A história da expansão e ocupação de áreas centrais das cidades no Brasil é um conto de horror. As pessoas foram retiradas de suas casas, expulsas para a periferia cada vez mais distante, consideradas estrangeiras em sua própria terra. Pelo menos, na medida do possível, as vidas eram respeitadas. Os habitantes de cortiços e casas em regiões valorizadas eram despejados antes que chegassem “os homens com as ferramentas que o dono mandou derrubar”, como registrou Adoniran Barbosa em Saudosa maloca.
Hoje, as moradias são postas abaixo, a ferro e fogo, sem que seus habitantes sejam retirados. A maneira como essa operação se dá pouco importa. Não é um acaso que depois de dezenas de favelas incendiadas o mesmo destino chegue a um prédio na região central de São Paulo. O fogo que destrói é o mesmo que purifica o terreno, limpando a área para a especulação imobiliária. O que se deve escutar a partir de agora é a defesa da desocupação rápida de outros prédios, para evitar o mesmo destino trágico. As pessoas sem casa precisam ser protegidas de sua própria periculosidade nata.
O incêndio e queda do edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, em São Paulo, com o custo de vidas ainda não medido, é mais um capítulo dessa história. Ele expressa ao mesmo tempo a carência de moradias dignas para as famílias de trabalhadores, a política de exclusão, a incapacidade do Estado em cumprir suas obrigações – da garantia de habitação como direito à responsabilidade pela segurança das edificações –, a derrocada de projetos consistentes de ocupação urbana e a criminalização dos movimentos populares.
Na história da colonização das cidades brasileiras, o BNH se tornou o símbolo desse processo de exclusão programada. Depois de despejados, cabia aos renegados da cidade comprar suas unidades habitacionais (seria muito falar de casa ou lar) em locais cada vez mais distantes, na não-cidade, mesmo que ganhassem o nome de Cidade de Deus. A lógica era claríssima: seus corpos eram uma barreira para a definição higiênica e racista de cidade que se construía com a inspiração da modernidade. Distantes dos olhos, seus problemas passavam a ser caso de polícia. Não por acaso, poucas décadas depois, as chamadas UPPs – intervenções de natureza policialesca – foram vendidas como um projeto social de inclusão. Ficar vivo era lucro.
Há uma tradição que defende que a cidade é um direito. Outra, cada vez mais dominante, afirma que a cidade é uma oportunidade de negócio. O chamado complexo imobiliário-financeiro não é novo nem invenção brasileira. O país entra atrasado nesse consórcio – que transferiu o direito à moradia para a responsabilidade individual – e aprimora seus ganhos a partir de uma estrutura autoritária e de uma ideologia da propriedade privada individual acima de qualquer direito. Sem falar do confortável colchão legal para facilitar toda a sorte de empreendimentos. Não há invenção capitalista selvagem que não se desenvolva melhor com o adubo do patrimonialismo nacional.
É preciso deixar claro que nada vai mudar sem que se altere de forma profunda a estrutura das relações econômicas no país. As frentes imobiliárias, um dos braços mais poderosos do sistema produtivo brasileiro, têm raízes fortemente fincadas na estruturação do Estado nacional. As grandes empresas direcionaram o desenho das cidades, a partir de seus interesses, gerando territórios de lucro e áreas de refugo e exclusão. Enquanto as áreas centrais eram valorizadas com obras de infraestrutura (mais um filão de enriquecimento das empreiteiras), as periferias se tornavam barragem de rejeitos humanos. Tudo em confluência com as forças políticas, em processos que iam da compra de licenças ao financiamento de campanhas, passando pelas fraudes em licitações.
Mesmo os conjuntos habitacionais, com seu patente desprezo com a qualidade e aposta no abandono, se tornaram oportunidades de ganhos que complementavam o desenho do sistema imobiliário brasileiro. As cidades se tornaram canteiros de obras de empreiteiras, tendo como fundo prioritário o dinheiro recolhido do próprio trabalhador. Em conluio com o sistema financeiro, criou-se uma das maiores e mais corruptas indústrias do mundo.
Numa triste contribuição nativa, os fundos de pensão de empresas públicas colocaram a cereja no bolo. Além de desvirtuar a origem de seus recursos, colaboraram para o incentivo ao modelo de construções que hoje domina o mercado nas grandes cidades. Os aluguéis de grandes edifícios, quase sempre atravessados de uma suntuosidade de mau gosto exemplar, têm garantido alta rentabilidade do negócio. Os passos seguintes saem do campo corporativo para invadir a vida de todo mundo. As pessoas são expulsas do centro. A vida é retirada das cidades.
Recentemente, a Copa do Mundo e as Olimpíadas evidenciaram a força do complexo imobiliário-financeiro no aprofundamento da geografia da exclusão. A remoção atendeu ao interesse do mercado, que ganhou antes, durante e depois dos eventos. Os projetos redesenharam as cidades, deixando abertas feridas urbanísticas que até hoje não cicatrizaram nem deixaram o prometido legado.
Até mesmo o Minha Casa Minha Vida, que surge como proposta dos governos petistas para enfrentar o déficit habitacional, sucumbe em parte na lógica de transferência de recursos públicos para o setor privado, pela ausência de uma política fundiária (reforço da gentrificação) e falta de planejamento urbano. Na coalizão centro-popular, com sua urgência de resultados eleitorais, o capital entrou com o lucro e o cidadão com a dívida assumida pela incorporação ao consumo até então inviável. O amplo debate urbanístico acumulado e as ferramentas democráticas emancipatórias ficaram para depois.
A colonização da terra urbana e a política habitacional que se observa hoje em todo o mundo, de acordo com Raquel Rolnik em seu livro A guerra dos lugares, têm sido fundamentais para “expandir as fronteiras do capitalismo financeirizado sobre o território”. No caso brasileiro, é possível acrescentar, além da força da grana, estão presentes o preconceito e o ódio de classes. A política urbana segregacionista em curso no país não é apenas espoliadora, mas anti-humanista.
No entanto, há saídas políticas e técnicas que podem começar a reverter esse quadro, que apontam para novas formas de ocupar as cidades. Sem elas, de pouco adianta rever cenas heroicas de bombeiros em ação ou de doação humanitária de roupas velhas para pessoas às quais se costuma virar o rosto. É o que o fogo no coração de São Paulo ilumina. O mais sombrio das nossas almas caridosas.
Hoje, as moradias são postas abaixo, a ferro e fogo, sem que seus habitantes sejam retirados. A maneira como essa operação se dá pouco importa. Não é um acaso que depois de dezenas de favelas incendiadas o mesmo destino chegue a um prédio na região central de São Paulo. O fogo que destrói é o mesmo que purifica o terreno, limpando a área para a especulação imobiliária. O que se deve escutar a partir de agora é a defesa da desocupação rápida de outros prédios, para evitar o mesmo destino trágico. As pessoas sem casa precisam ser protegidas de sua própria periculosidade nata.
O incêndio e queda do edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, em São Paulo, com o custo de vidas ainda não medido, é mais um capítulo dessa história. Ele expressa ao mesmo tempo a carência de moradias dignas para as famílias de trabalhadores, a política de exclusão, a incapacidade do Estado em cumprir suas obrigações – da garantia de habitação como direito à responsabilidade pela segurança das edificações –, a derrocada de projetos consistentes de ocupação urbana e a criminalização dos movimentos populares.
Na história da colonização das cidades brasileiras, o BNH se tornou o símbolo desse processo de exclusão programada. Depois de despejados, cabia aos renegados da cidade comprar suas unidades habitacionais (seria muito falar de casa ou lar) em locais cada vez mais distantes, na não-cidade, mesmo que ganhassem o nome de Cidade de Deus. A lógica era claríssima: seus corpos eram uma barreira para a definição higiênica e racista de cidade que se construía com a inspiração da modernidade. Distantes dos olhos, seus problemas passavam a ser caso de polícia. Não por acaso, poucas décadas depois, as chamadas UPPs – intervenções de natureza policialesca – foram vendidas como um projeto social de inclusão. Ficar vivo era lucro.
Há uma tradição que defende que a cidade é um direito. Outra, cada vez mais dominante, afirma que a cidade é uma oportunidade de negócio. O chamado complexo imobiliário-financeiro não é novo nem invenção brasileira. O país entra atrasado nesse consórcio – que transferiu o direito à moradia para a responsabilidade individual – e aprimora seus ganhos a partir de uma estrutura autoritária e de uma ideologia da propriedade privada individual acima de qualquer direito. Sem falar do confortável colchão legal para facilitar toda a sorte de empreendimentos. Não há invenção capitalista selvagem que não se desenvolva melhor com o adubo do patrimonialismo nacional.
É preciso deixar claro que nada vai mudar sem que se altere de forma profunda a estrutura das relações econômicas no país. As frentes imobiliárias, um dos braços mais poderosos do sistema produtivo brasileiro, têm raízes fortemente fincadas na estruturação do Estado nacional. As grandes empresas direcionaram o desenho das cidades, a partir de seus interesses, gerando territórios de lucro e áreas de refugo e exclusão. Enquanto as áreas centrais eram valorizadas com obras de infraestrutura (mais um filão de enriquecimento das empreiteiras), as periferias se tornavam barragem de rejeitos humanos. Tudo em confluência com as forças políticas, em processos que iam da compra de licenças ao financiamento de campanhas, passando pelas fraudes em licitações.
Mesmo os conjuntos habitacionais, com seu patente desprezo com a qualidade e aposta no abandono, se tornaram oportunidades de ganhos que complementavam o desenho do sistema imobiliário brasileiro. As cidades se tornaram canteiros de obras de empreiteiras, tendo como fundo prioritário o dinheiro recolhido do próprio trabalhador. Em conluio com o sistema financeiro, criou-se uma das maiores e mais corruptas indústrias do mundo.
Numa triste contribuição nativa, os fundos de pensão de empresas públicas colocaram a cereja no bolo. Além de desvirtuar a origem de seus recursos, colaboraram para o incentivo ao modelo de construções que hoje domina o mercado nas grandes cidades. Os aluguéis de grandes edifícios, quase sempre atravessados de uma suntuosidade de mau gosto exemplar, têm garantido alta rentabilidade do negócio. Os passos seguintes saem do campo corporativo para invadir a vida de todo mundo. As pessoas são expulsas do centro. A vida é retirada das cidades.
Recentemente, a Copa do Mundo e as Olimpíadas evidenciaram a força do complexo imobiliário-financeiro no aprofundamento da geografia da exclusão. A remoção atendeu ao interesse do mercado, que ganhou antes, durante e depois dos eventos. Os projetos redesenharam as cidades, deixando abertas feridas urbanísticas que até hoje não cicatrizaram nem deixaram o prometido legado.
Até mesmo o Minha Casa Minha Vida, que surge como proposta dos governos petistas para enfrentar o déficit habitacional, sucumbe em parte na lógica de transferência de recursos públicos para o setor privado, pela ausência de uma política fundiária (reforço da gentrificação) e falta de planejamento urbano. Na coalizão centro-popular, com sua urgência de resultados eleitorais, o capital entrou com o lucro e o cidadão com a dívida assumida pela incorporação ao consumo até então inviável. O amplo debate urbanístico acumulado e as ferramentas democráticas emancipatórias ficaram para depois.
A colonização da terra urbana e a política habitacional que se observa hoje em todo o mundo, de acordo com Raquel Rolnik em seu livro A guerra dos lugares, têm sido fundamentais para “expandir as fronteiras do capitalismo financeirizado sobre o território”. No caso brasileiro, é possível acrescentar, além da força da grana, estão presentes o preconceito e o ódio de classes. A política urbana segregacionista em curso no país não é apenas espoliadora, mas anti-humanista.
No entanto, há saídas políticas e técnicas que podem começar a reverter esse quadro, que apontam para novas formas de ocupar as cidades. Sem elas, de pouco adianta rever cenas heroicas de bombeiros em ação ou de doação humanitária de roupas velhas para pessoas às quais se costuma virar o rosto. É o que o fogo no coração de São Paulo ilumina. O mais sombrio das nossas almas caridosas.
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