensa globalização tendem a coincidir com períodos de grande rentabilidade do capital (ligada a grande inovações tecnológicas) e com a hegemonia inequívoca (sobretudo económica mas também política e militar) de um país. A estes períodos têm-se seguido períodos de grande instabilidade política e económica e de crescente rivalidade entre países centrais.
O primeiro período de globalização contemporânea ocorreu entre 1860 e 1914. A Inglaterra foi o país hegemónico e a segunda revolução industrial e o colonialismo foram suas características principais. A ele se seguiu um período de mais acentuada rivalidade entre países centrais de que resultaram duas guerras mundiais em que morreram 78 milhões de pessoas. O segundo período ocorreu entre 1944 e 1971. Os EUA foram o país hegemónico e as suas características principais foram a terceira revolução industrial (informática), a guerra fria e a co-existência de dois modelos de desenvolvimento (o modelos capitalista e o socialista, ambos com várias versões), o fim do colonialismo, uma nova fase de imperialismo e neocolonialismo. Seguiu-se um período de acrescida rivalidade de que resultou o colapso do socialismo soviético e o fim da guerra fria. A partir de 1989 entrámos num terceiro período de globalização cuja crise está a dar azo ao interregno em que nos encontramos. Foi um período de dominação mais multilateral com a União Europeia e a China a disputarem a hegemonia dos EUA conquistada no período anterior. Caracterizou-se pela quarta revolução (a micro electronica e crescentemente, a genética e a robotização) e as suas características mais inovadoras foram, por um lado, submeter pela primeira vez virtualmente todo o mundo ao mesmo modelo de desenvolvimento hegemónico (o capitalismo na sua versão neoliberal) e, por outro, transformar a democracia liberal no único sistema político legítimo e impô-lo em todo o mundo.
A fase de interregno em que nos encontramos está relacionada com a evolução mais recente destas características. Todas as facetas desta fase estão vigentes mas apresentam sinais de grande desestabilização. Uma maior rivalidade entre duas potencias imperiais, os EUA e a China, cada um socorrendo-se de satélites importantes, a UE no caso dos EUA e a Rússia no caso da China; um desequilíbrio cada vez mais evidente entre o poderio militar dos EUA e o seu poder económico com novas ameaças de guerra incluindo a guerra nuclear e uma corrida aos armamentos; a impossibilidade de reverter a globalização dada a profunda interdependência (bem evidente na crise do processo Brexit) combinada com a luta por novas condições de comércio dito livre no caso dos EUA; uma crise de rentabilidade do capital que provoca uma longa depressão (não resolvida depois da crise financeira de 2008 ainda em curso) e que se manifesta de duas formas principais: a degradação dos rendimentos salariais nos países centrais e semi-periféricos, combinada com um ataque global às classes médias (uma realidade que sociologicamente varia muito de país para país) e uma corrida sem precedentes aos chamados recursos naturais com as consequências fatais que cria para as populações camponesas e povos indígenas e para os já precários equilíbrios ecológicos.
Entre as características deste interregno duas são particularmente decisivas para as forças de esquerda e revelam bem a tensão em que se encontram entre a necessidade cada vez mais urgente de se unirem e as dificuldades novas e sem precedentes na satisfação sustentada de tal necessidade. Trata-se duas pulsões contraditórias que vão em sentido contrário e que, em meu entender, só podem ser geridas através de uma cuidada gestão das escalas de tempo. Vejamos:
1-No que respeita à universalização da democracia liberal as forças de esquerda devem partir da seguinte verificação. A democracia liberal nunca teve a capacidade de se defender dos anti-democratas e fascistas com os mais diversos disfarces; mas hoje o que mais surpreende não é essa incapacidade, são antes os processos de incapacitação movidos por uma força transnacional altamente poderosa e intrinsecamente antidemocrática, o neoliberalismo (capitalismo como civilização de mercado, de concentração e de ostentação da riqueza), cada vez mais geminado com o predomínio do capital financeiro global a que tenho chamado o “fascismo financeiro”, e acompanhado por um cortejo impressionante de instituições transnacionais, lobistas e meios de comunicação social. Estes novos (de facto, velhos) inimigos da democracia não a querem substituir pela ditadura. Em vez disso, buscam descaracterizá-la ao ponto de ela se transformar na reprodutora mais dócil e na voz mais legitimadora dos seus interesses.
Esta verificação convoca com urgência a necessidade de as esquerdas se unirem para salvaguardar o único campo político em que hoje admitem lutar pelo poder, o campo democrático.
2- Por sua vez, o ataque generalizado aos rendimentos salariais, às organizações operárias e às formas de concertação social com a consequente transformação das reivindicações sociais numa questão de polícia; a crise ambiental cada vez mais grave e irreversível agravada pela luta desesperada pelo acesso ao petróleo que envolve a destruição de países como o Iraque, a Síria e a Líbia e amanhã talvez o Irão e a Venezuela; o recrudescimento, para muitos e muitas surpreendente, do racismo e do sexismo e hetero-sexismo; todas estas características apontam para uma condição de irreversível contradição entre capitalismo e democracia mesmo a democracia de baixa intensidade que a democracia liberal sempre foi.
Ora sendo certo que as esquerdas estão desde há muito divididas entre as que acreditam na regeneração do capitalismo, de um capitalismo de rosto humano, e as esquerdas que estão convencidas que o capitalismo é intrinsecamente deshumano e por isso irresgatável, não será fácil que imaginar que se unam de forma sustentada. Penso que uma sabedoria pragmática que saiba distinguir entre o curto e o longo prazo mas mantê-los os dois no debate pode ajudar a resolver esta tensão. Este texto está centrado no curto prazo mas procura não perder de vista o médio e o longo prazo.
As forças de esquerda perante o novo interregno
O elenco de fenómenos, na aparência anómalos, que mencionei acima dá conta de que o movimento dominante de erosão da democracia está a ser contrariado por forças sociais de sinal político contrário, ainda que frequentemente baseadas nas mesmas bases sociais de classe. Sob a forma do populismo, novas e velhas forças de direita e de extrema-direita procuram criar refúgios onde podem defender a “sua” democracia e os seus direitos dos apetites de estranhos, sejam eles imigrantes, refugiados ou grupos sociais “inferiores”, assim declarados por via da raça, etnia, sexo, sexualidade ou religião. Não defendem a ditadura; pelo contrário, declaram defender a democracia ao salientar o valor moral da vontade do povo, reservando para si, obviamente, o direito de definir quem faz parte do “povo”. Como a vontade do povo é um imperativo ético que não se discute, a suposta defesa da democracia opera por via de práticas autoritárias e anti-democráticas. É esta a essência do populismo. Falar de populismo de esquerda é um dos mais perniciosos equívocos de alguma teoria política crítica dos últimos anos.
Por sua vez, novas e velhas forças políticas de esquerda propõem-se defender a democracia contra os limites e perversões da democracia representativa, liberal. É sobre elas que me debruço neste texto. Tais forças procuram democratizar a democracia, reforçando-a de modo a poder resistir aos instintos mais agressivos do neoliberalismo e do capital financeiro. Essa defesa tem assumido várias formas em diferentes contextos e regiões do mundo. As principais são as seguintes: emergência de novos partidos de esquerda e por vezes de partidos de tipo novo, com uma relação com a cidadania ou com movimentos populares diferente e mais intensa da que tem sido característica dos velhos partidos de esquerda; rupturas profundas no seio dos velhos partidos de esquerda, quer quanto a programas quer quanto a lideranças; surgimento de movimentos de cidadania ou de grupos sociais excluídos, alguns que perduram outros efémeros, que se colocam fora da lógica da política partidária e, portanto, do marco da democracia liberal; protestos, marchas, greves em defesa de direitos económicos e sociais; adopção de processos de articulação entre a democracia representativa e a democracia participativa no interior dos partidos ou nos campos de gestão política em que intervêm, nomeadamente a nível municipal; reivindicação de revisões constitucionais ou de assembleias constituintes originárias para fortalecer as instituições democráticas e as blindar contra as acções dos seus inimigos; chamamento à necessidade de romper com as divisões do passado e procurar articulações entre as diferentes famílias de esquerda de modo a tornar mais unitária e eficaz a luta contra as forças anti-democráticas.
Deste elenco é fácil concluir que este período de interregno está a provocar um forte questionamento das teorias e práticas de esquerda que vigoraram nos últimos cinquenta anos. O questionamento assume as formas mais diversas mas, apesar disso, é possível identificar alguns traços comuns.
O primeiro é que o horizonte emancipatório deixou de ser o socialismo para ser a democracia, os direitos humanos, a dignidade, o pós-neoliberalismo, o pós-capitalismo um horizonte simultaneamente mais vago e mais diverso. Acontece que, trinta anos depois da queda do Muro de Berlim, este horizonte está tão desacreditado quanto o horizonte socialista. A democracia liberal é hoje em muitos países uma imposição do imperialismo e os direitos humanos são invocados apenas para liquidar governos que resistem ao imperialismo.
Em segundo lugar, o tom das lutas e das reivindicações é, em geral, um tom defensivo, ou seja, no sentido de defender o que se conquistou, por pouco que tenha sido, em vez de lutar por reivindicações mais avançadas na confrontação com a ordem capitalista, colonialista e patriarcal vigente. Em vez das guerras de movimento e das guerras de posição, como Gramsci caracterizou as principais estratégias operárias, dominam guerras de trincheira, de linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas. As forças que não aceitam esta lógica defensiva correm o risco de arcar com a marginalização e a autonomia, que é tanto maior quanto mais circunscrita se apresenta no plano territorial ou social.
Terceiro, porque não foi totalmente proscrita, a democracia obriga a que as forças de esquerda se posicionem no quadro democrático, por mais que o regime democrático esteja desacreditado. Esse posicionamento poderia implicar a recusa em participar no jogo democrático, mas o custo é elevado quer se participe (nenhuma possibilidade de ganhar) quer não se participe (marginalização). Este dilema é particularmente sentido em períodos pré-eleitorais.
Entre as várias estratégias que mencionei acima, a que simultaneamente melhor ilustra as dificuldades em actuar politicamente em contexto defensivo e em transformar tais dificuldades em oportunidade para formular projectos alternativos de luta política são as propostas de articulação ou unidade entre as diferentes forças de esquerda. Acresce que estas propostas estão a ser discutidas em vários países onde em 2018 vão realizar-se eleições. Precisamente os processos eleitorais constituem o máximo teste de viabilidade para este tipo de propostas. Por todas estas razões, passo a centrar-me nelas, começando por mencionar um caso concreto a título de ilustração.
Duas notas prévias. A primeira pode formular-se sob a forma de duas interrogações. São de esquerda todas as forças políticas que se consideram como tal? A resposta a esta pergunta não é fácil uma vez que, para além de certos princípios gerais (identificados nos livros que mencionei na nota 1), a caracterização de uma dada força política depende dos contextos específicos em que opera. Por exemplo, o Partido Democrático norte-americano é considerado de esquerda ou de centro-esquerda nos EUA mas duvido que o seja em qualquer outro outro país. Historicamente um dos mais acesos debates no seio da esquerda tem sido precisamente a definição do que se considera ser a esquerda. A segunda pergunta pode formular-se assim: como distinguir entre forças de esquerda e políticas de esquerda? Em princípio deveria pensar-se que o que faz uma força política ser de esquerda é defender e aplicar políticas de esquerda. Sabemos, no entanto, que a realidade é outra. Por exemplo, considero o partido grego Syriza um partido de esquerda mas com o mesmo grau de convicção penso que as políticas que tem vindo a aplicar na Grécia são de direita. Sendo assim, a segunda interrogação desdobra-se numa terceira: por quanto tempo tempo e com que consistência se pode manter tal incongruência sem que deixe de ser legítimo pensar que a força de esquerda em causa deixou de o ser?
A segundo nota prévia tem a ver com a necessidade de analisar o novo impulso de articulação ou unidade entre as forças de esquerda à luz de outros impulsos do passado. O impulso actual deve ser interpretado como sinalizando a vontade de renovação das forças de esquerda ou o contrário? A verdade é que a renovação da esquerda tem sido sempre pensada, pelo menos desde 1914, a partir da desunião das esquerdas. Por seu lado, a unidade tem sido sempre tentada a partir da sonegação ou mesmo da recusa da renovação da esquerda e a justificação para tal tem estado sempre ligada ao perigo da ditadura. Será que o impulso de articulação ou unidade actual, ainda que motivado pelo perigo iminente do colapso da democracia, pode significar, ao contrário dos anteriores, uma vontade de renovação?
A articulação entre forças de esquerda. O caso português
O governo em funções em Portugal desde o final de 2015 é pioneiro em termos da articulação entre vários partidos de esquerda, um governo do Partido Socialista com apoio parlamentar dos dois partidos de esquerda, Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português. É pouco conhecido internacionalmente, não só porque Portugal é um país pequeno, cujos processos políticos raramente fazem parte da actualidade política internacional, como e sobretudo por representar uma solução política que vai contra os interesses dos dois grandes inimigos globais da democracia que hoje dominam os media — o neoliberalismo e o capital financeiro global —. Convém recapitular. Desde a Revolução de 25 de Abril de 1974, os portugueses votaram frequentemente na sua maioria em partidos de esquerda, mas foram governados por partidos de direita ou pelo Partido Socialista sozinho ou coligado com partidos de direita. Os partidos de direita apresentavam-se a eleições sozinhos ou em coligação enquanto os partidos de esquerda, na lógica de uma longa trajectória histórica, se apresentavam divididos por diferenças aparentemente inultrapassáveis. O mesmo aconteceu em Outubro de 2015. Só que nessa ocasião, num gesto de inovação política que ficará nos anais da democracia europeia, os três partidos de esquerda (Partido Socialista, Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português) resolveram entrar em negociações para buscarem uma articulação de incidência parlamentar que viabilizasse um governo de esquerda liderado por um desses partidos, o que teve mais votos, o Partido Socialista. Com negociações separadas entre este partido e os outros dois, (tais as desconfianças recíprocas de partida), foi possível chegar a acordos de governação que viabilizaram um governo de esquerda sem precedentes na Europa das últimas décadas.
A inovação destes acordos consistiu em várias premissas: 1) os acordos eram limitados e pragmáticos, estavam centrados em menores denominadores comuns com o objectivo de possibilitar uma governação que travasse a continuação das políticas de empobrecimento dos portugueses que os partidos de direita neoliberal tinham vindo a aplicar no país; 2) os partidos mantinham ciosamente a sua identidade programática, as suas bandeiras, e tornavam claro que os acordos não as punham em risco, porque a resposta à conjuntura política não exigia que fossem consideradas, e muito menos abandonadas; 3) o governo deveria ter coerência e, para isso, deveria ser da responsabilidade de um só partido, e o apoio parlamentar garantiria a sua estabilidade; 4) os acordos seriam celebrados de boa-fé e seriam acompanhados e verificados regularmente pelas partes. Os textos dos acordos constituem modelos de contenção política e detalham até ao pormenor os termos acordados. Basicamente, as medidas acordadas tinham dois grandes objectivos políticos: parar o empobrecimento dos portugueses, repondo rendimentos dos trabalhadores e dos pensionistas na base da escala de rendimentos, e travar as privatizações que, como todas as que ocorrem sobre a égide do neoliberalismo e do capital financeiro global, são actos de privataria. Os acordos foram negociados com êxito e o governo tomou posse num ambiente politicamente hostil, por parte do Presidente da República de então, da Comissão Europeia e das agências financeiras, todos fiéis servidores da ortodoxia neoliberal. A pouco e pouco a política executada em cumprimento dos acordos foi dando resultados, para muitos, surpreendentes, e ao fim de algum tempo muitos dos detratores do governo tinham de ser vergar perante os números do crescimento da economia, da descida da taxa de desemprego, da melhoria geral da imagem do país, finalmente ratificada pelas agências de notação de crédito, e com os títulos portugueses a passar do nível lixo para o nível investimento. O significado de tudo isto podia resumir-se no seguinte: realizando políticas opostas às receitas neoliberais obtêm-se os resultados que tais receitas sempre anunciam e nunca conseguem e isso é possível sem aumentar o sofrimento e o empobrecimento dos portugueses. Antes, pelo contrário, reduzindo-os. De uma maneira muito mais directa, o significado desta inovação política é mostrar que o neoliberalismo é uma mentira, e que o seu único e verdadeiro objectivo é acelerar a todo o custo a concentração da riqueza sob a égide do capital financeiro global.
Obviamente, a direita neoliberal nacional e internacional está inconformada e tentará pôr fim a esta solução política, no que tem como aliada, por agora, a direita, que nunca se reviu nos “excessos” do neoliberalismo e quer voltar ao poder. A forma mais benevolente do inconformismo surge agora na forma de um aparente elogio, e que se formula assim: “esta solução política durará toda a presente legislatura”. Para os mais avisados, isto significa estabilidade a prazo, como que dizendo às esquerdas (e aos portugueses que nelas se revêm) “era bom mas acabou-se”. Compete a essas forças e aos portugueses contraporem a este dito o dito: “queremos mais”, e actuarem em conformidade.
Qual o significado mais global desta inovação política? Onze teses para articulações limitadas entre forças políticas de esquerda
Neste domínio, como em muitos outros, não há lugar para cópias mecânicas de soluções. As esquerdas podem e devem aprender com as experiências globais, mas têm de encontrar as soluções que se adequem às suas condições e ao seu contexto. Há, aliás, factores que são únicos e facilitam soluções que noutros contextos são inviáveis ou, pelo menos, muito mais difíceis. Darei exemplos adiante. Com estas cautelas, a experiência portuguesa tem um significado que transcende o país, qualquer que seja o que venha a suceder no futuro. Esse significado pode resumir-se no seguinte.
Primeiro, as articulações entre partidos de esquerda podem ser de vários tipos, nomeadamente, podem resultar de acordos pré-eleitorais ou acordos pós-eleitorais; podem envolver participação no governo ou apenas apoio parlamentar. Sempre que os partidos partem de posições ideológicas muito diferentes, e se não houver outros factores que recomendem o contrário, é preferível optar por acordos pós-eleitorais (porque ocorrem depois de medir pesos relativos) e acordos de incidência parlamentar (porque minimizam os riscos dos parceiros minoritários e permitem que as divergências sejam mais visíveis e disponham de sistemas de alerta conhecidos dos cidadãos).
Segundo, as soluções políticas de risco pressupõem lideranças com visão política e capacidade para negociar. No caso português, todos os líderes envolvidos têm essa característica. Aliás, o Primeiro Ministro tinha tentado pontualmente políticas de articulação de esquerda nos anos em que foi Presidente da Câmara de Lisboa. Mas a mais consistente a articulação entre forças de esquerda foi protagonizada por Jorge Sampaio, também do Partido Socialista, enquanto Presidente da Câmara de Lisboa, e que viria a ser Presidente da República entre 1996 e 2006. E não podemos esquecer que o fundador do Partido Socialista português, o Dr. Mário Soares, na fase final da sua vida política, tinha advogado este tipo de políticas, algo que, por exemplo, é difícil imaginar em Espanha, onde o fundador do PSOE, Felipe Gonzalez, se virou à direita com o passar dos anos e se manifestou sempre contra quaisquer entendimentos à esquerda.
Terceiro, as soluções inovadoras e de risco não podem sair apenas das cabeças dos líderes políticos. É necessário consultar as “bases” do partido e deixar-se mobilizar pelas inquietações e aspirações que manifestam.
Quarto, a articulação entre forças de esquerda só é possível quando é partilhada a vontade de não articular com outras forças, de direita ou centro-direita. Sem uma forte identidade de esquerda, o partido ou força de esquerda em que tal identidade for fraca será sempre um parceiro relutante, disponível para abandonar a coligação. A ideia de centro é hoje particularmente perigosa para a esquerda porque, como espectro político, se tem deslocado para a direita por pressão do neoliberalismo e do capital financeiro. O centro tende a ser centro-direita, mesmo quando afirma ser centro-esquerda. É crucial distinguir entre uma política moderada de esquerda e uma política de centro-esquerda. A primeira pode resultar de um acordo conjuntural entre forças de esquerda, enquanto a segunda é o resultado de articulações com a direita que pressupõem cumplicidades maiores que a descaracterizam como política de esquerda.
Neste domínio, a solução portuguesa oferece-se a uma reflexão mais aprofundada. Embora constitua uma articulação entre forças de esquerda e eu considere que configura uma política moderada de esquerda, a verdade é que contém, por acção ou por omissão, alguns opções que implicam cedências graves aos interesses que normalmente são defendidos pela direita. Por exemplo, no domínio do direito do trabalho e da saúde. Tudo leva a crer que o teste à vontade real em garantir a sustentabilidade da unidade das esquerdas está no que for decidido nestas áreas no futuro próximo.
Quinto, não há articulação ou unidade sem programa e sem sistemas de consulta e de alerta que avaliem regularmente o seu cumprimento. Passar cheques em branco a um qualquer líder político no seio de uma coligação de esquerda é um convite ao desastre.
Sexto, a articulação é tanto mais viável quanto mais partilhado for o diagnóstico de que estamos num período de lutas defensivas, um período em que a democracia, mesmo a de baixa intensidade, corre um sério risco de ser duradouramente sequestrada por forças anti-democráticas e fascizantes. Mesmo que a democracia não colapse totalmente, a actividade política oposicional das forças de esquerda no seu conjunto pode correr sérios riscos de ser fortemente limitada, senão mesmo ilegalizada.
Sétimo, a disputa eleitoral tem de ter mínima credibilidade. Para isso deve assentar num sistema eleitoral que garanta a certeza dos processos eleitorais de modo a que os resultados da disputa eleitoral sejam incertos.
Oitavo, a vontade de convergir nunca pode neutralizar a possibilidade de divergir. Consoante os contextos e as condições, pode ser tão fundamental convergir como divergir. Mesmo durante a vigência das coligações, as diferentes forças de esquerda devem manter canais de divergência construtiva. Quando ela deixar de ser construtiva significará que o fim da coligação está próximo.
Nono, num contexto mediático e comunicacional hostil às políticas de esquerda, num contexto em que as notícias falsas proliferam, as redes sociais podem potenciar a intriga e a desconfiança e os soundbites contam mais que conteúdos e argumentações, é decisivo que haja canais de comunicação constantes e eficazes entre os parceiros da coligação e que prontamente sejam esclarecidos equívocos.
Décimo, nunca esquecer os limites dos acordos, quer para não criar expectativas exageradas, quer para saber avançar para outros acordos ou para romper os existentes quando as condições permitirem políticas mais avançadas. No caso português, os detalhados acordos entre os três partidos revelam bem o carácter defensivo e limitado das políticas acordadas. Na União Europeia as imposições do neoliberalismo global são veiculadas no dia a dia pela Comissão e pelo Banco Central Europeu. A resposta dos partidos de esquerda portugueses deve ser avaliada à luz da violenta resposta destas instituições europeias às políticas iniciais do partido Syriza na Grécia. A solução portuguesa visou criar um espaço de manobra mínimo num contexto que prefigurava uma janela de oportunidade. Recorrendo a uma metáfora, a solução portuguesa permitiu à sociedade portuguesa respirar. Ora respirar não é o mesmo que florescer; é tão-só o mesmo que sobreviver.
Décimo-primeiro, no contexto actual de asfixiante doutrinação neoliberal, a construção e implementação de alternativas, por mais limitadas, têm, quando realizadas com êxito, além do impacto concreto e benéfico na vida dos cidadãos, um efeito simbólico decisivo que consiste em desfazer o mito que os partidos de esquerda-esquerda só servem para protestar e não sabem negociar e muito menos assumir as complexas responsabilidades da governação. Este mito foi alimentado pelas forças conservadoras ao longo de décadas com a cumplicidade dos grandes media e tem hoje a reforçá-lo o poder disciplinar global que o neoliberalismo adquiriu nas últimas décadas.
Alguns cenários incertos para a articulação das forças de esquerda
Em tempos recentes, a questão da articulação entre forças de esquerda tem sido discutida em diferentes países e os contextos em que a discussão tem ocorrido são reveladores dos muitos obstáculos que haveria que ultrapassar para que tal articulação fosse possível ou desejável. Em alguns casos torna-se mesmo claro que tais obstáculos são a curto ou médio prazo intransponíveis. As discussões tendem a ter lugar sobretudo em períodos pré-eleitorais. Não tenho a pretensão de analisar em detalhe tais discussões. Limitar-me-ei a ilustrar os diferentes obstáculos e os bloqueios que os diferentes contextos revelam e, à luz deles, o que teria de mudar para que tal articulação fosse possível e desejável.
Analiso brevemente quatro desses contextos: Brasil, Colômbia, México e Espanha. Nos três primeiros países haverá eleições em 2018. Cada um destes países ilustra um obstáculo específico à construção de coligações que tornem possíveis governos de esquerda com programas de esquerda. Este exercício pode, aliás, ser feito com outros países, quer ele ilustre igualmente estes obstáculos quer ilustre outros obstáculos que, nesse caso, deverão então ser definidos. Se este exercício necessariamente colectivo for feito num número suficiente grande de países em diferentes regiões do mundo, será possível ter uma ideia de conjunto dos obstáculos a ultrapassar e dos caminhos para o fazer. Com essa base seria possível imaginar uma nova internacional das esquerdas. Obviamente que, em muitos países, os debates políticos não se formulam como debates entre esquerda e direita e, noutros, os próprios debates estão proibidos por regimes autoritários. No primeiro caso, poderiam estar interessadas na nova internacional forças políticas que lutam democraticamente contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado sem se preocuparem com as etiquetas. Os nomes com que se designam as diferenças são menos importantes que as diferenças em si e os modos como se debatem. No segundo caso, poderiam estar interessadas na nova internacional as forças que clandestinamente lutam pela democracia.
Brasil: a fractura do desgaste da governação e a intervenção do império
O golpe judiciário-parlamentar da destituição da Presidente Rousseff e a operação Lava-Jato, com o apoio activo do imperialismo norte-americano, tiveram por objectivo enfraquecer as forças de esquerda que tinham governado o país nos últimos treze anos, e conseguiram-no. E conseguiram-no com tanto zelo que o Brasil está a recuar a muito antes de 2003, quando teve início a primeira gestão do Presidente Lula da Silva. A caricatura do Brasil real em que o Congresso se transformou com o actual sistema eleitoral e a cada vez mais abusiva judicialização da política fazem com que o sistema político brasileiro tenha entrado em tal desequilíbrio que configura uma situação de bifurcação: os próximos passos podem reestabelecer a normalidade democrática ou, pelo contrário, aprofundar de modo irreversível a vertigem fascizante em que se encontra.
As principais forças de esquerda partidária no Brasil são o PT (Partido dos Trabalhadores), PDT (Partido Democrático Trabalhista), PSB (Partido Socialista Brasileiro), PcdoB ( Partido Comunista do Brasil) e PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). A agressividade com que o governo ilegítimo de Michel Temer tem vindo a desmantelar os ganhos de inclusão social dos últimos treze anos parece indicar que só com o rápido regresso da esquerda ao poder é possível estancar esta vertigem conservadora. Não se pode sequer confiar em que uma força de centro-direita, com alguma consciência social, possa inverter esse processo e resgatar alguns dos ganhos de inclusão social recentes. Tal força ou não existe ou não tem poder político para impor uma tal agenda. Entre muitas outras questões que a conjuntura brasileira suscita neste momento, menciono a que é relevante para análise que me proponho neste texto. É possível a esquerda voltar ao poder Brasil a curto prazo e, se for possível, em que condições é que tal é desejável? Para que a esquerda regresse ao poder, é necessária unidade ou a articulação entre vários partidos de esquerda?
Uma questão prévia à resposta a estas questões é a de saber como vai evoluir o entendimento entre as diferentes forças de direita. Neste domínio, o que distingue o Brasil de outros países analisados neste texto é a divisão entre as diferentes forças de direita. É possível que o seu instinto de poder as leve a um entendimento a curto prazo. De todo o modo, o que se passar com as forças de direita terá certamente um impacto nas forças de esquerda. Para responder às questões da unidade ou articulação entre as diferentes forças de esquerda, o primeiro factor a ter em conta é que a esquerda, através do PT, esteve no poder nos últimos treze anos, algo que não aconteceu em nenhum dos outros países. Não ponho aqui em causa que o PT é um partido de esquerda nem que muitas das políticas que levou a cabo eram políticas de esquerda. Como sabemos, foi um governo de aliança com partidos da direita, nomeadamente com o PMDB a que pertence o actual presidente.
Para o tema que trato são particularmente relevantes os seguintes factores. Primeiro, a governação do PT foi contestada por outros partidos de esquerda, precisamente por ser um governo de alianças com a direita. Segundo, no Brasil é particularmente importante considerar a força de movimentos populares, não filiados em nenhum partido de esquerda. Depois da crise política de 2015, formaram-se duas grandes frentes de movimentos populares, a Frente Brasil Popular e a Frente Povo sem Medo com sensibilidades de esquerda distintas, a primeira mais coincidente com o PT, a segunda mais aberta à ideia de alianças entre diferentes partidos de esquerda. Terceiro, as forças de direita (o governo ilegítimo, os grandes media, a fracção dominante do poder judiciário e o imperialismo norte-americano) estão apostadas em impedir por todos os meios (já vimos que esses meios não têm de ser democráticos) que a esquerda volte ao poder, pelo menos antes que o processo de contra-reforma esteja consolidado. Por exemplo, a reforma da previdência parece um objectivo difícil de atingir, mas isto pode ser uma das ilusões em que os períodos pré-leitorais são férteis.
Para a direita, o maior obstáculo com que se enfrenta esse desígnio é a candidatura do ex-presidente Lula, pois está convencida de que não há outros candidatos de esquerda que possam protagonizar uma candidatura ganhadora. Quarto, as políticas que os governos do PT levaram a cabo entre 2013 e 2016 permitiram criar a ilusão de que eram geradoras de uma grande conciliação nacional numa sociedade atravessada por clivagens profundas de classe, raça e sexo. Isso foi possível porque o contexto internacional permitiu um crescimento económico que fez com que 50 milhões de brasileiros ficassem menos pobres sem que os ricos deixassem de continuar a enriquecer. De facto, nestes anos, a desigualdade social agravou-se. Quando o contexto internacional mudou (a curva descendente do ciclo das commodities), este modelo entrou em crise. O modo como ela foi gerida mostrou tragicamente que não tinha havido conciliação. As classes dominantes e as forças políticas ao seu serviço apenas tinham elevado as suas expectativas de enriquecimento durante o período e tiveram poder suficiente para não as ver frustradas no novo contexto. Num contexto mais adverso para os seus interesses passaram ao enfrentamento mais radical, a situação presente. Isto significa que as políticas que foram a marca da governação PT, sobretudo nos primeiros dez anos, não têm qualquer viabilidade no novo contexto. Aliás, os últimos anos do governo da Presidenta Dilma Rousseff já foram anos pós-Lula. Com ou sem o presidente Lula, se a esquerda voltar ao poder, o governo será caracteristicamente um governo pós-Lula.
Estes são, em meu entender, os principais factores que nos ajudam a contextualizar a eventual desejabilidade de articulação entre forças de esquerda (entre partidos e entre movimentos) e as dificuldades que ela pode enfrentar. Neste momento identificam-se duas posições. A primeira, defendida pela liderança do PT, preconiza a unidade de esquerda sob a hegemonia do PT. A segunda, defendida por outras forças de esquerda e por sectores do PT situados mais à esquerda, a unidade deve assentar em acordo entre diferentes forças de esquerda sem a hegemonia de nenhuma delas. Uma variante desta posição defende que as diferentes forças de esquerda devem num primeiro momento expressar livremente a sua pluralidade e diversidade (medir forças) e pactuar a unidade ou a articulação num segundo momento (segundo turno das eleições presidenciais ou alianças pós-eleitorais no novo Congresso).
A primeira posição conta com um candidato de luxo, Lula da Silva, que não cessa de subir nas sondagens. Mas, em Janeiro de 2018, o futuro político dele é incerto. Por outro lado, esta posição pode, no melhor dos casos, garantir que uma força de esquerda chegue ao poder, mas não pode garantir que, uma vez no poder, prossiga uma política de esquerda, ou seja, uma política que, mesmo moderada, não esteja refém de alianças com a direita que a descaracterizem. Aliás, dada a estranha natureza do sistema partidário brasileiro, pode ser possível que uma fracção centro-direita do PMDB se transfira para o PT e se apresente com o candidato Lula às eleições presidenciais, cativando, por exemplo, a vice-presidência. Neste caso, uma chapa PT aparentemente homogénea conteria uma significativa componente de centro-direita.
A segunda posição tem sido defendida dentro e fora do PT. Dento do PT o mais importante porta-voz desta posição é Tarso Genro que foi um dos melhores ministros do governo da Lula da Silva, foi Governador do Estado do Rio Grando Sul e prefeito de Porto Alegre no período aureo da articulação entre democracia representativa e democracia participativa (o orçamento participativo). Em declarações à imprensa em 14 de janeiro afirma: “Defendo que os demais partidos de esquerda lancem seus candidatos e que Guilherme Boulos e Manuela D’Ávila [candidata do PCdoB] são novos quadros, importantes para a reconfiguração de uma nova frente política no futuro, capaz de hegemonizar um governo de centro-esquerda, de reformismo forte, como está ocorrendo ou tendendo a ocorrer em alguns países. Não se sabe até onde poderá ir a experiência portuguesa, por exemplo, e mesmo qual a sua durabilidade, mas se não ousarmos no sentido de compor uma esquerda plural, criativa e democrática, com um claro programa de transição de uma economia liberal rentista, para uma economia com altas taxas de crescimento e novas formas de inclusão social e produtiva, o futuro da esquerda será cada vez mais incerto e defensivo”. Curiosamente, do meu conhecimento esta é a primeira vez que um lider político importante do Brasil se refere à articulação entre as forças de esquerda em Portugal como um caminho a ter em conta.
Esta segunda posição é, sem dúvida, a mais promissora, tanto mais que permite dar visibilidade ao único líder popular e de esquerda, além de Lula da Silva, que o Brasil conheceu nos últimos quarenta anos. Trata-se de Guilherme Boulos, jovem líder do MTST e da Frente Povo Sem Medo. Dado o desgaste da governação PT nos últimos anos e o golpe institucional que veio bloquear o processo democrático, a segunda posição, ao contrário da primeira, exclui quaisquer alianças com as forças de direita.
Em face disto, parece que as esquerdas brasileiras estão condenadas a articular-se se quiserem chegar ao poder para realizar um programa de esquerda. Para que tal suceda, pode ser necessário que as esquerdas estejam fora do poder mais tempo do que se imagina.
Colômbia: a fractura da luta armada sob a vigilância do império
A Colômbia é outro país latino-americano onde haverá eleições presidenciais em 2018 e onde a questão da articulação entre forças de esquerda se coloca com alguma acuidade. Tal como podia acontecer em Portugal e pode acontecer no Brasil, a falta de unidade pode significar que o país, qualquer que seja o sentido global do voto dos colombianos, venha a ser governado por uma direita neoliberal, hostil ao processo de paz e totalmente subserviente aos interesses continentais do imperialismo norte-americano.
Entre os factores que podem inviabilizar ou condicionar fortemente a articulação entre forças de esquerda distingo dois: o processo de paz e a interferência do imperialismo norte-americano.
O processo de paz. No momento em que escrevo (Janeiro de 2018), o processo de paz está numa perturbadora encruzilhada. Depois de referendado pelo Congresso (com modificações significativas em relação ao que tinha sido acordado em Havana ao fim de cinco anos de negociações), o acordo entre o Governo e as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) começou a ser aplicado ao longo de 2017, e o que se pode dizer deste período é que não há muitas esperanças de que ele seja cumprido. Aliás, a violência paramilitar contra líderes sociais aumentou ao longo do ano e, neste momento, mais trinta ex-guerilheiros ou seus familiares foram assassinados, além de mais de uma centena de líderes sociais. Entretanto, iniciaram-se as negociações de paz entre o Governo e o ELN (Exército de Libertação Nacional da Colômbia).
O Acordo de Havana é um documento notável porque nele se identificam em detalhe as condições para uma paz democrática, ou seja, uma paz assente na eliminação das causas sociais, económicas e políticas que levaram ao conflito armado. O acordo era particularmente detalhado sobre a reforma política e a justiça transicional. Admitia-se que o pós-conflito colombiano surgia num período de crise do neoliberalismo e que só teria alguma viabilidade de se transformar num genuíno processo de paz se, contra a corrente, fosse orientado para consolidar e ampliar a democracia, isto é, conferindo mais intensidade à convivência democrática de baixa intensidade atualmente vigente. Depois da fársica narrativa neoliberal – uma farsa tão trágica para a maioria da população mundial – de que a democracia não tem condições, o pós-conflito só se transformaria num processo de paz se aceitasse discutir criativa e participativamente a questão das condições sociais, económicas e culturais da democracia.
Pode dizer-se que a paz democrática foi o projecto explícito que orientou as negociações. Mas subjacente a ele esteve sempre um projecto implícito que designei por paz neoliberal. Este projecto não pretendia nenhuma reforma política ou económica e apenas visava o desarme das forças de guerrilha para garantir o livre acesso à terra e aos territórios por parte do capitalismo agrário e minerador nacional e estrangeiro. Tudo parece indicar que este projecto implícito era afinal o único projecto para o Governo colombiano. Por sua vez, a direita mais conservadora manifestara-se sempre contra as negociações com a guerrilha, e a sua força ficou demonstrada nos resultados do referendo sobre o acordo da paz. Durante um ano assistimos a uma crescente demonização da guerrilha por parte das forças de direita, em certos sectores do Estado (Fiscalia) e por parte dos principais meios de comunicação. Esta bem orquestrada demonização visou retirar aos ex-guerrilheiros qualquer legitimidade para serem vistos pela sociedade como membros de uma organização política que não foi militarmente derrotada e que, como tal, deve ser bem-vinda na sociedade pela sua decisão de abandonar as armas e seguir a sua luta pelas vias políticas legais.
O imperialismo norte-americano. A Colômbia ocupa uma posição estratégica no continente. Quando analisamos a história do conflito armado na Colômbia, torna-se evidente a interferência constante do imperialismo norte-americano, e sempre no sentido de defender os interesses económicos das suas empresas (pense-se na tristemente célebre United Fruit Company), os interesses geoestratégicos do seu domínio continental e, obviamente, os interesses das oligarquias colombianas suas aliadas, umas mais dóceis que outras.
A Colômbia foi o único país latino-americano a enviar tropas para combater ao lado dos norte-americanos na Guerra da Coreia. Foi a Colômbia quem promoveu a expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA) e, mais recentemente, foi a Colômbia que, na mesma organização, mais acerrimamente defendeu a expulsão da Venezuela. Sob o pretexto da luta contra o narcotráfico, o Plan Colombia, assinado por Bill Clinton em Julho de 2000, transformou a Colômbia no terceiro país do mundo a receber mais ajuda militar dos EUA (depois de Israel e Egipto) e no país com mais ajuda para treino militar directo pelos EUA.
Para os EUA, agora centrados na asfixia do regime bolivariano da Venezuela, é importante que a Colômbia continue a ser um aliado fiável para os seus desígnios no continente. É igualmente importante que as empresas multinacionais norte-americanas tenham finalmente acesso livre aos recursos naturais da Colômbia, um acesso que até agora foi limitado devido ao conflito armado. Para os EUA, o fim do conflito armado é a oportunidade para a Colômbia se entregar finalmente e sem limites ao neoliberalismo. Finalmente, para os EUA, é benéfico que o conflito armado continue, mesmo que sob outras formas, para que as forças armadas colombianas, o agente político mais próximo do império, continuem a ter um papel crucial nos processos políticos internos.
As forças de esquerda e o contexto eleitoral. A esquerda ou centro-esquerda colombiana está fragmentada. As forças de esquerda apresentam os seguintes candidatos: Clara Lopez, Gustavo Petro, Jorge Robledo, Claudia Lopez, talvez uma candidata de centro-esquerda, Sergio Fajardo, um candidato de centro que alguns consideram de centro-esquerda, e dois candidatos de direita, Germán Vargas Lleras, Iván Duque. Humberto de la Calle Lombana, que foi o negociador do processo de paz por parte do governo, tem sido mencionado como possível candidato de esquerda. O novo partido das FARC ainda não se definiu em relação às eleições presidenciais nem propôs um programa que contribuísse para unificar as esquerdas. Atravessa um complexo processo de consolidação interna, próprio da transformação de grupo guerrilheiro em partido político.
Nas actuais condições, corre-se o risco de serem os dois candidatos de direita a disputar a segunda volta das eleições presidenciais. Qualquer dele, no máximo, aceita a paz neoliberal. Ivan Duque, o representante da direita mais reaccionária, ligada ao ex-presidente Alvaro Uribe, será o que mais fielmente servirá os interesses imperiais.
Tradicionalmente, a esquerda colombiana tem estado muito fragmentada. No passado, a grande clivagem foi entre a esquerda reformista (internamente dividida) e a esquerda revolucionária, adepta de mudanças radicais por via da luta armada (também ela dividida entre vários grupos armados). Poderia pensar-se que finalmente surgiu uma oportunidade histórica para a esquerda colombiana se unir, uma vez que esta clivagem desapareceu. Infelizmente, tal não parece ser o caso porque o modo como tem sido implementado o processo de paz mostra que a clivagem afinal continua de uma forma perversa, no estigma social e político com que estão a ser marcados os ex-guerrilheiros. Em vez de serem bem-vindos por terem abandonado as armas, são demonizados por todos os crimes que cometeram, como se os acordos de paz não tivessem ocorrido, como se nenhum crime tivesse sido cometido contra eles e como se eles fossem criminosos comuns. A direita formula esse estigma com o slogan de que os ex-guerrilheiros usurparão o campo democrático para impor o “castro-chavismo”. O pós-conflito está a ser reconceptualizado como conflito por outros meios só aparentemente mais democráticos.
As diferentes forças de esquerda reformistas temem qualquer associação com as FARC, agora partido político. Ao fazerem-no, correm o risco de se colocar no campo da paz neoliberal e, portanto, no campo ideológico da direita. De uma forma ou outra, as forças de esquerda correm o risco de se renderem à lógica dos que clamam contra o “castro-chavismo”. Se interiorizarem a ideia de que têm de “lavar” a imagem da esquerda, de a purificar, mesmo que para isso seja necessário retocá-la com cores de direita, isso será um caminho de desastre. Para fugir ao “inferno venezuelano”, podem cair na mais diluída versão da social-democracia europeia. Se não se unirem, as diferentes forças de esquerda não poderão realizar um programa de esquerda, mesmo que uma delas conquiste o poder. Tal como aconteceu no passado, pode mesmo acabar por aliar-se com forças de direita.
Ao deixar-se armadilhar na opção entre política-como-dantes ou castro-chavismo, as forças de esquerda auto-excluem-se do campo em que seria possível a unidade com base num programa unitário de esquerda. Esse campo incluiria temas como os seguintes: a defesa do processo de paz entendida como paz democrática; a luta contra a enorme desigualdade social e os fascismos sociais que ela cria; a defesa dos processos populares de gestão de terras, de formas de economia solidária, sobretudo nas regiões mais afectadas pelo conflito armado; democratização da democracia, aprofundando-a e ampliando-a; reforma do Estado para o blindar contra a privatização das políticas públicas em consequência da corrupção e do abuso de poder; um distanciamento, mesmo que gradual, em relação aos desígnios do imperialismo. Para tudo isto seria necessário que o curto prazo fosse visto como parte do longo prazo, ou seja, seria necessário um horizonte político e uma visão de país que não se confina aos cálculos eleitorais do momento.
Os candidatos e as candidatas têm vindo a salientar a necessidade de buscar entendimentos e alianças entre as forças de esquerda. Uma das candidatas, Clara Lopez, em comunicação pública de 11 de Janeiro de 2018, identificava os pontos de convergência e de divergência entre as diferentes forças de esquerda e exortava-as a articularem-se e a negociarem uma agenda comum assente nas convergências, com vista a construir “uma grande coligação progressista”. Apresentava um roteiro concreto no caminho da convergência:
“1) Dentro da tradição pluralista das nossas diversas perspectivas políticas e sem abandonar as diferenças que caracterizam os nossos ideários, acordamos em convocar, e maneira conjunta, os nossos concidadãos a voltar a sonhar uma Colômbia em paz, de prosperidade partilhada, livre de corrupção e amiga da natureza.
2) Ao submeter-nos a uma consulta interpartidista no próximo mês de Março, reconhecemos a liberdade de condução da candidatura que triunfe, dentro do programa aprovado por uma convenção do partido ou movimento dessa candidatura, com a participação dos outros sectores da consulta e seus aliados, que conformarão uma coligação que se compromete a governar a Colômbia dentro do total compromisso com as instituições, a paz, a democracia, o respeito da diferença e a transformação social”
E conclui que estaria disposta a aceitar a fórmula de convergência que reunisse mais consenso. Se tal não fosse possível, seria candidata. Aparentemente, numa demonstração que o passado pesa mais que o futuro entre as esquerdas colombianas, haverá três listas de esquerda às próximas eleições legislativas de Março: a lista da FARC, a lista de Gustavo Petro e Clara Lopez, e a lista do Polo Democrático liderada por Jorge Robledo. Avizinha-se a derrota, mais uma vez, e desta vez pode ser fatal para a presença da esquerda no no Congresso. Impacto desta divisão nas eleições presidenciais que se seguirão dois meses depois?
México: a fractura entre a institucionalidade e a extra-institucionlidade
Se há país onde a democracia liberal está desacreditada, esse país é o México. Há muitos outros países em que a democracia é de baixíssima intensidade ou mesmo uma fachada, mas em que isso é amplamente reconhecido. Mas talvez pela sua história revolucionária e por durante décadas ter sido governado por um só partido, o PRI (ou PAN, partido de direita, entre 2000 e 2012), o México é um caso muito específico a este respeito. Combina um exuberante drama democrático, sobretudo em períodos eleitorais, com o reconhecimento público e notório de irregularidades, restrições e exclusões que o distanciam do país real. As críticas às práticas democráticas vigentes são talvez a forma mais genuína de vivência democrática no México. O drama mais democrático é o drama da falta de democracia. As recorrentes fraudes eleitorais, a altíssima criminalidade violenta contra cidadãos inocentes por parte do crime organizado associado a sectores do Estado, o sistema eleitoral excludente, a farsa da soberania nacional em face do servilismo em relação aos EUA, o abandono a que são sujeitos os povos indígenas, e a repressão militar a que são sujeitos sempre que resistem, tudo isto revela uma democracia de baixíssima intensidade. Apesar de tudo isto, as instituições constitucionais funcionam com a normalidade própria de um Estado de excepção normalizado.
Neste quadro, e para me limitar ao tema que aqui me interessa, o da articulação ou unidade entre forças de esquerda, a primeira questão é a de saber se há várias forças de esquerda no México. Faz parte do drama democrático do México que esta questão seja altamente controversa. Sabe-se que há várias forças de direita com vários candidatos presidenciais de direita. Sabe-se também que, tal como acontece noutros países, as forças de direita têm sido capazes de se unir sempre que se sentem ameaçadas por forças que consideram ser de esquerda. Onde estão as forças de esquerda?
Há que fazer uma primeira distinção que, aliás, só alguns aceitam, entre a esquerda institucional e a esquerda extra-institucional. A esquerda institucional são os partidos. Há partidos de esquerda no México? O único partido com presença nacional que se pode considerar de esquerda é o partido Morena, liderado por Andrés Lopez Obrador (conhecido por AMLO), várias vezes candidato à presidência da República e que nas eleições de 2012, tal como nas de 2006, terá sido provavelmente vítima de fraude eleitoral.
Dando alguma credibilidade ao dito que se ouve frequentemente que o México está muito longe de Deus e muito próximo dos EUA, convém saber o que pensa o império a este respeito. E o império não tem dúvidas de que AMLO é o perigoso demagogo de esquerda, líder de um partido socialista que se recusa a ver os benefícios enormes que o neoliberalismo trouxe ao país depois do Tratado de Livre Comércio. Um dos principais porta-vozes do império, o Wall Street Journal, não tem dúvidas a este respeito e, na edição de 8 de Janeiro de 2018, considera pouco convincente a posição política mais moderada que AMLO tem vindo a defender, salientando sobretudo a luta contra a corrupção. Considera chocante que AMLO tenha proposto em Dezembro passado a amnistia para o crime organizado, e conclui duvidando que os eleitores mexicanos acreditem na recente moderação deste “demagogo leftista”.
Concorde-se ou não com o diagnóstico do império, a verdade é que o império teme a eleição de AMLO. Como o império não faz este diagnóstico preocupado com o bem-estar dos mexicanos, mas antes preocupado com a protecção dos seus interesses, e como considero que esses interesses são contrários aos interesses da grande maioria dos mexicanos, isso é suficiente para assumir que AMLO representa uma força de esquerda. Para o argumento que defendo é sobretudo importante saber se ele poderá levar a cabo um programa de esquerda no caso de ser eleito. Tenho vindo a defender que só uma ampla unidade entre forças de esquerda pode garantir tal objectivo. Esta mesma posição tem sido defendida no México, mesmo reconhecendo-se que, tal como acontece noutros países, as forças de esquerda têm tido uma forte tendência para polarizar as suas divergências, as quais muitas vezes expressam mais choques de personalidades do que choques programáticos. Infelizmente, não parece estar no horizonte de AMLO realizar articulações com outras forças de esquerda eventualmente existentes. Pelo contrário, o que se prefigura é, entre outras, uma coligação com um partido conservador, PES (Partido del Encuentro Social), um partido com forte componente religiosa evangélica, militantemente oposto à diversidade sexual, à proteção de minorias sexuais e à descriminalização do aborto. Algumas feministas têm-se insurgido contra a ideia de que os fins justificam os meios e que o importante é ganhar as eleições. Aceitam articulações, mas não a cedência em princípios e conquistas sociais em resultado de duras lutas.
Parece, pois, poder concluir-se que não se afigura possível, por agora pelo menos, uma articulação entre forças de esquerda institucionais no México. Mas, como disse atrás, uma das características mais específicas do drama democrático mexicano é ele não se poder entender sem a distinção entre esquerda institucional e a esquerda extra-institucional. Pelo menos desde 1994, a esquerda institucional mexicana vive assombrada pelo espectro da emergência de uma esquerda insubmissa e insurrecional, uma esquerda que se coloca fora do sistema das instituições democráticas precisamente por não as considerar democráticas. Refiro-me ao movimento zapatista do EZLN e ao seu levantamento em armas em Janeiro daquele ano. O levantamento que foi armado num breve período inicial de doze dias, em breve se transformou num vibrante movimento com forte implantação no sul do México, que progressivamente foi conquistando aderentes em todo o território mexicano e em diferentes países do mundo. Com grande criatividade discursiva, em que brilhou o Sub-comandante Marcos, e com múltiplas iniciativas que foram dando visibilidade crescente ao movimento, os zapatistas têm vindo a defender uma alternativa anti-capitalista, anti-colonialista e anti-patriarcal, assente na auto-organização dos grupos sociais oprimidos, uma organização construída de baixo para cima e governada democraticamente segundo o princípio de “mandar obedecendo” dos povos indígenas das montanhas de Chiapas. Ao longo dos anos, os zapatistas assumiram consistentemente esses princípios e foram surpreendendo o México e o mundo com novas formas de organização comunitária, ancoradas em princípios ancestrais, com iniciativas transformadoras de governo, de economia, de formação e de educação. Nesse processo, as mulheres foram assumindo um protagonismo crescente.
À medida que foi conquistando adeptos, a postura extra-institucional dos zapatistas começou a ser vista pela esquerda institucional como uma ameaça. A sua recusa em apoiar candidatos ou partidos de esquerda nos processos eleitorais foi considerada pela esquerda como uma postura que favorecia a direita. Ao longo dos anos, as relações dos zapatistas com as instituições do Estado mexicano foram complexas e nem sempre de confrontação. Pouco tempo depois de terem abandonado as armas, os zapatistas entraram em negociações com o governo com o objectivo de verem reconhecidas as reivindicações dos povos indígenas. Em Fevereiro de 1996 foram assinados os acordos que ficaram conhecidos por Acuerdos de San Andrés, por terem sido assinados no povoado San Andrés Larrainzar de Chiapas. Tais acordos nunca foram cumpridos e isso passou a constituir para os zapatistas mais uma demonstração da falta de credibilidade das instituições ditas democráticas.
Em tempos recentes, uma nova iniciativa dos zapatistas voltou a surpreender os mexicanos: a decisão de apresentar uma mulher indígena como candidata independente às próximas eleições presidenciais. Trata-se de Marichuy, que fundou e dirige a Calli Tecolhocuateca Tochan, “Casa de los Antepasados”, em Tuxpan, Jalisco. Em 2001 foi uma das mulheres indígenas que, juntamente com a comandante Esther do EZLN, tomou a palavra no Congresso mexicano. Por iniciativa dos zapatistas e do Congresso Nacional Indígena, a proposta foi feita pelo Conselho Indígena de Governo. Em 15 de Outubro de 2017, Marichuy anunciava oficialmente a sua candidatura. Significava isto que a esquerda zapatista abandonara a via extra-institucional e passara a adoptar a institucional? Se isso acontecera, seria a proposta dos zapatistas uma proposta de esquerda que se podia vir a articular ou coligar com outras forças de esquerda?
Estas perguntas faziam sentido na fase inicial da candidatura quando se iniciou o movimento para recolher o numero de assinaturas exigidas pelo Instituto Nacional Eleitoral para a apresentação de candidatos independentes. Tal movimento revelava a seriedade institucional do processo. Os zapatistas chegaram mesmo a ser acusados de se terem rendido ao “eleitoralismo” que tanto tinham criticado. A verdade é que o processo de recolha de assinaturas se iniciou com determinação. Era um esforço gigantesco, já que o número de assinaturas exigido era elevadíssimo, mais de 800.000 assinaturas. Em breve se verificou que as regras e exigências, mesmo que feitas de boa-fé, o que foi questionado, estavam concebidas para um México “oficial”, muito diferente do México “profundo”, onde a documentação e a infraestrutura técnica (de fotocopiadoras a telemóveis) ou não existem ou não são facilmente disponíveis. Deste modo, o processo de recolha de assinaturas transformou-se em mais uma prova do carácter excludente e discriminatório do sistema eleitoral mexicano. Depois dos Acuerdos de San Andrés, esta era a segunda vez que as instituições do Estado mexicano revelavam o seu carácter não confiável, excludente e discriminatório. Também se deve ter em mente que a recolha das assinaturas pode estar a ser afectada por duas razões adicionais. Por um lado, as bases sociais do zapatismo e os seus simpatizantes foram socializadas para se distanciarem totalmente dos processos eleitorais. A recolha de assinaturas implica para eles alguma cedência. Por outro lado, alguns que simpatizam com a causa dos povos indígenas estão interessados em que a posição do candidato de esquerda que apoiam seja fragilizada pela presença de uma candidatura à sua esquerda.
No momento em que escrevo, Marichuy continua a sua campanha, como campanha de denúncia do sistema político e institucional e de sensibilização para as causas dos “condenados da terra”. Aproveitando um contexto político institucional por excelência, o contexto eleitoral, Marichuy vai fazendo a pedagogia dos temas e dos povos que estão excluídos do drama democrático do México. Só por isso, a candidatura de Marichuy não terá sido um fracasso.
De tudo se conclui que, por agora, pelo menos, não são possíveis amplos acordos entre as esquerdas no México. A esquerda institucional vai continuar dividida como antes e a fractura entre a esquerda institucional e a extra-institucional apenas se agrava.
Espanha: a fractura da identidade nacional
Em Espanha a esquerda-esquerda passou em tempos recentes por um momento excepcionalmente auspicioso. No embalo do movimento dos indignados (mais conhecido em Espanha como 15M), aproveitando a insatisfação dos espanhóis com um governo conservador massivamente corrupto (PP, Partido Popular) e a falência de uma alternativa por parte do Partido Socialista (PSOE), ele próprio desgastado por uma governação refém do neoliberalismo, nasceu um novo partido de esquerda, o Podemos. Surgiu como uma fulguração política em 2014 e teve um êxito surpreendente nas primeiras eleições a que concorreu, elegendo cinco deputados no Parlamento Europeu. Para além de ser um novo partido, era um partido de tipo novo, com uma relação orgânica com o movimento social de que emergira (o movimento dos indignados). Era também um partido novo por ser muito jovem toda a sua liderança. Anunciava-se o fim do bipartidismo, que emergiu com a transição para a democracia consagrada na Constituição de 1978, a alternância entre o PP e o PSOE, com o antigo Partido Comunista, mais tarde Izquierda Unida, reduzido a uma existência muito modesta.
Podemos foi a resposta daqueles e daquelas que no movimento dos indignados defendiam que o movimento das ruas e das praças devia prolongar-se no plano institucional, transformando-se em partido. Apesar de adoptar a luta institucional, Podemos apresentou-se como o partido anti-regime da transição com o argumento de que esse regime tinha dado origem a uma elite ou casta política e económica que desde então se expressava politicamente na alternância entre os dois partidos do regime (PP e PSOE), uma alternância sem alternativa. As posições iniciais do partido levaram alguns a pensar, erradamente a meu ver, que se estava perante um novo populismo de esquerda que opunha a casta ao povo. Dizia-se, aliás, que dicotomia esquerda/direita não captava a novidade e a riqueza programática e organizacional do partido, que era necessária uma “nova” maneira de fazer política, oposta à “velha” política. Por se tratar de um partido novo, as bases organizativas do partido eram frágeis, mas essa fragilidade era compensada com o entusiasmo dos militantes e simpatizantes.
Os difíceis caminhos da articulação entre as esquerdas. Nestas condições, não era de esperar qualquer aproximação ou articulação entre as esquerdas, nomeadamente com a Izquierda Unida e o PSOE. Aliás, a grande maioria dos adeptos do Podemos não considerava que o PSOE fosse um partido de esquerda em face das cedências que os sociais democratas tinham feio ao neoliberalismo da UE. Estávamos em período de medir forças e esse processo era particularmente decisivo para o Podemos. As primeiras “medições” não poderiam ser melhores. Nascido em Janeiro de 2014, as sondagens de opinião no final de 2015 mostravam que Podemos era o segundo partido nas intenções de voto dos espanhóis, depois do PP e à frente do PSOE. As primeiras iniciativas de acordo eleitoral entre forças de esquerda vieram da Izquierda Unida, liderada por outro jovem, Alberto Garzón, depois das eleições autonómicas de 2015. Eram os primeiros sinais no sentido de unir as diferentes forças de esquerda com vista a conquistar o poder. Entretanto, Podemos decidiu, por meio de consulta interna, que quaisquer acordos ou coligações com outras forças de esquerda deviam conter o nome Podemos. Assim foram surgindo os primeiros acordos a nível autonómico: “Compromís-Podemos-És el Moment” na Comunidade Valenciana, “Podemos-En Marea-ANOVA-EU” na Galiza e “En Comun Podem” na Catalunha. E a nível nacional surgiu a coligação “Unidos Podemos”, antes das eleições legislativas de Junho de 2016 a que se juntou também o grupo ecologista Equo.
As eleições de 2016 foram o primeiro sinal que o trajecto ascendente de Podemos não era algo irreversível. A campanha de Podemos foi toda orientada para ultrapassar o PSOE como grande partido de oposição. Esse objectivo ficou longe de ser obtido, tendo o PSOE obtido 22% dos votos e o Unidos Podemos apenas 13%. Depois da forte crispação inicial entre Podemos e PSOE, tinha havido algumas conversações entre os dois partidos no sentido de provocar a queda do governo conservador, mas nada foi concretizado. Os resultados das eleições foram também fracos para o PSOE, uma vez que se esperava que capitalizasse no desgaste da governação do PP. Em face disso, as divisões no interior do partido agravaram-se e Pedro Sánchez renunciou ao cargo de secretário geral em Outubro de 2016 depois de ser derrotado num turbulento Comité Federal. Nesse mesmo mês, o PSOE possibilitava, por meio da abstenção, a investidura do novo governo do PP, liderado por Mariano Rajoy. A líder regional Susana Dias, discípula política de Felipe González, voltou a vincar a política centrista do partido e viabilizou por abstenção a investidura do novo governo do PP. Numa demonstração de enorme tenacidade política, Pedro Sánchez aproveitou as alterações estatutárias que previam a eleição directa do secretário-geral em eleições primárias e voltou a conquistar a liderança do partido no 39 Congresso do PSOE em Maio de 2017. As relações entre os dois partidos melhoraram significativamente quando Pedro Sánchez retomou a liderança do partido.
Sob a sempre presente influência do fundador do partido, Felipe González, uma forte corrente dentro do PSOE, recusava como matéria de princípio qualquer aliança com o Podemos e, pelo contrário, defendia o entendimento com os partidos de direita (como Ciudadanos, um partido de direita liberal nascido na Catalunha e hoje presente no conjunto do Estado espanhol com o apoio de alguns sectores importantes dos media e de interesses económicos poderosos), de modo a garantir a continuação do pacto de governação e da política da alternância que vinha desde a Transição. Era a reprodução da política convencional da social democracia europeia construída na Guerra fria e que continuara depois da queda do Muro de Berlim, política a que, como vimos, o Partido Socialista português pôs fim no final de 2015. No entanto, o regresso de Pedro Sánchez revelava que a militância socialista estava dividida a este respeito, alguma por acreditar que sem uma unidade entre as forças de esquerda esta nunca mais voltaria ao poder, outra por pensar que sem uma viragem à esquerda que permitisse recuperar os votos que tinham feito crescer o Podemos o PSOE nunca mais poderia voltar ao poder.
Estavam criadas as condições para se reiniciarem as conversações de confluência entre o PSOE e o Podemos. Da parte do Podemos havia agora uma motivação muito mais intensa para uma articulação com toda a esquerda. Falava-se da solução portuguesa, reconhecia-se que as transições democráticas nos dois países tinham sido diferentes, mas considerava-se que para tentar mudar a política neoliberal europeia era crucial que a Espanha, a quinta maior economia da UE, passasse a ter um governo de esquerda. Pedro Sánchez teve vários encontros com o primeiro-ministro socialista português e consta que discutiram a coligação portuguesa. Da parte de Unidos Podemos havia contactos, quer com o Bloco de Esquerda quer com o Partido Comunista Português.
No novo ciclo de contactos entre o Podemos e o PSOE tratava-se de articular reformas políticas, construir acordos programáticos e, a prazo, promover um governo de esquerda que pusesse fim aos anos neoliberais e corruptos da governação PP. Os sinais facilitadores da confluência estavam dados e vinham de ambos os lados. O PSOE declarava que o Podemos era “um parceiro preferencial” ou que o grande objectivo era “um entendimento de esquerda no país”.
A crise da Catalunha. Estávamos em Junho de 2017. Poucos meses depois, estala a crise da Catalunha, e as divergências entre os dois partidos em relação à Catalunha fizeram colapsar as conversações e objectivo dos acordos de governação. Aliás, o desenrolar da crise mostrou que, apesar de se terem afastado, os dois partidos foram ambos negativamente afectados pelo modo como se posicionaram perante a crise.
Para os que não sabem o que é a crise da Catalunha, eis um breve resumo: A Catalunha tem uma identidade nacional forte e historicamente enraizada, tal como outras regiões de Espanha, nomeadamente, o País Basco, a Galiza; essa identidade foi muito reprimida pela ditadura franquista; depois da transição democrática em 1978 foi reconhecida a identidade catalã e a sua autonomia no âmbito do Estado espanhol; ao longo das últimas décadas, os catalães lutaram pelas vias institucionais para que o estatuto de autonomia fosse ampliado; em 2006 aceitaram o novo Estatuto de Autonomía pactuado com o governo central, mas esse estatuto foi anulado pelo Tribunal Constitucional; desde então, as relações entre Madrid e Barcelona crisparam-se; entretanto, o partido nacionalista e conservador que governara durante muito tempo a Catalunha, politicamente muito próximo do PP, passou a defender a independência como única via para a Catalunha ver reconhecida a sua identidade e vontade de auto-governo; o objectivo da independência passou então a ter dois braços políticos, um braço de direita e um braço de esquerda, sendo que neste último tinham militado republicanos que nunca se tinham reconhecido na monarquia borbónica (antepassados do actual rei), que no século XVIII derrotara os independentistas catalães; a 1 de Outubro o governo catalão realiza um referendo, considerado ilegal pelo Governo central de Madrid, para conhecer a vontade dos catalães a respeito da independência; o Governo central tenta travar a realização do referendo pela via judicial e policial, mas, apesar das intimidações e repressões, o referendo realiza-se e a maioria dos que expressaram ao seu voto votaram a favor da independência; poucos dias depois o Governo da Catalunha declara unilateralmente a independência; o Governo de Madrid reage, acionando o art. 155 da Constituição que declara o estado de emergência na Catalunha; suspende o governo autonómico, manda prender os dirigentes políticos e convoca eleições na Catalunha para 21 de Dezembro com o objectivo de eleger um novo governo; o líder do governo catalão, suspenso pelo Governo central da Madrid, Carles Puigdemont, exila-se na Bélgica e a partir de Bruxelas procura o apoio dos países europeus para a causa catalã, apoio que é recusado; as eleições catalãs têm lugar e os partidos independentistas voltam a ganhar as eleições; tanto o PSOE como o Podemos (que se apresentou a eleições numa coligação de várias forças de esquerda designada Catalunya en Comú) saem derrotados nas eleições e a derrota do Podemos é particularmente preocupante para o partido pelas repercussões que pode ter fora da Catalunha; a coligação que governara antes a Catalunha (constituída por um partido de direita, o maior, e dois partidos de esquerda, um de esquerda moderada e outro de esquerda-esquerda) volta a posicionar-se para governar. No momento em que escrevo (15 de Janeiro), o futuro político da Catalunha é uma complexa incógnita.
Por que razão veio a crise da Catalunha bloquear um acordo entre as esquerdas considerado fundamental para pôr termo à governação conservadora, um objectivo partilhado pela maioria dos espanhóis? Afinal, ambos os partidos se manifestaram contra o referendo unilateralmente decidido pelos catalães e ambos os partidos defenderam a ideia de um Estado plurinacional com vista à constituição eventual de um Estado federal ou confederal; ambos os partidos se manifestaram contra a independência da Catalunha, mas Podemos foi particularmente enfático em que esse objectivo devia ser construído consensualmente com os catalães e não assentar em repressões judiciais e policiais. Defendeu o direito a decidir dos catalães, baseado num referendo pactuado com o conjunto do Estado espanhol.
Mas as divergências entre os dois partidos agravaram-se entretanto. A crise da Catalunha levou o PSOE, ao contrário do Podemos, a recuar na defesa da plurinacionalidade do Estado espanhol. A plurinacionalidade (a Espanha como “nação de nações”) tinha sido reconhecida no 39 Congresso do partido que reelegeu Pedro Sánchez como secretário-geral. Posteriormente, porém, a plurinacionalidade foi eliminada como eixo central da proposta do partido de reforma constitucional. Os dois partidos divergiram fortemente no accionar do artigo 155 da Constituição e na repressão jurídico-judicial em que este se traduziu. O PSOE manifestou-se a favor da declaração do estado de emergência e, de facto, acordou com o PP o accionar do dispositivo constitucional. Na perspectiva do Podemos, com esta decisão, o PSOE voltava a ser um dos partidos do regime contra o qual surgira o Podemos e, por isso, as negociações entre os dois partidos deviam ser suspensas. Da parte do PSOE o afastamento foi correspondente.
As esquerdas e a identidade nacional. Por que é que a crise da Catalunha pode ser particularmente negativa para o Podemos? Se nos restringirmos à Catalunha, os danos não parecem duradouros. A posição da aliança em que se integrava o Podemos era a posição aparentemente moderada do fortalecimento da autonomia pelas vias legais e constitucionais. Mas seria essa a posição das bases catalãs do partido? Estariam todas com o partido quando este afirmava o direito a decidir e ao mesmo tempo insistia que a independência não era uma boa solução, nem para a Catalunha nem para Espanha? Defender o direito a decidir não implicaria o dever de aceitar o que fosse decidido? Porquê insistir tanto na ilegalidade do referendum quando a esmagadora maioria dos catalães defendia o direito incondicional de decidir, ainda que estivessem divididos quase pela metade sobre o objectivo da independência?
Que havia divergências, isso tornou-se evidente quando o dirigente catalão do Podemos se declarou a favor de aceitar o resultado das eleições de Dezembro e, portanto, a independência, e foi prontamente demitido pela direção nacional do partido. De todo o modo, em contextos de forte polarização é normal que os partidos que defendem posições mais moderadas sejam punidos pelos eleitores, mas essa situação não perdura quando a polarização se atenua, o que pode ocorrer se tivermos em mente que o independentismo não teve uma vitória esmagadora, antes pelo contrário, e que tanto o extremo da independência como o extremo do centralismo (o partido conservador Ciudadanos) foram os vencedores das eleições.
Se tivermos em consideração a Espanha no seu conjunto, a razão da vulnerabilidade acrescida do Podemos depois da crise da Catalunha reside em que a identidade nacional na Espanha não é, ao contrário de outros países, uma bandeira inequivocamente de direita. É uma bandeira de muitos dos movimentos de cidadãos e cidadãs de esquerda que se coligaram com o Podemos nas diferentes regiões autonómicas. Para elas, era importante que Podemos distinguisse entre legalidade e legitimidade no caso do referendum dos catalães e estivesse inequivocamente ao lado dos catalães que desafiavam o centralismo conservador de Madrid para exercer o direito mais básico da democracia, o direito de votar. Só assim faria sentido que fosse considerada genuína a oposição do partido à declaração unilateral de independência em resultado do referendo de 1 de Outubro, uma declaração que, no entanto, foi imediatamente suspensa como sinal de oferta de diálogo e solicitação de mediação internacional. Ficou a dúvida nestas bases sobre de que lado estaria Podemos em futuros confrontos de outras regiões com o centralismo de Madrid.
Terá a liderança de Podemos sido insensível à complexidade da questão da identidade nacional em Espanha? As novas lideranças da esquerda-esquerda europeia, não só na Espanha como noutros países, foram treinadas para desconfiar de todos os nacionalismos, uma vez que na Europa eles foram sempre conservadores e estiveram na origem dos maiores crimes. Foram igualmente treinadas para dar toda a prioridade às políticas de classe, ainda que nos períodos mais recentes complementadas com políticas anti-patriarcais e anti-raciais. Acresce que na Catalunha a independência veio a ser empunhada como bandeira por uma direita que durante décadas tinha sido servil ao Governo central e, enquanto Governo autonómico, tinha aplicado com zelo as políticas neoliberais contra os trabalhadores catalães.
Qualquer destas duas vertentes do treino tem de ser reavaliada nos próximos tempos, não só em Espanha como em muitos outros países. Para isso, as esquerdas europeias têm de aprender com o Sul Global. No que respeita ao nacionalismo, este foi nos contextos coloniais extra-europeus um objectivo politicamente muito mais complexo. Foi a bandeira dos povos oprimidos entre os quais havia obviamente diferenças de classe, de etnia e outras. Daí que se tenha distinguido entre o nacionalismo dos fracos ou oprimidos e o nacionalismo dos fortes ou opressores. Mas, mesmo na Europa, essa complexidade existiu historicamente. Com referência à Galiza e às diferentes nações no interior do Estado espanhol, Xosé Manuel Beiras fala de “nacionalismos periféricos”. A Andaluzia foi talvez o primeiro território da Europa a ser tratado como colónia depois da mal chamada Reconquista. As formas coloniais de administração e de concentração de terras foram experimentadas na Andaluzia antes de serem aplicadas no Novo Mundo, como têm insistido os estudiosos andaluzes. Daí, o conceito de colonialismo interno que tanto se pode aplicar em contexto latino-americano como em contexto europeu. As novas lideranças de esquerda europeia nunca puderam aprender nas escolas e nas universidades que a história dos seus países incluía colonialismo interno e que havia vários tipos de nacionalismo tanto no mundo como na própria Europa.
Por outro lado, no que respeita à prioridade da política de classe, haverá que haver no futuro uma profunda reflexão. Tenho defendido que a dominação moderna é constituída desde o século XVI por três modos principais de dominação: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Desde as suas origens, estes três modos de dominação sempre actuaram articulados até hoje. As épocas e os contextos sociais de cada país distinguem-se pelo modo específico de articulação entre os diferentes modos de dominação que prevalece. O colonialismo não terminou com o fim do colonialismo histórico. Continua hoje sob outras formas, como o colonialismo interno, o racismo, a xenofobia e a islamofobia.
A luta contra a dominação tem igualmente de ser articulada e contemplar as três vertentes, mesmo que as ênfases e as urgências obriguem a dar mais prioridade a uma ou outra. Mas as três têm de estar sempre contempladas pela simples razão que em certos contextos as lutas assumem versões mutantes. Por exemplo, uma reivindicação de classe pode afirmar-se sob a forma de reivindicação de identidade nacional, e vice-versa. Portanto, as forças políticas que têm êxito são as que estão mais atentas a este carácter mutante das lutas sociais. Penso que este terá sido o caso da Catalunha. Em Espanha, as identidades nacionais são transclassistas e não podem ser minimizadas pelas forças de esquerda por esse facto. Estas têm antes de lutar com as contradições para fazer funcionar o transclassismo a favor de uma política progressista que fortaleça as posições e os interesses das classes subalternas, populares. A crise da Catalunha revelou que a “questão nacional” de Espanha só se resolve com uma ruptura democrática com o regime actual, o que pressupõe uma nova Constituição.
O Unidos Podemos está muito a tempo de fazer a reflexão a este respeito e espero que o mesmo ocorra no PSOE. Se ela tiver lugar, voltará a ser possível pensar numa unidade entre as forças de esquerda consistente que inclua partidos e movimentos. Sem ela, as esquerdas espanholas nunca chegarão ao poder com um programa de esquerda, o que é mau para a Espanha e para a Europa.
Coda
As questões tratadas neste texto estão presentes noutros contextos ainda que com outros matizes e outras composições. Entre muitas outras condições que podem afectar a unidade das esquerdas em contextos pré-eleitorais, identifiquei algumas, vinculando-as a países específicos, tomando em conta que todas elas ocorrem num contexto comum, a virulência da governação fascizante neoliberal da direita conservadora que ilustrei com o caso de Portugal. As condições que considerei terem um valor explicativo especial em cada país foram: a fractura do desgaste da governação (Brasil), a fractura da luta armada sob a vigilância do império (Colômbia), a fractura entre a institucionalidade e a extra-institucionlidade (México), a fractura da identidade nacional (Espanha). Tratou-se de identificar condições dominantes bem consciente que para alem delas estariam presentes outras. Por sua vez qualquer destas condições analisadas pode estar presente noutros países e contextos e assumindo configurações diferentes. Por exemplo, a fractura do desgaste da governação pode estar presente na Itália com o desgaste socio-liberal do Partido Democrático que em parte está na origem da emergência e crescimento de um partido anti-sistema a Cinco Stelle de Beppe Grillo. O mesmo se pode dizer da França depois da desastrosa governação do Partido Socialista liderado por François Hollande, uma tentativa tardia de se submeter à ordem neoliberal. Ou do desgaste da longa governação do partido do Congresso na Índia que levou à criação de outro partido identificado como sendo de esquerda, o AAP (partido do homem comum), tendo como lema central a luta contra a corrupção. Esse desgaste acabou por abrir o caminho à conquista do poder pelo BJP, liderado por Modi, um partido conservador fascizante que combina a subserviência ao credo neoliberal com a politização do Hinduismo, transformando-o num instrumento de discriminação contra os muçulmanos. A fractura do desgaste da governação está também certamente presente em vários paíes africanos, sobretudo tendo em mente que têm sido submetidos com particular violência às imposições do neoliberalismo e do capital financeiro. É, por exemplo, o caso ANC na Africa do Sul. O desgaste da governação tem levado ao surgimento de outras forças políticas ao mesmo tempo que se agravam as divisões internas no ANC. Em parte pelas mesmas razões de contexto internacional podemos ainda detectar o efeito do desgaste da governação em países como Moçambique e Angola onde continuam a governar os partidos que lideraram as lutas de libertação contra o colonialismo português.
Por sua vez a fractura da luta armada condiciona as possibilidades de articulação entre as forças de esquerda na Turquia ( a questão curda), na Índia (os naxalitas) e nas Filipinas (as lutas étnicas e muçulmanas). O Sri Lanka foi durante muito tempo um país politicamente condicionado pela luta armada dos Tamil. A fractura da institucionalidade/extra-institucionalidade está presente na Tunisia, na Argentina, no Peru e faz emergir a distinção proposta pelos zapatistas entre izquierda de abajo e izquerda de arriba. Por último, a fractura da identidade nacional surge de formas muitos distintas (discriminação racial, xenofobia, internamento indigno de refugiados, etc) em muitos países da Europa devido à herança colonial criando multiplos obstáculos às articulações entre forças de esquerda. São, por exemplo, os casos da Alemanha, Inglaterra e Holanda. E o mesmo sucede com Bernie Sanders e outras forças de esquerda na sombra do partido democrático norte-americano, e importância relativa que dão à discriminação e a violência policial contra a população afro-americana.
Deve ainda ter-se em mente que por vezes as condições aqui analisadas não afectam apenas as possibilidades de articulação entre forças de esquerda. Provocam divisões no interior da mesma força de esquerda, tornando ainda mais difícil qualquer política de alianças. É o caso do Partido Trabalhista inglês que em tempos recentes sofreu uma forte convulsão interna de que ainda se não recuperou plenamente.
Conclusão
Frequentemente, apelamos para a necessidade de fazer análises concretas de situações concretas, mas a verdade é que raramente concretizamos. As diferentes forças de esquerda devem continuar a afirmar a sua diversidade e a analisar a sociedade com uma visão de médio e longo prazo. O tema abordado neste texto visa responder a um contexto específico, um contexto em que as forças de esquerda têm de ser simultaneamente mais humildes e mais ambiciosas. Têm de ser mais humildes, porque têm de operar num mundo onde o objectivo de construir um sistema globalmente alternativo ao capitalismo, ao colonialismo e ao patriarcado não está na agenda política. Esta ausência cria um vazio que por agora só parece poder ser preenchido por alternativas locais e iniciativas que prefigurem uma sociedade alternativa. Mas têm de ser mais ambiciosas porque, tal como estão as coisas, só as esquerdas podem salvar a humanidade dos efeitos mais destrutivos e do imenso sofrimento humano decorrentes de uma catástrofe social e ambiental, que não parece estar longe.
Essa defesa consiste na defesa da dignidade humana e da dignidade da natureza por via da radicalização da democracia, uma democracia de alta intensidade, necessariamente pós-liberal. Será um processo histórico longo, caracterizado por dois princípios-guia: revolucionar a democracia e democratizar a revolução. Ao ponto a que chegámos no fim da nova (des)ordem neoliberal iniciada em 1989, é necessário começar com pequenos passos. O contexto é de fascismo social e político difuso. Mesmo assim, o processo de radicalização enfrenta duas grandes dificuldades.
A primeira é que tem de começar com a democracia liberal, mas não pode terminar nela. Tem de a levar a sério e envolver-se a fundo nela sem se deixar corromper por ela. Tem de a defender até ao ponto de convencer públicos amplos que a democracia não pode ser defendida se não adoptar mecanismos e ampliar os campos democráticos muito para além dos limites da democracia liberal. As esquerdas sempre se colocaram no avesso da democracia liberal para denunciar os limites, as mentiras e as exclusões ocultas pelo lado direito desta. Hoje sentem-se chamadas a actuar no lado direito da democracia liberal, mas sabem que estarão perdidas no momento em que perderem de vista as realidades do lado avesso.
A segunda dificuldade consiste em que as esquerdas têm de operar simultaneamente no curto e no longo prazo, o que vai contra toda a lógica da democracia liberal, uma lógica que foi demasiado interiorizada por muitas forças de esquerda. A razão porque se afirma com frequência e com alguma verdade que a direita identifica melhor os seus interesses do que a esquerda é porque, ao contrário da esquerda, a direita, tal como o capitalismo, só pode ver e só tem de ver o curto prazo e no curto prazo é sempre mais fácil identificar ganhos e perdas.
No final desta reflexão, talvez seja possível responder a uma intrigante questão: porque é que os partidos de esquerda, que durante décadas foram muito críticos de democracia liberal, são hoje os seus melhores e mais genuínos defensores? E por que o fazem no momento em que a falência da democracia liberal parece evidente? A resposta é esta. O neoliberalismo e o capital financeiro global são inimigos da democracia, seja ela de alta ou de baixa intensidade, e as forças de direita que optarem por seguir os ditames deles terão de optar cada vez mais por políticas anti-democráticas. Na medida em que a direita se consolidar no poder, a democracia será descaracterizada a tal ponto que o novo regime político, ainda sem nome, será uma nova forma de ditadura sob fachada democrática. Ora as esquerdas sempre estiveram na linha da frente da luta contra as ditaduras, e a luta anti-fascista foi o objectivo em que mais facilmente se coligaram. As esquerdas começaram a perceber que a democracia está a ser sequestrada por forças anti-democráticas e que quando isso ocorre o fascismo não está longe, se é que não está já entre nós. Esta sensação de perigo iminente é o que melhor explica a nova vontade de articulação entre as forças de esquerda.
E tal como os inimigos da democracia actuam globalmente, será crucial que as forças de esquerda se articulem não só no plano nacional como também globalmente. O socialismo como democracia sem fim poderia ser o lema de uma nova internacional das esquerdas. De todo o modo, a nova internacional, ao contrário das anteriores, não visaria criar nenhuma organização nem muito menos definir a linha política correcta. Visaria apenas criar um fórum onde as esquerdas de todo o mundo pudessem aprender umas com as outras os tipos de obstáculos que surgem quando se procura articular lutas e juntar forças, em que contextos essa articulação pode ser desejável e quais os resultados quando tal articulação ou unidade não ocorre. Neste sentido, é possível acordar no slogan:
Esquerdas de todo o mundo, uni-vos!
Tenho escrito muito sobre as esquerdas, o seu passado e o seu futuro.
Tenho preferência pelas questões de fundo, coloco-me sempre numa perspectiva de médio e longo prazo e evito entrar nas conjunturas do momento. Neste texto sigo uma perspectiva diferente: centro-me na análise da conjuntura de alguns países, e é a partir dela que coloco questões de fundo e me movo para escalas temporais de médio e longo prazo.
Isto significa que muito do que está escrito neste texto não terá qualquer atualidade dentro de meses ou mesmo semanas. A utilidade dele pode estar precisamente nisso, no facto de proporcionar uma análise retrospectiva da atualidade política e do modo como ela nos confronta quando não sabemos como se vai desenrolar. E também pode contribuir para ilustrar a humildade com que as análises devem ser feitas e a distância crítica com que devem ser recebidas. Talvez este texto possa ser lido como uma análise não conjuntural da conjuntura.
À partida devo tornar claro o que entendo por esquerda. Esquerda é o conjunto de teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos cento e cinquenta anos, resistiram à expansão do capitalismo e ao tipo de relações econômicas, sociais, políticas e culturais que ele gera, e que assim procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do efetivo exercício da liberdade.
Num mundo cada vez mais interdependente tenho vindo a insistir na necessidade de aprendizagens globais. Nenhum país, cultura ou continente pode hoje arrogar-se o privilégio de ter encontrado a melhor solução para os problemas com que o mundo se confronta e muito menos o direito de a impor a outros países, culturas ou continentes. A alternativa está nas aprendizagens globais sem perder de vista os contextos e as necessidades específicas de cada um. Tenho vindo a defender as epistemologias do sul como uma das vias para promover tais aprendizagens e de o fazer a partir das experiências dos grupos sociais que sofrem nos diferentes países a exclusão e a discriminação causadas pelo capitalismo, colonialismo e patriarcado. Ora as necessidades e aspirações de tais grupos sociais devem ser a referência privilegiada das forças de esquerda em todo o mundo, sendo as aprendizagens globais um instrumento precioso nesse sentido. Acontece que as forças de esquerda têm uma enorme dificuldade em conhecer as experiências de outras forças de esquerda noutros países e em se disporem a aprender com elas. Nem estão interessadas em conhecer profundamente as realidades políticas doutros países nem tão pouco dão a atenção devida ao contexto internacional e às forças econômicas e políticas que o dominam. O desaparecimento analítico das múltiplas faces do imperialismo são prova disso. Além disso, tendem a ser pouco sensíveis à diversidade cultural e política do mundo.
Que as forças de esquerda do Norte global (Europa e América do Norte) sejam eurocêntricas não é novidade para ninguém. O que talvez seja menos conhecido é que a maior parte das forças de esquerda do Sul Global são igualmente eurocêntricas nas referências culturais que subjazem às suas análises. Basta ter em conta as atitudes racistas de muitas forças de esquerda da América Latina em relação aos povos indígenas e afrodescendentes.
Com o seu objectivo muito limitado de analisar a conjuntura das forças de esquerda em alguns países este texto pretende aumentar o inter-conhecimento entre elas e sugerir possibilidades de se articularem tanto nacional como internacionalmente.
O novo interregno
Estamos num interregno. O mundo que o neoliberalismo criou em 1989 com a queda do Muro de Berlim terminou com a primeira fase da crise financeira (2008-2011) e ainda não se definiu o novo mundo que se lhe vai seguir. O mundo pós-1989 teve duas agendas que tiveram um impacto decisivo nas políticas de esquerda um pouco em todo o mundo. A agenda explícita foi o fim definitivo do socialismo enquanto sistema social, económico e político liderado pelo Estado. A agenda implícita consistiu no fim de qualquer sistema social, económico e político liderado pelo Estado. Esta agenda implícita foi muito mais importante que a explícita, porque o socialismo de Estado estava já agonizante e, desde 1978, procurava reconstruir-se na China enquanto capitalismo de Estado no seguimento das reformas promovidas por Deng Xiaoping. O efeito mais directo do fim do socialismo de tipo soviético na esquerda foi o ter desarmado momentaneamente os partidos comunistas, alguns deles há muito já distanciados da experiência soviética. A agenda implícita foi a que verdadeiramente contou; por isso, teve que ocorrer de maneira silenciosa e insidiosa, sem queda de muros.
Na fase que até então tinha caracterizado o capitalismo dominante, a alternativa social ao socialismo de tipo soviético eram os direitos económicos e sociais universais de que beneficiavam sobretudo aqueles que, não tendo privilégios, só tinham o direito e os direitos para se defenderem do despotismo económico e político para que tendia o capitalismo sujeito exclusivamente à logica do mercado. A forma mais avançada desta alternativa tinha sido a social-democracia europeia do pós-guerra, que aliás no seu começo, no início do século XX, também se desdobrara numa agenda explícita (socialismo democrático) e numa agenda implícita (capitalismo com alguma compatibilidade com a democracia e a inclusão social mínima que ela pressupunha). Depois de 1945, rapidamente se mostrou que a agenda implícita era a única agenda. Desde então as esquerdas dividiram-se entre as que continuavam a defender uma solução socialista (mais ou menos distante do modelo soviético) e as que, por mais que se proclamassem socialistas, apenas queriam regular o capitalismo e controlar os seus “excessos”.
Depois de 1989, e tal como acontecera no início do século, a agenda implícita continuou durante algum tempo implícita, apesar de ser já a única em vigor. Foi-se tornando evidente que ambas as esquerdas do período anterior saíram derrotadas. Por isso se assistiu, depois de 1989, à difusão sem precedentes da ideia da crise da social-democracia, muitas vezes articulada com a ideia da impossibilidade ou inviabilidade da social-democracia. A secundá-la, a ortodoxia neoliberal doutrinava sobre o carácter predador ou, pelo menos, ineficiente do Estado e da regulação estatal, sem os quais não era possível garantir a efectividade dos direitos económicos e sociais.
O desarme da esquerda social democrática durante algum tempo foi disfarçado pela nova articulação das formas de dominação que vigoram no mundo desde o século XVII: capitalismo, colonialismo (racismo, monoculturalismo, etc.) e o patriarcado (sexismo, divisão arbitrária entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo, ou seja, entre trabalho pago e trabalho não-pago). As reivindicações sociais orientaram-se para as agendas ditas pós-materiais, os direitos culturais ou de quarta geração. Estas reivindicações eram genuínas e denunciavam modos de opressão e de discriminação repugnantes. Mas o modo como foram orientadas fez crer aos agentes políticos que as mobilizaram (movimentos sociais, ONGs, novos partidos) que as podiam levar a cabo com êxito sem tocar no terceiro eixo da dominação, o capitalismo. Houve mesmo uma negligência do que se foi chamando política de classe (distribuição) em favor das políticas de raça e sexo (reconhecimento). Essa convicção provou-se fatal no momento em que o regime pós-1989 caiu. A dominação capitalista, reforçada pela legitimidade que criou nestes anos, virou-se facilmente contras as conquistas anti-racistas e anti-sexistas na busca incessante de maior acumulação e exploração. E estas, desprovidas da vontade anti-capitalista ou separadas das lutas anti-capitalistas, estão a sentir muitas dificuldades para resistir.
Nestes anos de interregno resulta evidente que a agenda implícita visava dar total prioridade ao princípio do mercado na regulação das sociedades modernas em detrimento do princípio do Estado e da comunidade. No início do século XX o princípio da comunidade fora secundarizado em favor da rivalidade que então se instalou entre os princípios do Estado e do mercado. A relação entre ambos foi sempre muito tensa e contraditória. A social-democracia e os direitos económicos e sociais significaram momentos de trégua nos conflitos mais agudos entre os dois princípios. Esses conflitos não eram resultado de meras oposições teóricas. Resultavam das lutas sociais das classes trabalhadoras que procuravam encontrar no Estado o refúgio mínimo contra as desigualdades e os despotismos gerados pelo princípio de mercado. A partir de 1989, o neoliberalismo encontrou o clima político adequado para impor o princípio do mercado, contrapondo a sua lógica à lógica do princípio do Estado, entretanto colocado à defesa.
A globalização neoliberal, a desregulação, a privatização, os tratados de livre comércio, o papel inflacionado do Banco Mundial e do FMI foram sendo executadas paulatinamente para erodir o princípio do Estado, quer retirando-o da regulação social, quer convertendo esta numa outra forma de regulação mercantil. Para isso, foi necessária uma desvirtuação radical mas silenciosa da democracia. Esta, que no melhor dos casos fora encarregada de gerir as tensões entre o princípio do Estado e o princípio do mercado, passou a ser usada para legitimar a superioridade do princípio do mercado e, no processo, transformar-se ela própria num mercado (corrupção endémica, lobbies, financiamento de partidos, etc.). O objectivo era que o Estado passasse de Estado capitalista-com-contradições a Estado capitalista-sem-contradições. As contradições passariam a ser exteriorizadas para a sociedade, crises sociais a serem resolvidas como questões de polícia e não como questões políticas.
A grande maioria das forças de esquerda aceitaram esta viragem; pouca resistência lhe ofereceram quando não se tornaram cúmplices activas dela, o que aconteceu sobretudo na Europa. Na última fase deste período, alguns países da América Latina protagonizaram uma resistência significativa e tão significativa que não pode ser neutralizada pela monotonia das relações económicas promovidas pelo neoliberalismo global, nem resultou apenas dos erros próprios cometidos pelos governos progressistas. Envolveu a intervenção forte do imperialismo norte-americano, que na primeira década de 2000 tinha aliviado a pressão sobre os países latino-americanos por estar profundamente envolvido no Médio Oriente. Venezuela, Brasil e Argentina são talvez os casos mais emblemáticos desta situação. O imperialismo norte-americano entretanto mudou de rosto e de táctica, em vez de impor ditaduras por via da CIA e forças militares, promove e financia iniciativas de “democracia-amiga-do mercado” através de organizações não-governamentais libertárias e evangélicas e de desenvolvimento local, protestos, na medida do possível pacíficos, mas com slogans ofensivos para as personalidades, os princípios e as políticas de esquerda. Em situações mais tensas, pode financiar acções violentas que depois, com a cumplicidade dos media nacionais e internacionais, são atribuídas aos governos hostis, ou seja, governos hostis aos interesses norte-americanos. Tudo isto tutelado e financiado pela CIA, a embaixada norte-americana no país e o Departamento de Estado dos EUA.
Vivemos, pois, um período de interregno. Não sei se este interregno gera fenómenos mórbidos como o interregno famosamente analisado por Gramsci. Mas tem certamente assumido características profundamente dissonantes entre si. Nos últimos cinco anos, a actividade política em diferentes países e regiões do mundo adquiriu facetas e traduziu-se em manifestações surpreendentes ou desconcertantes. Eis uma selecção possível: o agravamento sem precedentes da desigualdade social; a intensificação da dominação capitalista, colonialista (racismo, xenofobia, islamofobia) e hetero-patriarcal (sexismo) traduzida no que chamo fascismo social em sua diferentes formas (fascismo do apartheid social, fascismo contratual, fascismo territorial, fascismo financeiro, fascismo da insegurança); a reemergência do colonialismo interno na Europa com um país dominante, a Alemanha, a aproveitar-se da crise financeira para transformar os países do sul numa espécie de protetorado informal, particularmente gritante no caso da Grécia; o golpe judiciário-parlamentar contra a Presidente Dilma Rousseff, um golpe continuado com o impedimento da candidatura de Lula da Silva às eleições presidenciais de 2018; a saída unilateral do Reino Unido da União Europeia; a renúncia às armas por parte da guerrilha colombiana e o início conturbado do processo de paz; o colapso ou crise grave do bipartidismo centrista em vários países, da França à Espanha, da Itália à Alemanha; a emergência de partidos de tipo novo a partir de movimentos sociais ou mobilizações anti-política, como o Podemos na Espanha, Cinco Stelle na Itália, AAP na Índia; a constituição de um governo de esquerda em Portugal com base num entendimento sem precedentes entre diferentes partidos de esquerda; a eleição presidencial de homens de negócios bilionários com fraca ou nula experiência política apostados em destruir a protecção social que os Estados têm garantido às classes sociais mais vulneráveis, sejam eles Macri na Argentina ou Trump nos EUA; o ressurgimento da extrema-direita na Europa com o seu tradicional nacionalismo de direita, mas surpreendentemente portadora da agenda das políticas sociais que tinham sido abandonadas pela social-democracia, com a ressalva de agora valerem apenas para “nós” e não para “eles” (imigrantes, refugiados); a infiltração de comportamentos fascizantes em governos democraticamente eleitos, como, por exemplo, na Índia do BJP e do presidente Modi, nas Filipinas de Duterte, nos EUA de Trump, na Polónia de Kaczynski, na Hungria de Orban, na Rússia de Putin, na Turquia de Erdogan, no México de Peña Nieto; a intensificação do terrorismo jihadista que se proclama como islâmico; a maior visibilidade de manifestações de identidade nacional, de povos sem Estado, nacionalismos de direita na Suíça, e na Áustria, nacionalismos com fortes componentes de esquerda na Espanha (Catalunha mas também País Basco, Galiza e Andaluzia) e na Nova Zelândia, e nacionalismos dos povos indígenas das Américas que se recusam a ser encaixados na dicotomia esquerda/direita; o colapso por uma combinação de erros próprios e interferência grave do imperialismo norte-americano de governos progressistas que procuraram combinar desenvolvimento capitalista com a melhoria do nível de vida das classes populares, no Brasil, Argentina e Venezuela; a agressividade sem paralelo na gravidade e na impunidade da ocupação da Palestina pelo Estado colonial de Israel; as profundas transformações internas combinadas com estabilidade (pelo menos aparente) em países que durante muito tempo simbolizaram as mais avançadas conquistas das políticas de esquerda, da China ao Vietname e a Cuba.
O significado histórico deste interregno
Este elenco deixa de fora os problemas sociais, económicos e ecológicos que talvez mais preocupem os democratas em tudo o mundo, tal como não menciona a violência familiar, urbana, rural ou a proliferação das guerras não-declaradas, embargos não declarados, o terrorismo e o terrorismo de Estado que estão a destruir povos inteiros (Palestina, Líbia, Síria, Afeganistão, Iémen) e a convivência pacífica em geral, a transformação do trabalho numa mercadoria como outra qualquer, os apelos ao consumismo, ao individualismo e à competitividade sem limites, ideologias com as quais muitas forças de esquerda têm sido tão complacentes ou aceitam como algo inevitável, o que dá no mesmo.
Neste sentido, este elenco é um elenco de sintomas e não de causas. Mesmo assim, serve-me para mostrar as características histórico-estruturais principais do interregno em que nos encontramos:
Embora o capitalismo seja um sistema globalizado desde o seu início o âmbito e as características internas da globalização têm variado ao longo dos séculos. Para me reportar exclusivamente ao mundo contemporâneo, podemos dizer que desde 1860 o mundo se encontra num processo particularmente acelerado de interdependência global, um processo atravessado por contradições internas, como é próprio do capitalismo, muito desigual e com descontinuidades significativas. O conceito de interregno visa precisamente dar conta dos processos de ruptura e de transição. Os períodos de mais intensa globalização tendem a coincidir com períodos de grande rentabilidade do capital (ligada a grande inovações tecnológicas) e com a hegemonia inequívoca (sobretudo económica mas também política e militar) de um país. A estes períodos têm-se seguido períodos de grande instabilidade política e económica e de crescente rivalidade entre países centrais.
O primeiro período de globalização contemporânea ocorreu entre 1860 e 1914. A Inglaterra foi o país hegemónico e a segunda revolução industrial e o colonialismo foram suas características principais. A ele se seguiu um período de mais acentuada rivalidade entre países centrais de que resultaram duas guerras mundiais em que morreram 78 milhões de pessoas. O segundo período ocorreu entre 1944 e 1971. Os EUA foram o país hegemónico e as suas características principais foram a terceira revolução industrial (informática), a guerra fria e a co-existência de dois modelos de desenvolvimento (o modelos capitalista e o socialista, ambos com várias versões), o fim do colonialismo, uma nova fase de imperialismo e neocolonialismo. Seguiu-se um período de acrescida rivalidade de que resultou o colapso do socialismo soviético e o fim da guerra fria. A partir de 1989 entrámos num terceiro período de globalização cuja crise está a dar azo ao interregno em que nos encontramos. Foi um período de dominação mais multilateral com a União Europeia e a China a disputarem a hegemonia dos EUA conquistada no período anterior. Caracterizou-se pela quarta revolução (a micro electronica e crescentemente, a genética e a robotização) e as suas características mais inovadoras foram, por um lado, submeter pela primeira vez virtualmente todo o mundo ao mesmo modelo de desenvolvimento hegemónico (o capitalismo na sua versão neoliberal) e, por outro, transformar a democracia liberal no único sistema político legítimo e impô-lo em todo o mundo.
A fase de interregno em que nos encontramos está relacionada com a evolução mais recente destas características. Todas as facetas desta fase estão vigentes mas apresentam sinais de grande desestabilização. Uma maior rivalidade entre duas potencias imperiais, os EUA e a China, cada um socorrendo-se de satélites importantes, a UE no caso dos EUA e a Rússia no caso da China; um desequilíbrio cada vez mais evidente entre o poderio militar dos EUA e o seu poder económico com novas ameaças de guerra incluindo a guerra nuclear e uma corrida aos armamentos; a impossibilidade de reverter a globalização dada a profunda interdependência (bem evidente na crise do processo Brexit) combinada com a luta por novas condições de comércio dito livre no caso dos EUA; uma crise de rentabilidade do capital que provoca uma longa depressão (não resolvida depois da crise financeira de 2008 ainda em curso) e que se manifesta de duas formas principais: a degradação dos rendimentos salariais nos países centrais e semi-periféricos, combinada com um ataque global às classes médias (uma realidade que sociologicamente varia muito de país para país) e uma corrida sem precedentes aos chamados recursos naturais com as consequências fatais que cria para as populações camponesas e povos indígenas e para os já precários equilíbrios ecológicos.
Entre as características deste interregno duas são particularmente decisivas para as forças de esquerda e revelam bem a tensão em que se encontram entre a necessidade cada vez mais urgente de se unirem e as dificuldades novas e sem precedentes na satisfação sustentada de tal necessidade. Trata-se duas pulsões contraditórias que vão em sentido contrário e que, em meu entender, só podem ser geridas através de uma cuidada gestão das escalas de tempo. Vejamos:
1-No que respeita à universalização da democracia liberal as forças de esquerda devem partir da seguinte verificação. A democracia liberal nunca teve a capacidade de se defender dos anti-democratas e fascistas com os mais diversos disfarces; mas hoje o que mais surpreende não é essa incapacidade, são antes os processos de incapacitação movidos por uma força transnacional altamente poderosa e intrinsecamente antidemocrática, o neoliberalismo (capitalismo como civilização de mercado, de concentração e de ostentação da riqueza), cada vez mais geminado com o predomínio do capital financeiro global a que tenho chamado o “fascismo financeiro”, e acompanhado por um cortejo impressionante de instituições transnacionais, lobistas e meios de comunicação social. Estes novos (de facto, velhos) inimigos da democracia não a querem substituir pela ditadura. Em vez disso, buscam descaracterizá-la ao ponto de ela se transformar na reprodutora mais dócil e na voz mais legitimadora dos seus interesses.
Esta verificação convoca com urgência a necessidade de as esquerdas se unirem para salvaguardar o único campo político em que hoje admitem lutar pelo poder, o campo democrático.
2- Por sua vez, o ataque generalizado aos rendimentos salariais, às organizações operárias e às formas de concertação social com a consequente transformação das reivindicações sociais numa questão de polícia; a crise ambiental cada vez mais grave e irreversível agravada pela luta desesperada pelo acesso ao petróleo que envolve a destruição de países como o Iraque, a Síria e a Líbia e amanhã talvez o Irão e a Venezuela; o recrudescimento, para muitos e muitas surpreendente, do racismo e do sexismo e hetero-sexismo; todas estas características apontam para uma condição de irreversível contradição entre capitalismo e democracia mesmo a democracia de baixa intensidade que a democracia liberal sempre foi.
Ora sendo certo que as esquerdas estão desde há muito divididas entre as que acreditam na regeneração do capitalismo, de um capitalismo de rosto humano, e as esquerdas que estão convencidas que o capitalismo é intrinsecamente deshumano e por isso irresgatável, não será fácil que imaginar que se unam de forma sustentada. Penso que uma sabedoria pragmática que saiba distinguir entre o curto e o longo prazo mas mantê-los os dois no debate pode ajudar a resolver esta tensão. Este texto está centrado no curto prazo mas procura não perder de vista o médio e o longo prazo.
As forças de esquerda perante o novo interregno
O elenco de fenómenos, na aparência anómalos, que mencionei acima dá conta de que o movimento dominante de erosão da democracia está a ser contrariado por forças sociais de sinal político contrário, ainda que frequentemente baseadas nas mesmas bases sociais de classe. Sob a forma do populismo, novas e velhas forças de direita e de extrema-direita procuram criar refúgios onde podem defender a “sua” democracia e os seus direitos dos apetites de estranhos, sejam eles imigrantes, refugiados ou grupos sociais “inferiores”, assim declarados por via da raça, etnia, sexo, sexualidade ou religião. Não defendem a ditadura; pelo contrário, declaram defender a democracia ao salientar o valor moral da vontade do povo, reservando para si, obviamente, o direito de definir quem faz parte do “povo”. Como a vontade do povo é um imperativo ético que não se discute, a suposta defesa da democracia opera por via de práticas autoritárias e anti-democráticas. É esta a essência do populismo. Falar de populismo de esquerda é um dos mais perniciosos equívocos de alguma teoria política crítica dos últimos anos.
Por sua vez, novas e velhas forças políticas de esquerda propõem-se defender a democracia contra os limites e perversões da democracia representativa, liberal. É sobre elas que me debruço neste texto. Tais forças procuram democratizar a democracia, reforçando-a de modo a poder resistir aos instintos mais agressivos do neoliberalismo e do capital financeiro. Essa defesa tem assumido várias formas em diferentes contextos e regiões do mundo. As principais são as seguintes: emergência de novos partidos de esquerda e por vezes de partidos de tipo novo, com uma relação com a cidadania ou com movimentos populares diferente e mais intensa da que tem sido característica dos velhos partidos de esquerda; rupturas profundas no seio dos velhos partidos de esquerda, quer quanto a programas quer quanto a lideranças; surgimento de movimentos de cidadania ou de grupos sociais excluídos, alguns que perduram outros efémeros, que se colocam fora da lógica da política partidária e, portanto, do marco da democracia liberal; protestos, marchas, greves em defesa de direitos económicos e sociais; adopção de processos de articulação entre a democracia representativa e a democracia participativa no interior dos partidos ou nos campos de gestão política em que intervêm, nomeadamente a nível municipal; reivindicação de revisões constitucionais ou de assembleias constituintes originárias para fortalecer as instituições democráticas e as blindar contra as acções dos seus inimigos; chamamento à necessidade de romper com as divisões do passado e procurar articulações entre as diferentes famílias de esquerda de modo a tornar mais unitária e eficaz a luta contra as forças anti-democráticas.
Deste elenco é fácil concluir que este período de interregno está a provocar um forte questionamento das teorias e práticas de esquerda que vigoraram nos últimos cinquenta anos. O questionamento assume as formas mais diversas mas, apesar disso, é possível identificar alguns traços comuns.
O primeiro é que o horizonte emancipatório deixou de ser o socialismo para ser a democracia, os direitos humanos, a dignidade, o pós-neoliberalismo, o pós-capitalismo um horizonte simultaneamente mais vago e mais diverso. Acontece que, trinta anos depois da queda do Muro de Berlim, este horizonte está tão desacreditado quanto o horizonte socialista. A democracia liberal é hoje em muitos países uma imposição do imperialismo e os direitos humanos são invocados apenas para liquidar governos que resistem ao imperialismo.
Em segundo lugar, o tom das lutas e das reivindicações é, em geral, um tom defensivo, ou seja, no sentido de defender o que se conquistou, por pouco que tenha sido, em vez de lutar por reivindicações mais avançadas na confrontação com a ordem capitalista, colonialista e patriarcal vigente. Em vez das guerras de movimento e das guerras de posição, como Gramsci caracterizou as principais estratégias operárias, dominam guerras de trincheira, de linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas. As forças que não aceitam esta lógica defensiva correm o risco de arcar com a marginalização e a autonomia, que é tanto maior quanto mais circunscrita se apresenta no plano territorial ou social.
Terceiro, porque não foi totalmente proscrita, a democracia obriga a que as forças de esquerda se posicionem no quadro democrático, por mais que o regime democrático esteja desacreditado. Esse posicionamento poderia implicar a recusa em participar no jogo democrático, mas o custo é elevado quer se participe (nenhuma possibilidade de ganhar) quer não se participe (marginalização). Este dilema é particularmente sentido em períodos pré-eleitorais.
Entre as várias estratégias que mencionei acima, a que simultaneamente melhor ilustra as dificuldades em actuar politicamente em contexto defensivo e em transformar tais dificuldades em oportunidade para formular projectos alternativos de luta política são as propostas de articulação ou unidade entre as diferentes forças de esquerda. Acresce que estas propostas estão a ser discutidas em vários países onde em 2018 vão realizar-se eleições. Precisamente os processos eleitorais constituem o máximo teste de viabilidade para este tipo de propostas. Por todas estas razões, passo a centrar-me nelas, começando por mencionar um caso concreto a título de ilustração.
Duas notas prévias. A primeira pode formular-se sob a forma de duas interrogações. São de esquerda todas as forças políticas que se consideram como tal? A resposta a esta pergunta não é fácil uma vez que, para além de certos princípios gerais (identificados nos livros que mencionei na nota 1), a caracterização de uma dada força política depende dos contextos específicos em que opera. Por exemplo, o Partido Democrático norte-americano é considerado de esquerda ou de centro-esquerda nos EUA mas duvido que o seja em qualquer outro outro país. Historicamente um dos mais acesos debates no seio da esquerda tem sido precisamente a definição do que se considera ser a esquerda. A segunda pergunta pode formular-se assim: como distinguir entre forças de esquerda e políticas de esquerda? Em princípio deveria pensar-se que o que faz uma força política ser de esquerda é defender e aplicar políticas de esquerda. Sabemos, no entanto, que a realidade é outra. Por exemplo, considero o partido grego Syriza um partido de esquerda mas com o mesmo grau de convicção penso que as políticas que tem vindo a aplicar na Grécia são de direita. Sendo assim, a segunda interrogação desdobra-se numa terceira: por quanto tempo tempo e com que consistência se pode manter tal incongruência sem que deixe de ser legítimo pensar que a força de esquerda em causa deixou de o ser?
A segundo nota prévia tem a ver com a necessidade de analisar o novo impulso de articulação ou unidade entre as forças de esquerda à luz de outros impulsos do passado. O impulso actual deve ser interpretado como sinalizando a vontade de renovação das forças de esquerda ou o contrário? A verdade é que a renovação da esquerda tem sido sempre pensada, pelo menos desde 1914, a partir da desunião das esquerdas. Por seu lado, a unidade tem sido sempre tentada a partir da sonegação ou mesmo da recusa da renovação da esquerda e a justificação para tal tem estado sempre ligada ao perigo da ditadura. Será que o impulso de articulação ou unidade actual, ainda que motivado pelo perigo iminente do colapso da democracia, pode significar, ao contrário dos anteriores, uma vontade de renovação?
A articulação entre forças de esquerda. O caso português
O governo em funções em Portugal desde o final de 2015 é pioneiro em termos da articulação entre vários partidos de esquerda, um governo do Partido Socialista com apoio parlamentar dos dois partidos de esquerda, Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português. É pouco conhecido internacionalmente, não só porque Portugal é um país pequeno, cujos processos políticos raramente fazem parte da actualidade política internacional, como e sobretudo por representar uma solução política que vai contra os interesses dos dois grandes inimigos globais da democracia que hoje dominam os media — o neoliberalismo e o capital financeiro global —. Convém recapitular. Desde a Revolução de 25 de Abril de 1974, os portugueses votaram frequentemente na sua maioria em partidos de esquerda, mas foram governados por partidos de direita ou pelo Partido Socialista sozinho ou coligado com partidos de direita. Os partidos de direita apresentavam-se a eleições sozinhos ou em coligação enquanto os partidos de esquerda, na lógica de uma longa trajectória histórica, se apresentavam divididos por diferenças aparentemente inultrapassáveis. O mesmo aconteceu em Outubro de 2015. Só que nessa ocasião, num gesto de inovação política que ficará nos anais da democracia europeia, os três partidos de esquerda (Partido Socialista, Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português) resolveram entrar em negociações para buscarem uma articulação de incidência parlamentar que viabilizasse um governo de esquerda liderado por um desses partidos, o que teve mais votos, o Partido Socialista. Com negociações separadas entre este partido e os outros dois, (tais as desconfianças recíprocas de partida), foi possível chegar a acordos de governação que viabilizaram um governo de esquerda sem precedentes na Europa das últimas décadas.
A inovação destes acordos consistiu em várias premissas: 1) os acordos eram limitados e pragmáticos, estavam centrados em menores denominadores comuns com o objectivo de possibilitar uma governação que travasse a continuação das políticas de empobrecimento dos portugueses que os partidos de direita neoliberal tinham vindo a aplicar no país; 2) os partidos mantinham ciosamente a sua identidade programática, as suas bandeiras, e tornavam claro que os acordos não as punham em risco, porque a resposta à conjuntura política não exigia que fossem consideradas, e muito menos abandonadas; 3) o governo deveria ter coerência e, para isso, deveria ser da responsabilidade de um só partido, e o apoio parlamentar garantiria a sua estabilidade; 4) os acordos seriam celebrados de boa-fé e seriam acompanhados e verificados regularmente pelas partes. Os textos dos acordos constituem modelos de contenção política e detalham até ao pormenor os termos acordados. Basicamente, as medidas acordadas tinham dois grandes objectivos políticos: parar o empobrecimento dos portugueses, repondo rendimentos dos trabalhadores e dos pensionistas na base da escala de rendimentos, e travar as privatizações que, como todas as que ocorrem sobre a égide do neoliberalismo e do capital financeiro global, são actos de privataria. Os acordos foram negociados com êxito e o governo tomou posse num ambiente politicamente hostil, por parte do Presidente da República de então, da Comissão Europeia e das agências financeiras, todos fiéis servidores da ortodoxia neoliberal. A pouco e pouco a política executada em cumprimento dos acordos foi dando resultados, para muitos, surpreendentes, e ao fim de algum tempo muitos dos detratores do governo tinham de ser vergar perante os números do crescimento da economia, da descida da taxa de desemprego, da melhoria geral da imagem do país, finalmente ratificada pelas agências de notação de crédito, e com os títulos portugueses a passar do nível lixo para o nível investimento. O significado de tudo isto podia resumir-se no seguinte: realizando políticas opostas às receitas neoliberais obtêm-se os resultados que tais receitas sempre anunciam e nunca conseguem e isso é possível sem aumentar o sofrimento e o empobrecimento dos portugueses. Antes, pelo contrário, reduzindo-os. De uma maneira muito mais directa, o significado desta inovação política é mostrar que o neoliberalismo é uma mentira, e que o seu único e verdadeiro objectivo é acelerar a todo o custo a concentração da riqueza sob a égide do capital financeiro global.
Obviamente, a direita neoliberal nacional e internacional está inconformada e tentará pôr fim a esta solução política, no que tem como aliada, por agora, a direita, que nunca se reviu nos “excessos” do neoliberalismo e quer voltar ao poder. A forma mais benevolente do inconformismo surge agora na forma de um aparente elogio, e que se formula assim: “esta solução política durará toda a presente legislatura”. Para os mais avisados, isto significa estabilidade a prazo, como que dizendo às esquerdas (e aos portugueses que nelas se revêm) “era bom mas acabou-se”. Compete a essas forças e aos portugueses contraporem a este dito o dito: “queremos mais”, e actuarem em conformidade.
Qual o significado mais global desta inovação política? Onze teses para articulações limitadas entre forças políticas de esquerda
Neste domínio, como em muitos outros, não há lugar para cópias mecânicas de soluções. As esquerdas podem e devem aprender com as experiências globais, mas têm de encontrar as soluções que se adequem às suas condições e ao seu contexto. Há, aliás, factores que são únicos e facilitam soluções que noutros contextos são inviáveis ou, pelo menos, muito mais difíceis. Darei exemplos adiante. Com estas cautelas, a experiência portuguesa tem um significado que transcende o país, qualquer que seja o que venha a suceder no futuro. Esse significado pode resumir-se no seguinte.
Primeiro, as articulações entre partidos de esquerda podem ser de vários tipos, nomeadamente, podem resultar de acordos pré-eleitorais ou acordos pós-eleitorais; podem envolver participação no governo ou apenas apoio parlamentar. Sempre que os partidos partem de posições ideológicas muito diferentes, e se não houver outros factores que recomendem o contrário, é preferível optar por acordos pós-eleitorais (porque ocorrem depois de medir pesos relativos) e acordos de incidência parlamentar (porque minimizam os riscos dos parceiros minoritários e permitem que as divergências sejam mais visíveis e disponham de sistemas de alerta conhecidos dos cidadãos).
Segundo, as soluções políticas de risco pressupõem lideranças com visão política e capacidade para negociar. No caso português, todos os líderes envolvidos têm essa característica. Aliás, o Primeiro Ministro tinha tentado pontualmente políticas de articulação de esquerda nos anos em que foi Presidente da Câmara de Lisboa. Mas a mais consistente a articulação entre forças de esquerda foi protagonizada por Jorge Sampaio, também do Partido Socialista, enquanto Presidente da Câmara de Lisboa, e que viria a ser Presidente da República entre 1996 e 2006. E não podemos esquecer que o fundador do Partido Socialista português, o Dr. Mário Soares, na fase final da sua vida política, tinha advogado este tipo de políticas, algo que, por exemplo, é difícil imaginar em Espanha, onde o fundador do PSOE, Felipe Gonzalez, se virou à direita com o passar dos anos e se manifestou sempre contra quaisquer entendimentos à esquerda.
Terceiro, as soluções inovadoras e de risco não podem sair apenas das cabeças dos líderes políticos. É necessário consultar as “bases” do partido e deixar-se mobilizar pelas inquietações e aspirações que manifestam.
Quarto, a articulação entre forças de esquerda só é possível quando é partilhada a vontade de não articular com outras forças, de direita ou centro-direita. Sem uma forte identidade de esquerda, o partido ou força de esquerda em que tal identidade for fraca será sempre um parceiro relutante, disponível para abandonar a coligação. A ideia de centro é hoje particularmente perigosa para a esquerda porque, como espectro político, se tem deslocado para a direita por pressão do neoliberalismo e do capital financeiro. O centro tende a ser centro-direita, mesmo quando afirma ser centro-esquerda. É crucial distinguir entre uma política moderada de esquerda e uma política de centro-esquerda. A primeira pode resultar de um acordo conjuntural entre forças de esquerda, enquanto a segunda é o resultado de articulações com a direita que pressupõem cumplicidades maiores que a descaracterizam como política de esquerda.
Neste domínio, a solução portuguesa oferece-se a uma reflexão mais aprofundada. Embora constitua uma articulação entre forças de esquerda e eu considere que configura uma política moderada de esquerda, a verdade é que contém, por acção ou por omissão, alguns opções que implicam cedências graves aos interesses que normalmente são defendidos pela direita. Por exemplo, no domínio do direito do trabalho e da saúde. Tudo leva a crer que o teste à vontade real em garantir a sustentabilidade da unidade das esquerdas está no que for decidido nestas áreas no futuro próximo.
Quinto, não há articulação ou unidade sem programa e sem sistemas de consulta e de alerta que avaliem regularmente o seu cumprimento. Passar cheques em branco a um qualquer líder político no seio de uma coligação de esquerda é um convite ao desastre.
Sexto, a articulação é tanto mais viável quanto mais partilhado for o diagnóstico de que estamos num período de lutas defensivas, um período em que a democracia, mesmo a de baixa intensidade, corre um sério risco de ser duradouramente sequestrada por forças anti-democráticas e fascizantes. Mesmo que a democracia não colapse totalmente, a actividade política oposicional das forças de esquerda no seu conjunto pode correr sérios riscos de ser fortemente limitada, senão mesmo ilegalizada.
Sétimo, a disputa eleitoral tem de ter mínima credibilidade. Para isso deve assentar num sistema eleitoral que garanta a certeza dos processos eleitorais de modo a que os resultados da disputa eleitoral sejam incertos.
Oitavo, a vontade de convergir nunca pode neutralizar a possibilidade de divergir. Consoante os contextos e as condições, pode ser tão fundamental convergir como divergir. Mesmo durante a vigência das coligações, as diferentes forças de esquerda devem manter canais de divergência construtiva. Quando ela deixar de ser construtiva significará que o fim da coligação está próximo.
Nono, num contexto mediático e comunicacional hostil às políticas de esquerda, num contexto em que as notícias falsas proliferam, as redes sociais podem potenciar a intriga e a desconfiança e os soundbites contam mais que conteúdos e argumentações, é decisivo que haja canais de comunicação constantes e eficazes entre os parceiros da coligação e que prontamente sejam esclarecidos equívocos.
Décimo, nunca esquecer os limites dos acordos, quer para não criar expectativas exageradas, quer para saber avançar para outros acordos ou para romper os existentes quando as condições permitirem políticas mais avançadas. No caso português, os detalhados acordos entre os três partidos revelam bem o carácter defensivo e limitado das políticas acordadas. Na União Europeia as imposições do neoliberalismo global são veiculadas no dia a dia pela Comissão e pelo Banco Central Europeu. A resposta dos partidos de esquerda portugueses deve ser avaliada à luz da violenta resposta destas instituições europeias às políticas iniciais do partido Syriza na Grécia. A solução portuguesa visou criar um espaço de manobra mínimo num contexto que prefigurava uma janela de oportunidade. Recorrendo a uma metáfora, a solução portuguesa permitiu à sociedade portuguesa respirar. Ora respirar não é o mesmo que florescer; é tão-só o mesmo que sobreviver.
Décimo-primeiro, no contexto actual de asfixiante doutrinação neoliberal, a construção e implementação de alternativas, por mais limitadas, têm, quando realizadas com êxito, além do impacto concreto e benéfico na vida dos cidadãos, um efeito simbólico decisivo que consiste em desfazer o mito que os partidos de esquerda-esquerda só servem para protestar e não sabem negociar e muito menos assumir as complexas responsabilidades da governação. Este mito foi alimentado pelas forças conservadoras ao longo de décadas com a cumplicidade dos grandes media e tem hoje a reforçá-lo o poder disciplinar global que o neoliberalismo adquiriu nas últimas décadas.
Alguns cenários incertos para a articulação das forças de esquerda
Em tempos recentes, a questão da articulação entre forças de esquerda tem sido discutida em diferentes países e os contextos em que a discussão tem ocorrido são reveladores dos muitos obstáculos que haveria que ultrapassar para que tal articulação fosse possível ou desejável. Em alguns casos torna-se mesmo claro que tais obstáculos são a curto ou médio prazo intransponíveis. As discussões tendem a ter lugar sobretudo em períodos pré-eleitorais. Não tenho a pretensão de analisar em detalhe tais discussões. Limitar-me-ei a ilustrar os diferentes obstáculos e os bloqueios que os diferentes contextos revelam e, à luz deles, o que teria de mudar para que tal articulação fosse possível e desejável.
Analiso brevemente quatro desses contextos: Brasil, Colômbia, México e Espanha. Nos três primeiros países haverá eleições em 2018. Cada um destes países ilustra um obstáculo específico à construção de coligações que tornem possíveis governos de esquerda com programas de esquerda. Este exercício pode, aliás, ser feito com outros países, quer ele ilustre igualmente estes obstáculos quer ilustre outros obstáculos que, nesse caso, deverão então ser definidos. Se este exercício necessariamente colectivo for feito num número suficiente grande de países em diferentes regiões do mundo, será possível ter uma ideia de conjunto dos obstáculos a ultrapassar e dos caminhos para o fazer. Com essa base seria possível imaginar uma nova internacional das esquerdas. Obviamente que, em muitos países, os debates políticos não se formulam como debates entre esquerda e direita e, noutros, os próprios debates estão proibidos por regimes autoritários. No primeiro caso, poderiam estar interessadas na nova internacional forças políticas que lutam democraticamente contra o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado sem se preocuparem com as etiquetas. Os nomes com que se designam as diferenças são menos importantes que as diferenças em si e os modos como se debatem. No segundo caso, poderiam estar interessadas na nova internacional as forças que clandestinamente lutam pela democracia.
Brasil: a fractura do desgaste da governação e a intervenção do império
O golpe judiciário-parlamentar da destituição da Presidente Rousseff e a operação Lava-Jato, com o apoio activo do imperialismo norte-americano, tiveram por objectivo enfraquecer as forças de esquerda que tinham governado o país nos últimos treze anos, e conseguiram-no. E conseguiram-no com tanto zelo que o Brasil está a recuar a muito antes de 2003, quando teve início a primeira gestão do Presidente Lula da Silva. A caricatura do Brasil real em que o Congresso se transformou com o actual sistema eleitoral e a cada vez mais abusiva judicialização da política fazem com que o sistema político brasileiro tenha entrado em tal desequilíbrio que configura uma situação de bifurcação: os próximos passos podem reestabelecer a normalidade democrática ou, pelo contrário, aprofundar de modo irreversível a vertigem fascizante em que se encontra.
As principais forças de esquerda partidária no Brasil são o PT (Partido dos Trabalhadores), PDT (Partido Democrático Trabalhista), PSB (Partido Socialista Brasileiro), PcdoB ( Partido Comunista do Brasil) e PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). A agressividade com que o governo ilegítimo de Michel Temer tem vindo a desmantelar os ganhos de inclusão social dos últimos treze anos parece indicar que só com o rápido regresso da esquerda ao poder é possível estancar esta vertigem conservadora. Não se pode sequer confiar em que uma força de centro-direita, com alguma consciência social, possa inverter esse processo e resgatar alguns dos ganhos de inclusão social recentes. Tal força ou não existe ou não tem poder político para impor uma tal agenda. Entre muitas outras questões que a conjuntura brasileira suscita neste momento, menciono a que é relevante para análise que me proponho neste texto. É possível a esquerda voltar ao poder Brasil a curto prazo e, se for possível, em que condições é que tal é desejável? Para que a esquerda regresse ao poder, é necessária unidade ou a articulação entre vários partidos de esquerda?
Uma questão prévia à resposta a estas questões é a de saber como vai evoluir o entendimento entre as diferentes forças de direita. Neste domínio, o que distingue o Brasil de outros países analisados neste texto é a divisão entre as diferentes forças de direita. É possível que o seu instinto de poder as leve a um entendimento a curto prazo. De todo o modo, o que se passar com as forças de direita terá certamente um impacto nas forças de esquerda. Para responder às questões da unidade ou articulação entre as diferentes forças de esquerda, o primeiro factor a ter em conta é que a esquerda, através do PT, esteve no poder nos últimos treze anos, algo que não aconteceu em nenhum dos outros países. Não ponho aqui em causa que o PT é um partido de esquerda nem que muitas das políticas que levou a cabo eram políticas de esquerda. Como sabemos, foi um governo de aliança com partidos da direita, nomeadamente com o PMDB a que pertence o actual presidente.
Para o tema que trato são particularmente relevantes os seguintes factores. Primeiro, a governação do PT foi contestada por outros partidos de esquerda, precisamente por ser um governo de alianças com a direita. Segundo, no Brasil é particularmente importante considerar a força de movimentos populares, não filiados em nenhum partido de esquerda. Depois da crise política de 2015, formaram-se duas grandes frentes de movimentos populares, a Frente Brasil Popular e a Frente Povo sem Medo com sensibilidades de esquerda distintas, a primeira mais coincidente com o PT, a segunda mais aberta à ideia de alianças entre diferentes partidos de esquerda. Terceiro, as forças de direita (o governo ilegítimo, os grandes media, a fracção dominante do poder judiciário e o imperialismo norte-americano) estão apostadas em impedir por todos os meios (já vimos que esses meios não têm de ser democráticos) que a esquerda volte ao poder, pelo menos antes que o processo de contra-reforma esteja consolidado. Por exemplo, a reforma da previdência parece um objectivo difícil de atingir, mas isto pode ser uma das ilusões em que os períodos pré-leitorais são férteis.
Para a direita, o maior obstáculo com que se enfrenta esse desígnio é a candidatura do ex-presidente Lula, pois está convencida de que não há outros candidatos de esquerda que possam protagonizar uma candidatura ganhadora. Quarto, as políticas que os governos do PT levaram a cabo entre 2013 e 2016 permitiram criar a ilusão de que eram geradoras de uma grande conciliação nacional numa sociedade atravessada por clivagens profundas de classe, raça e sexo. Isso foi possível porque o contexto internacional permitiu um crescimento económico que fez com que 50 milhões de brasileiros ficassem menos pobres sem que os ricos deixassem de continuar a enriquecer. De facto, nestes anos, a desigualdade social agravou-se. Quando o contexto internacional mudou (a curva descendente do ciclo das commodities), este modelo entrou em crise. O modo como ela foi gerida mostrou tragicamente que não tinha havido conciliação. As classes dominantes e as forças políticas ao seu serviço apenas tinham elevado as suas expectativas de enriquecimento durante o período e tiveram poder suficiente para não as ver frustradas no novo contexto. Num contexto mais adverso para os seus interesses passaram ao enfrentamento mais radical, a situação presente. Isto significa que as políticas que foram a marca da governação PT, sobretudo nos primeiros dez anos, não têm qualquer viabilidade no novo contexto. Aliás, os últimos anos do governo da Presidenta Dilma Rousseff já foram anos pós-Lula. Com ou sem o presidente Lula, se a esquerda voltar ao poder, o governo será caracteristicamente um governo pós-Lula.
Estes são, em meu entender, os principais factores que nos ajudam a contextualizar a eventual desejabilidade de articulação entre forças de esquerda (entre partidos e entre movimentos) e as dificuldades que ela pode enfrentar. Neste momento identificam-se duas posições. A primeira, defendida pela liderança do PT, preconiza a unidade de esquerda sob a hegemonia do PT. A segunda, defendida por outras forças de esquerda e por sectores do PT situados mais à esquerda, a unidade deve assentar em acordo entre diferentes forças de esquerda sem a hegemonia de nenhuma delas. Uma variante desta posição defende que as diferentes forças de esquerda devem num primeiro momento expressar livremente a sua pluralidade e diversidade (medir forças) e pactuar a unidade ou a articulação num segundo momento (segundo turno das eleições presidenciais ou alianças pós-eleitorais no novo Congresso).
A primeira posição conta com um candidato de luxo, Lula da Silva, que não cessa de subir nas sondagens. Mas, em Janeiro de 2018, o futuro político dele é incerto. Por outro lado, esta posição pode, no melhor dos casos, garantir que uma força de esquerda chegue ao poder, mas não pode garantir que, uma vez no poder, prossiga uma política de esquerda, ou seja, uma política que, mesmo moderada, não esteja refém de alianças com a direita que a descaracterizem. Aliás, dada a estranha natureza do sistema partidário brasileiro, pode ser possível que uma fracção centro-direita do PMDB se transfira para o PT e se apresente com o candidato Lula às eleições presidenciais, cativando, por exemplo, a vice-presidência. Neste caso, uma chapa PT aparentemente homogénea conteria uma significativa componente de centro-direita.
A segunda posição tem sido defendida dentro e fora do PT. Dento do PT o mais importante porta-voz desta posição é Tarso Genro que foi um dos melhores ministros do governo da Lula da Silva, foi Governador do Estado do Rio Grando Sul e prefeito de Porto Alegre no período aureo da articulação entre democracia representativa e democracia participativa (o orçamento participativo). Em declarações à imprensa em 14 de janeiro afirma: “Defendo que os demais partidos de esquerda lancem seus candidatos e que Guilherme Boulos e Manuela D’Ávila [candidata do PCdoB] são novos quadros, importantes para a reconfiguração de uma nova frente política no futuro, capaz de hegemonizar um governo de centro-esquerda, de reformismo forte, como está ocorrendo ou tendendo a ocorrer em alguns países. Não se sabe até onde poderá ir a experiência portuguesa, por exemplo, e mesmo qual a sua durabilidade, mas se não ousarmos no sentido de compor uma esquerda plural, criativa e democrática, com um claro programa de transição de uma economia liberal rentista, para uma economia com altas taxas de crescimento e novas formas de inclusão social e produtiva, o futuro da esquerda será cada vez mais incerto e defensivo”. Curiosamente, do meu conhecimento esta é a primeira vez que um lider político importante do Brasil se refere à articulação entre as forças de esquerda em Portugal como um caminho a ter em conta.
Esta segunda posição é, sem dúvida, a mais promissora, tanto mais que permite dar visibilidade ao único líder popular e de esquerda, além de Lula da Silva, que o Brasil conheceu nos últimos quarenta anos. Trata-se de Guilherme Boulos, jovem líder do MTST e da Frente Povo Sem Medo. Dado o desgaste da governação PT nos últimos anos e o golpe institucional que veio bloquear o processo democrático, a segunda posição, ao contrário da primeira, exclui quaisquer alianças com as forças de direita.
Em face disto, parece que as esquerdas brasileiras estão condenadas a articular-se se quiserem chegar ao poder para realizar um programa de esquerda. Para que tal suceda, pode ser necessário que as esquerdas estejam fora do poder mais tempo do que se imagina.
Colômbia: a fractura da luta armada sob a vigilância do império
A Colômbia é outro país latino-americano onde haverá eleições presidenciais em 2018 e onde a questão da articulação entre forças de esquerda se coloca com alguma acuidade. Tal como podia acontecer em Portugal e pode acontecer no Brasil, a falta de unidade pode significar que o país, qualquer que seja o sentido global do voto dos colombianos, venha a ser governado por uma direita neoliberal, hostil ao processo de paz e totalmente subserviente aos interesses continentais do imperialismo norte-americano.
Entre os factores que podem inviabilizar ou condicionar fortemente a articulação entre forças de esquerda distingo dois: o processo de paz e a interferência do imperialismo norte-americano.
O processo de paz. No momento em que escrevo (Janeiro de 2018), o processo de paz está numa perturbadora encruzilhada. Depois de referendado pelo Congresso (com modificações significativas em relação ao que tinha sido acordado em Havana ao fim de cinco anos de negociações), o acordo entre o Governo e as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) começou a ser aplicado ao longo de 2017, e o que se pode dizer deste período é que não há muitas esperanças de que ele seja cumprido. Aliás, a violência paramilitar contra líderes sociais aumentou ao longo do ano e, neste momento, mais trinta ex-guerilheiros ou seus familiares foram assassinados, além de mais de uma centena de líderes sociais. Entretanto, iniciaram-se as negociações de paz entre o Governo e o ELN (Exército de Libertação Nacional da Colômbia).
O Acordo de Havana é um documento notável porque nele se identificam em detalhe as condições para uma paz democrática, ou seja, uma paz assente na eliminação das causas sociais, económicas e políticas que levaram ao conflito armado. O acordo era particularmente detalhado sobre a reforma política e a justiça transicional. Admitia-se que o pós-conflito colombiano surgia num período de crise do neoliberalismo e que só teria alguma viabilidade de se transformar num genuíno processo de paz se, contra a corrente, fosse orientado para consolidar e ampliar a democracia, isto é, conferindo mais intensidade à convivência democrática de baixa intensidade atualmente vigente. Depois da fársica narrativa neoliberal – uma farsa tão trágica para a maioria da população mundial – de que a democracia não tem condições, o pós-conflito só se transformaria num processo de paz se aceitasse discutir criativa e participativamente a questão das condições sociais, económicas e culturais da democracia.
Pode dizer-se que a paz democrática foi o projecto explícito que orientou as negociações. Mas subjacente a ele esteve sempre um projecto implícito que designei por paz neoliberal. Este projecto não pretendia nenhuma reforma política ou económica e apenas visava o desarme das forças de guerrilha para garantir o livre acesso à terra e aos territórios por parte do capitalismo agrário e minerador nacional e estrangeiro. Tudo parece indicar que este projecto implícito era afinal o único projecto para o Governo colombiano. Por sua vez, a direita mais conservadora manifestara-se sempre contra as negociações com a guerrilha, e a sua força ficou demonstrada nos resultados do referendo sobre o acordo da paz. Durante um ano assistimos a uma crescente demonização da guerrilha por parte das forças de direita, em certos sectores do Estado (Fiscalia) e por parte dos principais meios de comunicação. Esta bem orquestrada demonização visou retirar aos ex-guerrilheiros qualquer legitimidade para serem vistos pela sociedade como membros de uma organização política que não foi militarmente derrotada e que, como tal, deve ser bem-vinda na sociedade pela sua decisão de abandonar as armas e seguir a sua luta pelas vias políticas legais.
O imperialismo norte-americano. A Colômbia ocupa uma posição estratégica no continente. Quando analisamos a história do conflito armado na Colômbia, torna-se evidente a interferência constante do imperialismo norte-americano, e sempre no sentido de defender os interesses económicos das suas empresas (pense-se na tristemente célebre United Fruit Company), os interesses geoestratégicos do seu domínio continental e, obviamente, os interesses das oligarquias colombianas suas aliadas, umas mais dóceis que outras.
A Colômbia foi o único país latino-americano a enviar tropas para combater ao lado dos norte-americanos na Guerra da Coreia. Foi a Colômbia quem promoveu a expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA) e, mais recentemente, foi a Colômbia que, na mesma organização, mais acerrimamente defendeu a expulsão da Venezuela. Sob o pretexto da luta contra o narcotráfico, o Plan Colombia, assinado por Bill Clinton em Julho de 2000, transformou a Colômbia no terceiro país do mundo a receber mais ajuda militar dos EUA (depois de Israel e Egipto) e no país com mais ajuda para treino militar directo pelos EUA.
Para os EUA, agora centrados na asfixia do regime bolivariano da Venezuela, é importante que a Colômbia continue a ser um aliado fiável para os seus desígnios no continente. É igualmente importante que as empresas multinacionais norte-americanas tenham finalmente acesso livre aos recursos naturais da Colômbia, um acesso que até agora foi limitado devido ao conflito armado. Para os EUA, o fim do conflito armado é a oportunidade para a Colômbia se entregar finalmente e sem limites ao neoliberalismo. Finalmente, para os EUA, é benéfico que o conflito armado continue, mesmo que sob outras formas, para que as forças armadas colombianas, o agente político mais próximo do império, continuem a ter um papel crucial nos processos políticos internos.
As forças de esquerda e o contexto eleitoral. A esquerda ou centro-esquerda colombiana está fragmentada. As forças de esquerda apresentam os seguintes candidatos: Clara Lopez, Gustavo Petro, Jorge Robledo, Claudia Lopez, talvez uma candidata de centro-esquerda, Sergio Fajardo, um candidato de centro que alguns consideram de centro-esquerda, e dois candidatos de direita, Germán Vargas Lleras, Iván Duque. Humberto de la Calle Lombana, que foi o negociador do processo de paz por parte do governo, tem sido mencionado como possível candidato de esquerda. O novo partido das FARC ainda não se definiu em relação às eleições presidenciais nem propôs um programa que contribuísse para unificar as esquerdas. Atravessa um complexo processo de consolidação interna, próprio da transformação de grupo guerrilheiro em partido político.
Nas actuais condições, corre-se o risco de serem os dois candidatos de direita a disputar a segunda volta das eleições presidenciais. Qualquer dele, no máximo, aceita a paz neoliberal. Ivan Duque, o representante da direita mais reaccionária, ligada ao ex-presidente Alvaro Uribe, será o que mais fielmente servirá os interesses imperiais.
Tradicionalmente, a esquerda colombiana tem estado muito fragmentada. No passado, a grande clivagem foi entre a esquerda reformista (internamente dividida) e a esquerda revolucionária, adepta de mudanças radicais por via da luta armada (também ela dividida entre vários grupos armados). Poderia pensar-se que finalmente surgiu uma oportunidade histórica para a esquerda colombiana se unir, uma vez que esta clivagem desapareceu. Infelizmente, tal não parece ser o caso porque o modo como tem sido implementado o processo de paz mostra que a clivagem afinal continua de uma forma perversa, no estigma social e político com que estão a ser marcados os ex-guerrilheiros. Em vez de serem bem-vindos por terem abandonado as armas, são demonizados por todos os crimes que cometeram, como se os acordos de paz não tivessem ocorrido, como se nenhum crime tivesse sido cometido contra eles e como se eles fossem criminosos comuns. A direita formula esse estigma com o slogan de que os ex-guerrilheiros usurparão o campo democrático para impor o “castro-chavismo”. O pós-conflito está a ser reconceptualizado como conflito por outros meios só aparentemente mais democráticos.
As diferentes forças de esquerda reformistas temem qualquer associação com as FARC, agora partido político. Ao fazerem-no, correm o risco de se colocar no campo da paz neoliberal e, portanto, no campo ideológico da direita. De uma forma ou outra, as forças de esquerda correm o risco de se renderem à lógica dos que clamam contra o “castro-chavismo”. Se interiorizarem a ideia de que têm de “lavar” a imagem da esquerda, de a purificar, mesmo que para isso seja necessário retocá-la com cores de direita, isso será um caminho de desastre. Para fugir ao “inferno venezuelano”, podem cair na mais diluída versão da social-democracia europeia. Se não se unirem, as diferentes forças de esquerda não poderão realizar um programa de esquerda, mesmo que uma delas conquiste o poder. Tal como aconteceu no passado, pode mesmo acabar por aliar-se com forças de direita.
Ao deixar-se armadilhar na opção entre política-como-dantes ou castro-chavismo, as forças de esquerda auto-excluem-se do campo em que seria possível a unidade com base num programa unitário de esquerda. Esse campo incluiria temas como os seguintes: a defesa do processo de paz entendida como paz democrática; a luta contra a enorme desigualdade social e os fascismos sociais que ela cria; a defesa dos processos populares de gestão de terras, de formas de economia solidária, sobretudo nas regiões mais afectadas pelo conflito armado; democratização da democracia, aprofundando-a e ampliando-a; reforma do Estado para o blindar contra a privatização das políticas públicas em consequência da corrupção e do abuso de poder; um distanciamento, mesmo que gradual, em relação aos desígnios do imperialismo. Para tudo isto seria necessário que o curto prazo fosse visto como parte do longo prazo, ou seja, seria necessário um horizonte político e uma visão de país que não se confina aos cálculos eleitorais do momento.
Os candidatos e as candidatas têm vindo a salientar a necessidade de buscar entendimentos e alianças entre as forças de esquerda. Uma das candidatas, Clara Lopez, em comunicação pública de 11 de Janeiro de 2018, identificava os pontos de convergência e de divergência entre as diferentes forças de esquerda e exortava-as a articularem-se e a negociarem uma agenda comum assente nas convergências, com vista a construir “uma grande coligação progressista”. Apresentava um roteiro concreto no caminho da convergência:
“1) Dentro da tradição pluralista das nossas diversas perspectivas políticas e sem abandonar as diferenças que caracterizam os nossos ideários, acordamos em convocar, e maneira conjunta, os nossos concidadãos a voltar a sonhar uma Colômbia em paz, de prosperidade partilhada, livre de corrupção e amiga da natureza.
2) Ao submeter-nos a uma consulta interpartidista no próximo mês de Março, reconhecemos a liberdade de condução da candidatura que triunfe, dentro do programa aprovado por uma convenção do partido ou movimento dessa candidatura, com a participação dos outros sectores da consulta e seus aliados, que conformarão uma coligação que se compromete a governar a Colômbia dentro do total compromisso com as instituições, a paz, a democracia, o respeito da diferença e a transformação social”
E conclui que estaria disposta a aceitar a fórmula de convergência que reunisse mais consenso. Se tal não fosse possível, seria candidata. Aparentemente, numa demonstração que o passado pesa mais que o futuro entre as esquerdas colombianas, haverá três listas de esquerda às próximas eleições legislativas de Março: a lista da FARC, a lista de Gustavo Petro e Clara Lopez, e a lista do Polo Democrático liderada por Jorge Robledo. Avizinha-se a derrota, mais uma vez, e desta vez pode ser fatal para a presença da esquerda no no Congresso. Impacto desta divisão nas eleições presidenciais que se seguirão dois meses depois?
México: a fractura entre a institucionalidade e a extra-institucionlidade
Se há país onde a democracia liberal está desacreditada, esse país é o México. Há muitos outros países em que a democracia é de baixíssima intensidade ou mesmo uma fachada, mas em que isso é amplamente reconhecido. Mas talvez pela sua história revolucionária e por durante décadas ter sido governado por um só partido, o PRI (ou PAN, partido de direita, entre 2000 e 2012), o México é um caso muito específico a este respeito. Combina um exuberante drama democrático, sobretudo em períodos eleitorais, com o reconhecimento público e notório de irregularidades, restrições e exclusões que o distanciam do país real. As críticas às práticas democráticas vigentes são talvez a forma mais genuína de vivência democrática no México. O drama mais democrático é o drama da falta de democracia. As recorrentes fraudes eleitorais, a altíssima criminalidade violenta contra cidadãos inocentes por parte do crime organizado associado a sectores do Estado, o sistema eleitoral excludente, a farsa da soberania nacional em face do servilismo em relação aos EUA, o abandono a que são sujeitos os povos indígenas, e a repressão militar a que são sujeitos sempre que resistem, tudo isto revela uma democracia de baixíssima intensidade. Apesar de tudo isto, as instituições constitucionais funcionam com a normalidade própria de um Estado de excepção normalizado.
Neste quadro, e para me limitar ao tema que aqui me interessa, o da articulação ou unidade entre forças de esquerda, a primeira questão é a de saber se há várias forças de esquerda no México. Faz parte do drama democrático do México que esta questão seja altamente controversa. Sabe-se que há várias forças de direita com vários candidatos presidenciais de direita. Sabe-se também que, tal como acontece noutros países, as forças de direita têm sido capazes de se unir sempre que se sentem ameaçadas por forças que consideram ser de esquerda. Onde estão as forças de esquerda?
Há que fazer uma primeira distinção que, aliás, só alguns aceitam, entre a esquerda institucional e a esquerda extra-institucional. A esquerda institucional são os partidos. Há partidos de esquerda no México? O único partido com presença nacional que se pode considerar de esquerda é o partido Morena, liderado por Andrés Lopez Obrador (conhecido por AMLO), várias vezes candidato à presidência da República e que nas eleições de 2012, tal como nas de 2006, terá sido provavelmente vítima de fraude eleitoral.
Dando alguma credibilidade ao dito que se ouve frequentemente que o México está muito longe de Deus e muito próximo dos EUA, convém saber o que pensa o império a este respeito. E o império não tem dúvidas de que AMLO é o perigoso demagogo de esquerda, líder de um partido socialista que se recusa a ver os benefícios enormes que o neoliberalismo trouxe ao país depois do Tratado de Livre Comércio. Um dos principais porta-vozes do império, o Wall Street Journal, não tem dúvidas a este respeito e, na edição de 8 de Janeiro de 2018, considera pouco convincente a posição política mais moderada que AMLO tem vindo a defender, salientando sobretudo a luta contra a corrupção. Considera chocante que AMLO tenha proposto em Dezembro passado a amnistia para o crime organizado, e conclui duvidando que os eleitores mexicanos acreditem na recente moderação deste “demagogo leftista”.
Concorde-se ou não com o diagnóstico do império, a verdade é que o império teme a eleição de AMLO. Como o império não faz este diagnóstico preocupado com o bem-estar dos mexicanos, mas antes preocupado com a protecção dos seus interesses, e como considero que esses interesses são contrários aos interesses da grande maioria dos mexicanos, isso é suficiente para assumir que AMLO representa uma força de esquerda. Para o argumento que defendo é sobretudo importante saber se ele poderá levar a cabo um programa de esquerda no caso de ser eleito. Tenho vindo a defender que só uma ampla unidade entre forças de esquerda pode garantir tal objectivo. Esta mesma posição tem sido defendida no México, mesmo reconhecendo-se que, tal como acontece noutros países, as forças de esquerda têm tido uma forte tendência para polarizar as suas divergências, as quais muitas vezes expressam mais choques de personalidades do que choques programáticos. Infelizmente, não parece estar no horizonte de AMLO realizar articulações com outras forças de esquerda eventualmente existentes. Pelo contrário, o que se prefigura é, entre outras, uma coligação com um partido conservador, PES (Partido del Encuentro Social), um partido com forte componente religiosa evangélica, militantemente oposto à diversidade sexual, à proteção de minorias sexuais e à descriminalização do aborto. Algumas feministas têm-se insurgido contra a ideia de que os fins justificam os meios e que o importante é ganhar as eleições. Aceitam articulações, mas não a cedência em princípios e conquistas sociais em resultado de duras lutas.
Parece, pois, poder concluir-se que não se afigura possível, por agora pelo menos, uma articulação entre forças de esquerda institucionais no México. Mas, como disse atrás, uma das características mais específicas do drama democrático mexicano é ele não se poder entender sem a distinção entre esquerda institucional e a esquerda extra-institucional. Pelo menos desde 1994, a esquerda institucional mexicana vive assombrada pelo espectro da emergência de uma esquerda insubmissa e insurrecional, uma esquerda que se coloca fora do sistema das instituições democráticas precisamente por não as considerar democráticas. Refiro-me ao movimento zapatista do EZLN e ao seu levantamento em armas em Janeiro daquele ano. O levantamento que foi armado num breve período inicial de doze dias, em breve se transformou num vibrante movimento com forte implantação no sul do México, que progressivamente foi conquistando aderentes em todo o território mexicano e em diferentes países do mundo. Com grande criatividade discursiva, em que brilhou o Sub-comandante Marcos, e com múltiplas iniciativas que foram dando visibilidade crescente ao movimento, os zapatistas têm vindo a defender uma alternativa anti-capitalista, anti-colonialista e anti-patriarcal, assente na auto-organização dos grupos sociais oprimidos, uma organização construída de baixo para cima e governada democraticamente segundo o princípio de “mandar obedecendo” dos povos indígenas das montanhas de Chiapas. Ao longo dos anos, os zapatistas assumiram consistentemente esses princípios e foram surpreendendo o México e o mundo com novas formas de organização comunitária, ancoradas em princípios ancestrais, com iniciativas transformadoras de governo, de economia, de formação e de educação. Nesse processo, as mulheres foram assumindo um protagonismo crescente.
À medida que foi conquistando adeptos, a postura extra-institucional dos zapatistas começou a ser vista pela esquerda institucional como uma ameaça. A sua recusa em apoiar candidatos ou partidos de esquerda nos processos eleitorais foi considerada pela esquerda como uma postura que favorecia a direita. Ao longo dos anos, as relações dos zapatistas com as instituições do Estado mexicano foram complexas e nem sempre de confrontação. Pouco tempo depois de terem abandonado as armas, os zapatistas entraram em negociações com o governo com o objectivo de verem reconhecidas as reivindicações dos povos indígenas. Em Fevereiro de 1996 foram assinados os acordos que ficaram conhecidos por Acuerdos de San Andrés, por terem sido assinados no povoado San Andrés Larrainzar de Chiapas. Tais acordos nunca foram cumpridos e isso passou a constituir para os zapatistas mais uma demonstração da falta de credibilidade das instituições ditas democráticas.
Em tempos recentes, uma nova iniciativa dos zapatistas voltou a surpreender os mexicanos: a decisão de apresentar uma mulher indígena como candidata independente às próximas eleições presidenciais. Trata-se de Marichuy, que fundou e dirige a Calli Tecolhocuateca Tochan, “Casa de los Antepasados”, em Tuxpan, Jalisco. Em 2001 foi uma das mulheres indígenas que, juntamente com a comandante Esther do EZLN, tomou a palavra no Congresso mexicano. Por iniciativa dos zapatistas e do Congresso Nacional Indígena, a proposta foi feita pelo Conselho Indígena de Governo. Em 15 de Outubro de 2017, Marichuy anunciava oficialmente a sua candidatura. Significava isto que a esquerda zapatista abandonara a via extra-institucional e passara a adoptar a institucional? Se isso acontecera, seria a proposta dos zapatistas uma proposta de esquerda que se podia vir a articular ou coligar com outras forças de esquerda?
Estas perguntas faziam sentido na fase inicial da candidatura quando se iniciou o movimento para recolher o numero de assinaturas exigidas pelo Instituto Nacional Eleitoral para a apresentação de candidatos independentes. Tal movimento revelava a seriedade institucional do processo. Os zapatistas chegaram mesmo a ser acusados de se terem rendido ao “eleitoralismo” que tanto tinham criticado. A verdade é que o processo de recolha de assinaturas se iniciou com determinação. Era um esforço gigantesco, já que o número de assinaturas exigido era elevadíssimo, mais de 800.000 assinaturas. Em breve se verificou que as regras e exigências, mesmo que feitas de boa-fé, o que foi questionado, estavam concebidas para um México “oficial”, muito diferente do México “profundo”, onde a documentação e a infraestrutura técnica (de fotocopiadoras a telemóveis) ou não existem ou não são facilmente disponíveis. Deste modo, o processo de recolha de assinaturas transformou-se em mais uma prova do carácter excludente e discriminatório do sistema eleitoral mexicano. Depois dos Acuerdos de San Andrés, esta era a segunda vez que as instituições do Estado mexicano revelavam o seu carácter não confiável, excludente e discriminatório. Também se deve ter em mente que a recolha das assinaturas pode estar a ser afectada por duas razões adicionais. Por um lado, as bases sociais do zapatismo e os seus simpatizantes foram socializadas para se distanciarem totalmente dos processos eleitorais. A recolha de assinaturas implica para eles alguma cedência. Por outro lado, alguns que simpatizam com a causa dos povos indígenas estão interessados em que a posição do candidato de esquerda que apoiam seja fragilizada pela presença de uma candidatura à sua esquerda.
No momento em que escrevo, Marichuy continua a sua campanha, como campanha de denúncia do sistema político e institucional e de sensibilização para as causas dos “condenados da terra”. Aproveitando um contexto político institucional por excelência, o contexto eleitoral, Marichuy vai fazendo a pedagogia dos temas e dos povos que estão excluídos do drama democrático do México. Só por isso, a candidatura de Marichuy não terá sido um fracasso.
De tudo se conclui que, por agora, pelo menos, não são possíveis amplos acordos entre as esquerdas no México. A esquerda institucional vai continuar dividida como antes e a fractura entre a esquerda institucional e a extra-institucional apenas se agrava.
Espanha: a fractura da identidade nacional
Em Espanha a esquerda-esquerda passou em tempos recentes por um momento excepcionalmente auspicioso. No embalo do movimento dos indignados (mais conhecido em Espanha como 15M), aproveitando a insatisfação dos espanhóis com um governo conservador massivamente corrupto (PP, Partido Popular) e a falência de uma alternativa por parte do Partido Socialista (PSOE), ele próprio desgastado por uma governação refém do neoliberalismo, nasceu um novo partido de esquerda, o Podemos. Surgiu como uma fulguração política em 2014 e teve um êxito surpreendente nas primeiras eleições a que concorreu, elegendo cinco deputados no Parlamento Europeu. Para além de ser um novo partido, era um partido de tipo novo, com uma relação orgânica com o movimento social de que emergira (o movimento dos indignados). Era também um partido novo por ser muito jovem toda a sua liderança. Anunciava-se o fim do bipartidismo, que emergiu com a transição para a democracia consagrada na Constituição de 1978, a alternância entre o PP e o PSOE, com o antigo Partido Comunista, mais tarde Izquierda Unida, reduzido a uma existência muito modesta.
Podemos foi a resposta daqueles e daquelas que no movimento dos indignados defendiam que o movimento das ruas e das praças devia prolongar-se no plano institucional, transformando-se em partido. Apesar de adoptar a luta institucional, Podemos apresentou-se como o partido anti-regime da transição com o argumento de que esse regime tinha dado origem a uma elite ou casta política e económica que desde então se expressava politicamente na alternância entre os dois partidos do regime (PP e PSOE), uma alternância sem alternativa. As posições iniciais do partido levaram alguns a pensar, erradamente a meu ver, que se estava perante um novo populismo de esquerda que opunha a casta ao povo. Dizia-se, aliás, que dicotomia esquerda/direita não captava a novidade e a riqueza programática e organizacional do partido, que era necessária uma “nova” maneira de fazer política, oposta à “velha” política. Por se tratar de um partido novo, as bases organizativas do partido eram frágeis, mas essa fragilidade era compensada com o entusiasmo dos militantes e simpatizantes.
Os difíceis caminhos da articulação entre as esquerdas. Nestas condições, não era de esperar qualquer aproximação ou articulação entre as esquerdas, nomeadamente com a Izquierda Unida e o PSOE. Aliás, a grande maioria dos adeptos do Podemos não considerava que o PSOE fosse um partido de esquerda em face das cedências que os sociais democratas tinham feio ao neoliberalismo da UE. Estávamos em período de medir forças e esse processo era particularmente decisivo para o Podemos. As primeiras “medições” não poderiam ser melhores. Nascido em Janeiro de 2014, as sondagens de opinião no final de 2015 mostravam que Podemos era o segundo partido nas intenções de voto dos espanhóis, depois do PP e à frente do PSOE. As primeiras iniciativas de acordo eleitoral entre forças de esquerda vieram da Izquierda Unida, liderada por outro jovem, Alberto Garzón, depois das eleições autonómicas de 2015. Eram os primeiros sinais no sentido de unir as diferentes forças de esquerda com vista a conquistar o poder. Entretanto, Podemos decidiu, por meio de consulta interna, que quaisquer acordos ou coligações com outras forças de esquerda deviam conter o nome Podemos. Assim foram surgindo os primeiros acordos a nível autonómico: “Compromís-Podemos-És el Moment” na Comunidade Valenciana, “Podemos-En Marea-ANOVA-EU” na Galiza e “En Comun Podem” na Catalunha. E a nível nacional surgiu a coligação “Unidos Podemos”, antes das eleições legislativas de Junho de 2016 a que se juntou também o grupo ecologista Equo.
As eleições de 2016 foram o primeiro sinal que o trajecto ascendente de Podemos não era algo irreversível. A campanha de Podemos foi toda orientada para ultrapassar o PSOE como grande partido de oposição. Esse objectivo ficou longe de ser obtido, tendo o PSOE obtido 22% dos votos e o Unidos Podemos apenas 13%. Depois da forte crispação inicial entre Podemos e PSOE, tinha havido algumas conversações entre os dois partidos no sentido de provocar a queda do governo conservador, mas nada foi concretizado. Os resultados das eleições foram também fracos para o PSOE, uma vez que se esperava que capitalizasse no desgaste da governação do PP. Em face disso, as divisões no interior do partido agravaram-se e Pedro Sánchez renunciou ao cargo de secretário geral em Outubro de 2016 depois de ser derrotado num turbulento Comité Federal. Nesse mesmo mês, o PSOE possibilitava, por meio da abstenção, a investidura do novo governo do PP, liderado por Mariano Rajoy. A líder regional Susana Dias, discípula política de Felipe González, voltou a vincar a política centrista do partido e viabilizou por abstenção a investidura do novo governo do PP. Numa demonstração de enorme tenacidade política, Pedro Sánchez aproveitou as alterações estatutárias que previam a eleição directa do secretário-geral em eleições primárias e voltou a conquistar a liderança do partido no 39 Congresso do PSOE em Maio de 2017. As relações entre os dois partidos melhoraram significativamente quando Pedro Sánchez retomou a liderança do partido.
Sob a sempre presente influência do fundador do partido, Felipe González, uma forte corrente dentro do PSOE, recusava como matéria de princípio qualquer aliança com o Podemos e, pelo contrário, defendia o entendimento com os partidos de direita (como Ciudadanos, um partido de direita liberal nascido na Catalunha e hoje presente no conjunto do Estado espanhol com o apoio de alguns sectores importantes dos media e de interesses económicos poderosos), de modo a garantir a continuação do pacto de governação e da política da alternância que vinha desde a Transição. Era a reprodução da política convencional da social democracia europeia construída na Guerra fria e que continuara depois da queda do Muro de Berlim, política a que, como vimos, o Partido Socialista português pôs fim no final de 2015. No entanto, o regresso de Pedro Sánchez revelava que a militância socialista estava dividida a este respeito, alguma por acreditar que sem uma unidade entre as forças de esquerda esta nunca mais voltaria ao poder, outra por pensar que sem uma viragem à esquerda que permitisse recuperar os votos que tinham feito crescer o Podemos o PSOE nunca mais poderia voltar ao poder.
Estavam criadas as condições para se reiniciarem as conversações de confluência entre o PSOE e o Podemos. Da parte do Podemos havia agora uma motivação muito mais intensa para uma articulação com toda a esquerda. Falava-se da solução portuguesa, reconhecia-se que as transições democráticas nos dois países tinham sido diferentes, mas considerava-se que para tentar mudar a política neoliberal europeia era crucial que a Espanha, a quinta maior economia da UE, passasse a ter um governo de esquerda. Pedro Sánchez teve vários encontros com o primeiro-ministro socialista português e consta que discutiram a coligação portuguesa. Da parte de Unidos Podemos havia contactos, quer com o Bloco de Esquerda quer com o Partido Comunista Português.
No novo ciclo de contactos entre o Podemos e o PSOE tratava-se de articular reformas políticas, construir acordos programáticos e, a prazo, promover um governo de esquerda que pusesse fim aos anos neoliberais e corruptos da governação PP. Os sinais facilitadores da confluência estavam dados e vinham de ambos os lados. O PSOE declarava que o Podemos era “um parceiro preferencial” ou que o grande objectivo era “um entendimento de esquerda no país”.
A crise da Catalunha. Estávamos em Junho de 2017. Poucos meses depois, estala a crise da Catalunha, e as divergências entre os dois partidos em relação à Catalunha fizeram colapsar as conversações e objectivo dos acordos de governação. Aliás, o desenrolar da crise mostrou que, apesar de se terem afastado, os dois partidos foram ambos negativamente afectados pelo modo como se posicionaram perante a crise.
Para os que não sabem o que é a crise da Catalunha, eis um breve resumo: A Catalunha tem uma identidade nacional forte e historicamente enraizada, tal como outras regiões de Espanha, nomeadamente, o País Basco, a Galiza; essa identidade foi muito reprimida pela ditadura franquista; depois da transição democrática em 1978 foi reconhecida a identidade catalã e a sua autonomia no âmbito do Estado espanhol; ao longo das últimas décadas, os catalães lutaram pelas vias institucionais para que o estatuto de autonomia fosse ampliado; em 2006 aceitaram o novo Estatuto de Autonomía pactuado com o governo central, mas esse estatuto foi anulado pelo Tribunal Constitucional; desde então, as relações entre Madrid e Barcelona crisparam-se; entretanto, o partido nacionalista e conservador que governara durante muito tempo a Catalunha, politicamente muito próximo do PP, passou a defender a independência como única via para a Catalunha ver reconhecida a sua identidade e vontade de auto-governo; o objectivo da independência passou então a ter dois braços políticos, um braço de direita e um braço de esquerda, sendo que neste último tinham militado republicanos que nunca se tinham reconhecido na monarquia borbónica (antepassados do actual rei), que no século XVIII derrotara os independentistas catalães; a 1 de Outubro o governo catalão realiza um referendo, considerado ilegal pelo Governo central de Madrid, para conhecer a vontade dos catalães a respeito da independência; o Governo central tenta travar a realização do referendo pela via judicial e policial, mas, apesar das intimidações e repressões, o referendo realiza-se e a maioria dos que expressaram ao seu voto votaram a favor da independência; poucos dias depois o Governo da Catalunha declara unilateralmente a independência; o Governo de Madrid reage, acionando o art. 155 da Constituição que declara o estado de emergência na Catalunha; suspende o governo autonómico, manda prender os dirigentes políticos e convoca eleições na Catalunha para 21 de Dezembro com o objectivo de eleger um novo governo; o líder do governo catalão, suspenso pelo Governo central da Madrid, Carles Puigdemont, exila-se na Bélgica e a partir de Bruxelas procura o apoio dos países europeus para a causa catalã, apoio que é recusado; as eleições catalãs têm lugar e os partidos independentistas voltam a ganhar as eleições; tanto o PSOE como o Podemos (que se apresentou a eleições numa coligação de várias forças de esquerda designada Catalunya en Comú) saem derrotados nas eleições e a derrota do Podemos é particularmente preocupante para o partido pelas repercussões que pode ter fora da Catalunha; a coligação que governara antes a Catalunha (constituída por um partido de direita, o maior, e dois partidos de esquerda, um de esquerda moderada e outro de esquerda-esquerda) volta a posicionar-se para governar. No momento em que escrevo (15 de Janeiro), o futuro político da Catalunha é uma complexa incógnita.
Por que razão veio a crise da Catalunha bloquear um acordo entre as esquerdas considerado fundamental para pôr termo à governação conservadora, um objectivo partilhado pela maioria dos espanhóis? Afinal, ambos os partidos se manifestaram contra o referendo unilateralmente decidido pelos catalães e ambos os partidos defenderam a ideia de um Estado plurinacional com vista à constituição eventual de um Estado federal ou confederal; ambos os partidos se manifestaram contra a independência da Catalunha, mas Podemos foi particularmente enfático em que esse objectivo devia ser construído consensualmente com os catalães e não assentar em repressões judiciais e policiais. Defendeu o direito a decidir dos catalães, baseado num referendo pactuado com o conjunto do Estado espanhol.
Mas as divergências entre os dois partidos agravaram-se entretanto. A crise da Catalunha levou o PSOE, ao contrário do Podemos, a recuar na defesa da plurinacionalidade do Estado espanhol. A plurinacionalidade (a Espanha como “nação de nações”) tinha sido reconhecida no 39 Congresso do partido que reelegeu Pedro Sánchez como secretário-geral. Posteriormente, porém, a plurinacionalidade foi eliminada como eixo central da proposta do partido de reforma constitucional. Os dois partidos divergiram fortemente no accionar do artigo 155 da Constituição e na repressão jurídico-judicial em que este se traduziu. O PSOE manifestou-se a favor da declaração do estado de emergência e, de facto, acordou com o PP o accionar do dispositivo constitucional. Na perspectiva do Podemos, com esta decisão, o PSOE voltava a ser um dos partidos do regime contra o qual surgira o Podemos e, por isso, as negociações entre os dois partidos deviam ser suspensas. Da parte do PSOE o afastamento foi correspondente.
As esquerdas e a identidade nacional. Por que é que a crise da Catalunha pode ser particularmente negativa para o Podemos? Se nos restringirmos à Catalunha, os danos não parecem duradouros. A posição da aliança em que se integrava o Podemos era a posição aparentemente moderada do fortalecimento da autonomia pelas vias legais e constitucionais. Mas seria essa a posição das bases catalãs do partido? Estariam todas com o partido quando este afirmava o direito a decidir e ao mesmo tempo insistia que a independência não era uma boa solução, nem para a Catalunha nem para Espanha? Defender o direito a decidir não implicaria o dever de aceitar o que fosse decidido? Porquê insistir tanto na ilegalidade do referendum quando a esmagadora maioria dos catalães defendia o direito incondicional de decidir, ainda que estivessem divididos quase pela metade sobre o objectivo da independência?
Que havia divergências, isso tornou-se evidente quando o dirigente catalão do Podemos se declarou a favor de aceitar o resultado das eleições de Dezembro e, portanto, a independência, e foi prontamente demitido pela direção nacional do partido. De todo o modo, em contextos de forte polarização é normal que os partidos que defendem posições mais moderadas sejam punidos pelos eleitores, mas essa situação não perdura quando a polarização se atenua, o que pode ocorrer se tivermos em mente que o independentismo não teve uma vitória esmagadora, antes pelo contrário, e que tanto o extremo da independência como o extremo do centralismo (o partido conservador Ciudadanos) foram os vencedores das eleições.
Se tivermos em consideração a Espanha no seu conjunto, a razão da vulnerabilidade acrescida do Podemos depois da crise da Catalunha reside em que a identidade nacional na Espanha não é, ao contrário de outros países, uma bandeira inequivocamente de direita. É uma bandeira de muitos dos movimentos de cidadãos e cidadãs de esquerda que se coligaram com o Podemos nas diferentes regiões autonómicas. Para elas, era importante que Podemos distinguisse entre legalidade e legitimidade no caso do referendum dos catalães e estivesse inequivocamente ao lado dos catalães que desafiavam o centralismo conservador de Madrid para exercer o direito mais básico da democracia, o direito de votar. Só assim faria sentido que fosse considerada genuína a oposição do partido à declaração unilateral de independência em resultado do referendo de 1 de Outubro, uma declaração que, no entanto, foi imediatamente suspensa como sinal de oferta de diálogo e solicitação de mediação internacional. Ficou a dúvida nestas bases sobre de que lado estaria Podemos em futuros confrontos de outras regiões com o centralismo de Madrid.
Terá a liderança de Podemos sido insensível à complexidade da questão da identidade nacional em Espanha? As novas lideranças da esquerda-esquerda europeia, não só na Espanha como noutros países, foram treinadas para desconfiar de todos os nacionalismos, uma vez que na Europa eles foram sempre conservadores e estiveram na origem dos maiores crimes. Foram igualmente treinadas para dar toda a prioridade às políticas de classe, ainda que nos períodos mais recentes complementadas com políticas anti-patriarcais e anti-raciais. Acresce que na Catalunha a independência veio a ser empunhada como bandeira por uma direita que durante décadas tinha sido servil ao Governo central e, enquanto Governo autonómico, tinha aplicado com zelo as políticas neoliberais contra os trabalhadores catalães.
Qualquer destas duas vertentes do treino tem de ser reavaliada nos próximos tempos, não só em Espanha como em muitos outros países. Para isso, as esquerdas europeias têm de aprender com o Sul Global. No que respeita ao nacionalismo, este foi nos contextos coloniais extra-europeus um objectivo politicamente muito mais complexo. Foi a bandeira dos povos oprimidos entre os quais havia obviamente diferenças de classe, de etnia e outras. Daí que se tenha distinguido entre o nacionalismo dos fracos ou oprimidos e o nacionalismo dos fortes ou opressores. Mas, mesmo na Europa, essa complexidade existiu historicamente. Com referência à Galiza e às diferentes nações no interior do Estado espanhol, Xosé Manuel Beiras fala de “nacionalismos periféricos”. A Andaluzia foi talvez o primeiro território da Europa a ser tratado como colónia depois da mal chamada Reconquista. As formas coloniais de administração e de concentração de terras foram experimentadas na Andaluzia antes de serem aplicadas no Novo Mundo, como têm insistido os estudiosos andaluzes. Daí, o conceito de colonialismo interno que tanto se pode aplicar em contexto latino-americano como em contexto europeu. As novas lideranças de esquerda europeia nunca puderam aprender nas escolas e nas universidades que a história dos seus países incluía colonialismo interno e que havia vários tipos de nacionalismo tanto no mundo como na própria Europa.
Por outro lado, no que respeita à prioridade da política de classe, haverá que haver no futuro uma profunda reflexão. Tenho defendido que a dominação moderna é constituída desde o século XVI por três modos principais de dominação: o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Desde as suas origens, estes três modos de dominação sempre actuaram articulados até hoje. As épocas e os contextos sociais de cada país distinguem-se pelo modo específico de articulação entre os diferentes modos de dominação que prevalece. O colonialismo não terminou com o fim do colonialismo histórico. Continua hoje sob outras formas, como o colonialismo interno, o racismo, a xenofobia e a islamofobia.
A luta contra a dominação tem igualmente de ser articulada e contemplar as três vertentes, mesmo que as ênfases e as urgências obriguem a dar mais prioridade a uma ou outra. Mas as três têm de estar sempre contempladas pela simples razão que em certos contextos as lutas assumem versões mutantes. Por exemplo, uma reivindicação de classe pode afirmar-se sob a forma de reivindicação de identidade nacional, e vice-versa. Portanto, as forças políticas que têm êxito são as que estão mais atentas a este carácter mutante das lutas sociais. Penso que este terá sido o caso da Catalunha. Em Espanha, as identidades nacionais são transclassistas e não podem ser minimizadas pelas forças de esquerda por esse facto. Estas têm antes de lutar com as contradições para fazer funcionar o transclassismo a favor de uma política progressista que fortaleça as posições e os interesses das classes subalternas, populares. A crise da Catalunha revelou que a “questão nacional” de Espanha só se resolve com uma ruptura democrática com o regime actual, o que pressupõe uma nova Constituição.
O Unidos Podemos está muito a tempo de fazer a reflexão a este respeito e espero que o mesmo ocorra no PSOE. Se ela tiver lugar, voltará a ser possível pensar numa unidade entre as forças de esquerda consistente que inclua partidos e movimentos. Sem ela, as esquerdas espanholas nunca chegarão ao poder com um programa de esquerda, o que é mau para a Espanha e para a Europa.
Coda
As questões tratadas neste texto estão presentes noutros contextos ainda que com outros matizes e outras composições. Entre muitas outras condições que podem afectar a unidade das esquerdas em contextos pré-eleitorais, identifiquei algumas, vinculando-as a países específicos, tomando em conta que todas elas ocorrem num contexto comum, a virulência da governação fascizante neoliberal da direita conservadora que ilustrei com o caso de Portugal. As condições que considerei terem um valor explicativo especial em cada país foram: a fractura do desgaste da governação (Brasil), a fractura da luta armada sob a vigilância do império (Colômbia), a fractura entre a institucionalidade e a extra-institucionlidade (México), a fractura da identidade nacional (Espanha). Tratou-se de identificar condições dominantes bem consciente que para alem delas estariam presentes outras. Por sua vez qualquer destas condições analisadas pode estar presente noutros países e contextos e assumindo configurações diferentes. Por exemplo, a fractura do desgaste da governação pode estar presente na Itália com o desgaste socio-liberal do Partido Democrático que em parte está na origem da emergência e crescimento de um partido anti-sistema a Cinco Stelle de Beppe Grillo. O mesmo se pode dizer da França depois da desastrosa governação do Partido Socialista liderado por François Hollande, uma tentativa tardia de se submeter à ordem neoliberal. Ou do desgaste da longa governação do partido do Congresso na Índia que levou à criação de outro partido identificado como sendo de esquerda, o AAP (partido do homem comum), tendo como lema central a luta contra a corrupção. Esse desgaste acabou por abrir o caminho à conquista do poder pelo BJP, liderado por Modi, um partido conservador fascizante que combina a subserviência ao credo neoliberal com a politização do Hinduismo, transformando-o num instrumento de discriminação contra os muçulmanos. A fractura do desgaste da governação está também certamente presente em vários paíes africanos, sobretudo tendo em mente que têm sido submetidos com particular violência às imposições do neoliberalismo e do capital financeiro. É, por exemplo, o caso ANC na Africa do Sul. O desgaste da governação tem levado ao surgimento de outras forças políticas ao mesmo tempo que se agravam as divisões internas no ANC. Em parte pelas mesmas razões de contexto internacional podemos ainda detectar o efeito do desgaste da governação em países como Moçambique e Angola onde continuam a governar os partidos que lideraram as lutas de libertação contra o colonialismo português.
Por sua vez a fractura da luta armada condiciona as possibilidades de articulação entre as forças de esquerda na Turquia ( a questão curda), na Índia (os naxalitas) e nas Filipinas (as lutas étnicas e muçulmanas). O Sri Lanka foi durante muito tempo um país politicamente condicionado pela luta armada dos Tamil. A fractura da institucionalidade/extra-institucionalidade está presente na Tunisia, na Argentina, no Peru e faz emergir a distinção proposta pelos zapatistas entre izquierda de abajo e izquerda de arriba. Por último, a fractura da identidade nacional surge de formas muitos distintas (discriminação racial, xenofobia, internamento indigno de refugiados, etc) em muitos países da Europa devido à herança colonial criando multiplos obstáculos às articulações entre forças de esquerda. São, por exemplo, os casos da Alemanha, Inglaterra e Holanda. E o mesmo sucede com Bernie Sanders e outras forças de esquerda na sombra do partido democrático norte-americano, e importância relativa que dão à discriminação e a violência policial contra a população afro-americana.
Deve ainda ter-se em mente que por vezes as condições aqui analisadas não afectam apenas as possibilidades de articulação entre forças de esquerda. Provocam divisões no interior da mesma força de esquerda, tornando ainda mais difícil qualquer política de alianças. É o caso do Partido Trabalhista inglês que em tempos recentes sofreu uma forte convulsão interna de que ainda se não recuperou plenamente.
Conclusão
Frequentemente, apelamos para a necessidade de fazer análises concretas de situações concretas, mas a verdade é que raramente concretizamos. As diferentes forças de esquerda devem continuar a afirmar a sua diversidade e a analisar a sociedade com uma visão de médio e longo prazo. O tema abordado neste texto visa responder a um contexto específico, um contexto em que as forças de esquerda têm de ser simultaneamente mais humildes e mais ambiciosas. Têm de ser mais humildes, porque têm de operar num mundo onde o objectivo de construir um sistema globalmente alternativo ao capitalismo, ao colonialismo e ao patriarcado não está na agenda política. Esta ausência cria um vazio que por agora só parece poder ser preenchido por alternativas locais e iniciativas que prefigurem uma sociedade alternativa. Mas têm de ser mais ambiciosas porque, tal como estão as coisas, só as esquerdas podem salvar a humanidade dos efeitos mais destrutivos e do imenso sofrimento humano decorrentes de uma catástrofe social e ambiental, que não parece estar longe.
Essa defesa consiste na defesa da dignidade humana e da dignidade da natureza por via da radicalização da democracia, uma democracia de alta intensidade, necessariamente pós-liberal. Será um processo histórico longo, caracterizado por dois princípios-guia: revolucionar a democracia e democratizar a revolução. Ao ponto a que chegámos no fim da nova (des)ordem neoliberal iniciada em 1989, é necessário começar com pequenos passos. O contexto é de fascismo social e político difuso. Mesmo assim, o processo de radicalização enfrenta duas grandes dificuldades.
A primeira é que tem de começar com a democracia liberal, mas não pode terminar nela. Tem de a levar a sério e envolver-se a fundo nela sem se deixar corromper por ela. Tem de a defender até ao ponto de convencer públicos amplos que a democracia não pode ser defendida se não adoptar mecanismos e ampliar os campos democráticos muito para além dos limites da democracia liberal. As esquerdas sempre se colocaram no avesso da democracia liberal para denunciar os limites, as mentiras e as exclusões ocultas pelo lado direito desta. Hoje sentem-se chamadas a actuar no lado direito da democracia liberal, mas sabem que estarão perdidas no momento em que perderem de vista as realidades do lado avesso.
A segunda dificuldade consiste em que as esquerdas têm de operar simultaneamente no curto e no longo prazo, o que vai contra toda a lógica da democracia liberal, uma lógica que foi demasiado interiorizada por muitas forças de esquerda. A razão porque se afirma com frequência e com alguma verdade que a direita identifica melhor os seus interesses do que a esquerda é porque, ao contrário da esquerda, a direita, tal como o capitalismo, só pode ver e só tem de ver o curto prazo e no curto prazo é sempre mais fácil identificar ganhos e perdas.
No final desta reflexão, talvez seja possível responder a uma intrigante questão: porque é que os partidos de esquerda, que durante décadas foram muito críticos de democracia liberal, são hoje os seus melhores e mais genuínos defensores? E por que o fazem no momento em que a falência da democracia liberal parece evidente? A resposta é esta. O neoliberalismo e o capital financeiro global são inimigos da democracia, seja ela de alta ou de baixa intensidade, e as forças de direita que optarem por seguir os ditames deles terão de optar cada vez mais por políticas anti-democráticas. Na medida em que a direita se consolidar no poder, a democracia será descaracterizada a tal ponto que o novo regime político, ainda sem nome, será uma nova forma de ditadura sob fachada democrática. Ora as esquerdas sempre estiveram na linha da frente da luta contra as ditaduras, e a luta anti-fascista foi o objectivo em que mais facilmente se coligaram. As esquerdas começaram a perceber que a democracia está a ser sequestrada por forças anti-democráticas e que quando isso ocorre o fascismo não está longe, se é que não está já entre nós. Esta sensação de perigo iminente é o que melhor explica a nova vontade de articulação entre as forças de esquerda.
E tal como os inimigos da democracia actuam globalmente, será crucial que as forças de esquerda se articulem não só no plano nacional como também globalmente. O socialismo como democracia sem fim poderia ser o lema de uma nova internacional das esquerdas. De todo o modo, a nova internacional, ao contrário das anteriores, não visaria criar nenhuma organização nem muito menos definir a linha política correcta. Visaria apenas criar um fórum onde as esquerdas de todo o mundo pudessem aprender umas com as outras os tipos de obstáculos que surgem quando se procura articular lutas e juntar forças, em que contextos essa articulação pode ser desejável e quais os resultados quando tal articulação ou unidade não ocorre. Neste sentido, é possível acordar no slogan:
Esquerdas de todo o mundo, uni-vos!
* Publicado originalmente na Revista Crítica Económica e Social.
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