Reproduzo entrevista concedida ao blog de José Dirceu:
A opinião é de Murilo César Oliveira Ramos, professor de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) para quem a regulamentação da mídia é fundamental enquanto garantia de responsabilidade social do setor de comunicação, bem como de sua adaptação aos novos tempos e às novas tecnologias. Nesta entrevista, Murilo Ramos considera o começo do governo, o momento ideal para esta regulamentação.
Conselheiro da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), Murilo Ramos analisa o papel da TV Brasil, da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e seus desdobramentos. Traça também um quadro comparativo entre a mídia internacional e a brasileira e dá seu recado a todos os que batem na tecla de comparar regulamentação com censura: “fujam da mera retórica e encarem o debate democrático como se faz em qualquer outro país democrático do mundo”
Na sua visão e com sua experiência, a regulamentação da mídia é necessária hoje no Brasil?
É como a regulamentação de qualquer outro setor econômico. Claro que a imprensa tem suas particularidades, ela é portadora de responsabilidades, tais como a liberdade de expressão. Mas, é importante ressaltar que regulamentá-la é como regulamentar qualquer outro setor da atividade social, política, econômica e cultural do nosso país.
Em 1988, a Assembléia Nacional Constituinte inovou com um capítulo sobre a comunicação. Nossa Constituição é uma das únicas que tem um capítulo inteiro voltado para questões ligadas aos meios de comunicações, porém, algumas questões específicas deste capítulo jamais foram regulamentadas. Fora o fato dele ter sido o mais polêmico da Constituinte. Na realidade, houve um arranjo bem montado sob a liderança do Artur da Távola (um dos fundadores do PSDB e deputado constituinte) que introduziu aquele texto na Constituição. Claro que ele tem problemas, mas na época representou um avanço. A questão é que ele precisava ser regulamentado para que pudéssemos atualizar o ordenamento jurídico da mídia e da comunicação no Brasil, porque a lei que nos ordenava era e é a Lei 4.117, o Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962.
Para piorar, no governo Fernando Henrique, quando eles assumiram a proposta de flexibilização do Sistema Telebrás, que depois se tornou um processo de privatização, entraram com uma emenda constitucional para mudar o artigo 21. O objetivo era permitir ao capital privado acesso até de 100% do controle das empresas – as antigas telefônicas. Em outros termos, privatizar o setor de telecom. O resultado foi que a emenda entrou de um jeito no Congresso e saiu de outro. Ao sair, contrariamente às expectativas do Sérgio Motta (Ministro das Comunicações do governo FHC) e do próprio Fernando Henrique, ambos formuladores daquela política – houve a separação dos setores de telecomunicação e de radiodifusão. Com essa mudança no artigo, o setor de mídia, particularmente o de radiodifusão (a mídia eletrônica), ficou de fora da regulação. Conclusão: a nova lei foi a lei geral de telecomunicações, aprovada em 1997 e seu órgão regulador.
Na verdade, isso aconteceu por conta do lobby da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) que sempre lutou contra o ordenamento jurídico sob o lema “vamos deixar como está”. Lutou, sobretudo, contra a submissão a um organismo autônomo de regulação. Esta é uma situação única no mundo. Há um argumento técnico: “o Ministério [das Comunicações] nos regula”. Ora, o Ministério sempre foi um lugar de conforto deste setor. Espero sinceramente que deixe de ser.
Então, o que sobrou na Lei 4.117 de radiodifusão é um absurdo. Aliás, ela foi elaborada em 1962, em um tempo que não havia nem rádio FM no pais. Daí essa necessidade urgente de fazer esta regulação.
Em comparação com os demais países, a imprensa brasileira cumpre seus deveres, respeita os direitos de cidadania? Por que a Constituição coloca no mesmo nível a liberdade de expressão e a proibição da censura, mas os direitos de imagem e resposta e crimes contra a honra, na prática, caducaram?
No caso da imprensa, para comparar com os demais países, precisamos dividi-la entre a impressa e a eletrônica (televisão e rádio). Comparando a nossa com a dos demais países democráticos, podemos afirmar que temos uma imprensa sofisticada, profissionalmente competente e tecnicamente muito qualificada. Além disso, é um setor econômico importante. Embora a mídia impressa tenha problemas hoje, sabemos que é uma fase de adaptação diante de uma conjuntura de tecnologia que será ajustada em algum momento.
O nosso problema gira em torno da falta daquilo que nos EUA durante a década de 60, gerou uma teoria: responsabilidade social. Proposta pela centro-esquerda americana, a teoria da responsabilidade social na comunicação surgiu naquele momento, de lutas muito fortes, quando eles perceberam movimentos econômicos de concentração, redução de vozes, falta de diversidade e uma necessidade de estabelecer determinados processos capazes de resguardar direitos individuais e civis. Foi naquele período que isso começou a ser criado e hoje há até conselhos de comunicação em alguns Estados progressistas dos EUA. Inclusive, conselhos até para a mídia impressa.
Já quanto à regulação da mídia eletrônica nos Estados Unidos, eu não preciso dizer nada. A Federal Radio Commission (FRC), órgão regulador para o rádio foi criada em 1927. E em 1934, quando começaram a convergir as mídia nos EUA, a FRC transformou-se na Federal Communication Commission (FCC). A FCC é paradigmática, um órgão regulador convergente que reúne telecomunicações, telefonia, rádios, televisão e, repito, é de 1934. Já quanto à lei de Comunicação dos EUA, ela só foi modificada em 1996. E veja que o controle é forte. Temos inclusive o caso clássico de regulação moral que custou uma multa pesadíssima à CBS quando a cantora Janet Jackson mostrou um dos seios na final do campeonato de futebol americano. A CBS foi à justiça e perdeu. Portanto, se a primeira emenda [da Constituição] faz com que eles não tenham Lei de Imprensa, a justiça dos EUA, em todas as instâncias, está claramente preparada para lidar com esta questão. Eles têm uma jurisprudência enorme sobre casos de abusos da imprensa de resguardo da imagem, de privacidade. Há, inclusive, departamentos acadêmicos especializados apenas no estudo de press regulation (regulação da imprensa) nos EUA.
O que falta no Brasil, no que diz respeito à responsabilidade, são processos regulatórios.
Neste sentido, quais os entraves a se combater e os avanços necessários?
O principal avanço – que já se trata de uma dívida dos poderes públicos - é regulamentar o capítulo da comunicação social [da Constituição], atualizar o arcabouço normativo e fazer a lei geral. Há várias versões desta lei. Eu conheço pelo menos seis. Essa é a grande dívida. O primeiro passo, portanto, é fazer a lei e atualizar o quadro normativo. Uma lei que tanto pode ser específica para a radiodifusão (mídia eletrônica) e novas mídias, quanto ser uma lei convergente e, com o tempo, com o aparato regulatório, incluir a Lei Geral de Telecomunicações de 1997. Aliás, esta também precisa ser atualizada. Ela foi feita para o telefone fixo e o avanço tecnológico mudou esse quadro completamente. Então, precisamos de uma lei para a radiodifusão ou uma lei convergente, não importa. O fundamental é a atualização do marco regulatório.
Como você vê as iniciativas recentes em torno da democratização da informação como a TV Brasil, a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), o seminário de convergência das mídias?
São passos extremamente importantes, sobretudo, a criação da TV Brasil enquanto televisão pública. A Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) como empresa pública (radio, agência e TV Brasil) ainda está em busca de uma identidade e isso realmente demora um tempo. O fato é que a TV pública era uma demanda histórica dos movimentos de redemocratização da comunicação. A TV Brasil era uma iniciativa setorial. Foi fundamental ter fundido as estruturas da TVE do Rio com a Radiobrás e criado o embrião de algo que hoje já é uma realidade palpável. Foi um passo extremamente importante e meritório.
Já a Confecom foi um avanço enorme, porque finalmente a área da comunicação fez a sua conferência. Era uma demanda de três a quatro décadas. E a fez com todas as dificuldades, inclusive, com a saída de alguns órgãos importantes. Agora, tenho certeza que muitos se arrependeram por ter pulado fora. Eu transito tanto na universidade quanto no meio empresarial, e afirmo que aqueles que ficaram estão muito satisfeitos. Como, por exemplo, as teles e a Associação Brasileira de Radiodifusores (ABRA) da Rede TV! e Bandeirantes.
Na realidade, eles tiveram um ganho democrático porque entenderam a lógica da Conferência e circularam naquele Centro de Convenções ao lado de 1.800 delegados de movimentos sociais os mais diversificados. Circularam em meio a diferentes parâmetros, diferentes discursos, retóricas complicadas, com a radiodifusão comunitária dura como sempre batendo. Um aprendizado sem dúvidas e um avanço importante, com desdobramentos.
Um destes foi o Seminário da Convergência das Mídias [no final do governo Lula]. Ele foi uma decorrência direta da Confecomm e complementou o grupo de trabalho interministerial. Aliás, ele foi fundamental menos por razões técnicas, e mais para levar o empresariado para ver a BBC, a FCC, a CNT espanhola, a OfCom e tantas outras agências. E ouvir a UNESCO, por exemplo. Então, essa finalidade política foi muito bem sucedida porque mostrou a todos o que o mundo inteiro faz. Lemos, inclusive, à época, comentários da nossa imprensa dizendo que havia muito órgão regulador no Brasil, o que é simplesmente risível. Qualquer pessoa minimamente bem informada sobre isso dá uma resposta na hora. O Offcom inglês, por exemplo, estabelece padrões de qualidade na programação e tem um departamento para receber queixas. É patético, portanto, discutir isso e ouvir o pessoal da radiodifusão usar uma argumentação pueril.
Como você avalia os Conselhos Estaduais de Comunicação?
São uma demanda da sociedade que já vem de muitos anos. Eu participei de um grupo que atuou na área de comunicação quando da elaboração da Lei Orgânica dos municípios. Nela está prevista a possibilidade de criação de um conselho de comunicação social. Isso nunca chegou a ser implantado e não há nada de errado nestes conselhos. Os Estados têm todo direito de estabelecê-los. Claro que dentro do que determina a Constituição, os poderes da União, para regulamentar o setor de comunicação. Eles têm limitações. Alguns possivelmente foram além do que deveria, mas isso é um processo, porque vai para a Assembléia Legislativa e será discutido etc. Agora, querer negar o Conselho é um absurdo. Eles fazem parte de um sistema e estão legalmente previstos.
A título de exemplo, na Espanha, cada comunidade autônoma tem seu conselho audiovisual. O mais forte deles é o da Catalunha. Além de ter o órgão regulador que na Espanha são dois. Então, há modelos claros para isso. A gritaria contra da mídia faz parte da velha tática de desqualificar o "indesqualificável".
Na sua avaliação a regulamentação levará tempo? Temos condições políticas para fazê-la?
Ou se faz no começo [de um novo governo], ou não se faz. Se você tem um projeto nessa área, você tem que implantá-lo no início do governo. No caso do governo FHC, o projeto incluía a radiodifusão e eles perderam com a Lei de Telecomunicações de 1997. Tanto que o Sérgio [Motta] morreu tentando resgatar o projeto de criar uma agência reguladora. Isso é dado histórico. Tinha até nome - Agência Nacional de Comunicações (Anacom). Ele pretendia voltar à questão, fazer uma nova lei e fundir o órgão regulador – criar a Anatel das telecomunicações.
Agora, eu vejo o governo Dilma Rousseff assumindo o processo da Confecom, o grupo interministerial, a possibilidade real de um projeto de Lei. Vejo que, apesar das dificultades - e estas serão cada vez maiores conforme o tempo passar - o governo tem maioria no Congresso. Por isso afirmo, nós temos que fazer logo.
Em relação à mídia latinoamericana, como você vê a situação da Argentina e da Venezuela?
Há tem um déficit normativo na América Latina, nosso, da Argentina, Venezuela etc, enfim, todos os países o têm. Até porque nosso modelo de rádio e TV, principalmente, foi inspirado no dos EUA, onde há uma hegemonia do sistema comercial sobre o [sistema] público que é sempre marginal. A Venezuela saiu na frente pelas circunstâncias políticas e fez sua lei de responsabilidade social da mídia. Teve claros avanços na mídia pública. No meu ponto de vista, com déficit para a radiodifusão comunitária e seu controle. Tem um certo exagero contra determinadas empresas. Mas não dá pra dizer que não houve um avanço na Venezuela neste setor.
Já a Argentina tem uma particularidade porque havia uma demanda da sociedade, mas foi a disputa entre governo e o grupo Clarin que ajudou nesta questão. A ruptura fez com que o governo argentino rapidamente se mobilizasse e fizesse a lei de comunicação. O que foi ótimo. E o mais curioso é que no Brasil nós sempre fomos mais sofisticados do ponto de vista do movimento social em termos de democratização da informação. Nós temos experiências fortes, porém, os argentinos pularam na nossa frente e fizeram sua lei. A legislação argentina promoveu uma requalificação da mídia pública e uma política de espectro mais democrática.
Mas, sempre é bom lembrar que nem os EUA, nem a Venezuela, nem a Argentina são modelos para nós em termos de comunicação. Nós temos que criar, a partir das nossas condições, o nosso próprio modelo e a nossa legislação.
Agora, em relação à mídia internacional e a brasileira, em quais aspectos elas são semelhantes e em quais se distanciam?
Há diferenças e pontos em comum. Quando eu viajo, gosto de ler os jornais dos outros países sobretudo porque eles falam da própria mídia. Aqui no Brasil, essa interdição da própria pauta é um problema sérissimo. Você pega o El Pais (Espanha), o New York Times (EUA), The Gardian (Inglaterra) e encontra lá páginas e mais páginas sobre o negócio da comunicação, as crises, os problemas, as dificuldades, discussão sobre a programação... E é isso que aproxima esses jornais do seu público. E isso não só em editorial, mas a questão da comunicação é notícia. Lá, está no noticiário normal. Aqui no Brasil isso não existe.
Já do ponto de vista do jornalismo praticado há uma qualificação muito grande nos outros países. Apesar de serem realidades políticas mais estáveis, com menos desigualdade, é inimaginável pensar numa democracia avançada hoje tendo uma mídia que se partidariza como a brasileira. Essa é a diferença capital que mostra, do ponto de vista das empresas de comunicação, sua imaturidade política. Lá, ao se partidarizar, ela assume. Esta é uma diferença muito grande.
Assume e o outro jornal comenta quando sai uma notícia que aquele jornal apóia o partido conservador etc. O próprio jornal esclarece isso para o leitor.
São jornais de muita qualidade, pelo menos os principais. Aqui nós não temos uma mídia impressa com essa qualidade informativa. Os nossos jornais são bons tecnicamente e tal, mas editorialmente são erráticos. E nem estou falando das revistas. The Times, The Economist, Newsweek. Ao ler uma revista semanal brasileira, eu não sei se estou lendo Caras ou uma revista de Saúde. É um negócio de louco. Eles acharam um modelo, mas que não tem nada a ver com o jornalismo no sentido de formação da cidadania, informação, opinião pública.
A Veja nem dá para comentar. A Época é de uma fragilidade... Poderia mencionar a Carta Capital, uma revista semanal de qualidade, mas muito voltada para um certo público. Eu me refiro mais àquela revista de informação geral. Todos nós já lemos uma revista melhor do que estas que estão aí. Eu acho que tudo isso é uma subestimação da capacidade de formação política e de entendimento das coisas por parte do leitor brasileiro. É escolher a via mais fácil. Nivelar por baixo mesmo.
Aos que ainda afirmam que regulamentação é censura, o que você diria?
Eu diria para eles primeiramente: modernizem-se, atualizem-se, ajam com maturidade política. Fujam da mera retórica e encarem o debate como se faz em qualquer outro país democrático do mundo. Isso eu gostaria de dizer e sempre que posso, digo.
Segundo, o grande problema dos que são contra as mudanças é o receio de perder o controle. Mas a transição técnica que estamos vivendo hoje está mexendo em todos os modelos de negócios. Quem garante que a TV aberta generalista vai sobreviver com alta definição só abrindo break publicitário? Há uma crise latente, como a crise dos jornais. Neste sentido, a norma é fundamental para segurar a estabilidade do negócio. Até para atrair parceiro estrangeiro no caso da radiodifusão porque ele vai querer estabilidade legal. A não ser que tenha uma razão muito específica, um conjunto de investidores internacionais não vai entrar em uma empresa de mídia brasileira de TV aberta por exemplo. Ele vai olhar o quadro normativo e dizer “isso não dá segurança jurídica, é muito instável”. Então, para a própria saúde do negócio, a norma é importante. E eles sabem que é, mas não querem perder o controle.
A saudade do passado, de pegar lá o secretário geral e a norma sair de acordo com o interesse deles, customizada, é grande. Mas isso não vale hoje. Enfrentar uma discussão na sociedade, no Congresso, mais democrática é absolutamente necessário. A CONFECOM é uma amostra disso. Na hora que você apara os arroubos da Conferência, percebe que saíram de lá soluções muito boas.
E quanto aos avanços da tecnologia, por exemplo, a Internet?
A internet é um ambiente ainda não muito claro. Nem no mundo acadêmico, nem no mundo dos negócios, alguém consegue saber para onde ela vai e até que ponto vai modificar ainda mais a comunicação. O que é o Google? Era um instrumento de busca, hoje é de produção de notícias. E toda a discussão das redes sociais? Os 700 milhões de filiados ao Facebook que estão sendo apropriados hoje comercialmente? Aliás, aquele espírito hippie da internet não existe mais. Todas as grandes empresas tem seus departamentos de novas mídias voltados para entrar nesse ambiente e usá-lo para fazer o target perfeito da colocação de seu produto no mercado.
Portanto, dizer “eu sei o que vai acontecer” é mentira. Ninguém sabe.
A opinião é de Murilo César Oliveira Ramos, professor de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) para quem a regulamentação da mídia é fundamental enquanto garantia de responsabilidade social do setor de comunicação, bem como de sua adaptação aos novos tempos e às novas tecnologias. Nesta entrevista, Murilo Ramos considera o começo do governo, o momento ideal para esta regulamentação.
Conselheiro da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), Murilo Ramos analisa o papel da TV Brasil, da Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e seus desdobramentos. Traça também um quadro comparativo entre a mídia internacional e a brasileira e dá seu recado a todos os que batem na tecla de comparar regulamentação com censura: “fujam da mera retórica e encarem o debate democrático como se faz em qualquer outro país democrático do mundo”
Na sua visão e com sua experiência, a regulamentação da mídia é necessária hoje no Brasil?
É como a regulamentação de qualquer outro setor econômico. Claro que a imprensa tem suas particularidades, ela é portadora de responsabilidades, tais como a liberdade de expressão. Mas, é importante ressaltar que regulamentá-la é como regulamentar qualquer outro setor da atividade social, política, econômica e cultural do nosso país.
Em 1988, a Assembléia Nacional Constituinte inovou com um capítulo sobre a comunicação. Nossa Constituição é uma das únicas que tem um capítulo inteiro voltado para questões ligadas aos meios de comunicações, porém, algumas questões específicas deste capítulo jamais foram regulamentadas. Fora o fato dele ter sido o mais polêmico da Constituinte. Na realidade, houve um arranjo bem montado sob a liderança do Artur da Távola (um dos fundadores do PSDB e deputado constituinte) que introduziu aquele texto na Constituição. Claro que ele tem problemas, mas na época representou um avanço. A questão é que ele precisava ser regulamentado para que pudéssemos atualizar o ordenamento jurídico da mídia e da comunicação no Brasil, porque a lei que nos ordenava era e é a Lei 4.117, o Código Brasileiro de Telecomunicações de 1962.
Para piorar, no governo Fernando Henrique, quando eles assumiram a proposta de flexibilização do Sistema Telebrás, que depois se tornou um processo de privatização, entraram com uma emenda constitucional para mudar o artigo 21. O objetivo era permitir ao capital privado acesso até de 100% do controle das empresas – as antigas telefônicas. Em outros termos, privatizar o setor de telecom. O resultado foi que a emenda entrou de um jeito no Congresso e saiu de outro. Ao sair, contrariamente às expectativas do Sérgio Motta (Ministro das Comunicações do governo FHC) e do próprio Fernando Henrique, ambos formuladores daquela política – houve a separação dos setores de telecomunicação e de radiodifusão. Com essa mudança no artigo, o setor de mídia, particularmente o de radiodifusão (a mídia eletrônica), ficou de fora da regulação. Conclusão: a nova lei foi a lei geral de telecomunicações, aprovada em 1997 e seu órgão regulador.
Na verdade, isso aconteceu por conta do lobby da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert) que sempre lutou contra o ordenamento jurídico sob o lema “vamos deixar como está”. Lutou, sobretudo, contra a submissão a um organismo autônomo de regulação. Esta é uma situação única no mundo. Há um argumento técnico: “o Ministério [das Comunicações] nos regula”. Ora, o Ministério sempre foi um lugar de conforto deste setor. Espero sinceramente que deixe de ser.
Então, o que sobrou na Lei 4.117 de radiodifusão é um absurdo. Aliás, ela foi elaborada em 1962, em um tempo que não havia nem rádio FM no pais. Daí essa necessidade urgente de fazer esta regulação.
Em comparação com os demais países, a imprensa brasileira cumpre seus deveres, respeita os direitos de cidadania? Por que a Constituição coloca no mesmo nível a liberdade de expressão e a proibição da censura, mas os direitos de imagem e resposta e crimes contra a honra, na prática, caducaram?
No caso da imprensa, para comparar com os demais países, precisamos dividi-la entre a impressa e a eletrônica (televisão e rádio). Comparando a nossa com a dos demais países democráticos, podemos afirmar que temos uma imprensa sofisticada, profissionalmente competente e tecnicamente muito qualificada. Além disso, é um setor econômico importante. Embora a mídia impressa tenha problemas hoje, sabemos que é uma fase de adaptação diante de uma conjuntura de tecnologia que será ajustada em algum momento.
O nosso problema gira em torno da falta daquilo que nos EUA durante a década de 60, gerou uma teoria: responsabilidade social. Proposta pela centro-esquerda americana, a teoria da responsabilidade social na comunicação surgiu naquele momento, de lutas muito fortes, quando eles perceberam movimentos econômicos de concentração, redução de vozes, falta de diversidade e uma necessidade de estabelecer determinados processos capazes de resguardar direitos individuais e civis. Foi naquele período que isso começou a ser criado e hoje há até conselhos de comunicação em alguns Estados progressistas dos EUA. Inclusive, conselhos até para a mídia impressa.
Já quanto à regulação da mídia eletrônica nos Estados Unidos, eu não preciso dizer nada. A Federal Radio Commission (FRC), órgão regulador para o rádio foi criada em 1927. E em 1934, quando começaram a convergir as mídia nos EUA, a FRC transformou-se na Federal Communication Commission (FCC). A FCC é paradigmática, um órgão regulador convergente que reúne telecomunicações, telefonia, rádios, televisão e, repito, é de 1934. Já quanto à lei de Comunicação dos EUA, ela só foi modificada em 1996. E veja que o controle é forte. Temos inclusive o caso clássico de regulação moral que custou uma multa pesadíssima à CBS quando a cantora Janet Jackson mostrou um dos seios na final do campeonato de futebol americano. A CBS foi à justiça e perdeu. Portanto, se a primeira emenda [da Constituição] faz com que eles não tenham Lei de Imprensa, a justiça dos EUA, em todas as instâncias, está claramente preparada para lidar com esta questão. Eles têm uma jurisprudência enorme sobre casos de abusos da imprensa de resguardo da imagem, de privacidade. Há, inclusive, departamentos acadêmicos especializados apenas no estudo de press regulation (regulação da imprensa) nos EUA.
O que falta no Brasil, no que diz respeito à responsabilidade, são processos regulatórios.
Neste sentido, quais os entraves a se combater e os avanços necessários?
O principal avanço – que já se trata de uma dívida dos poderes públicos - é regulamentar o capítulo da comunicação social [da Constituição], atualizar o arcabouço normativo e fazer a lei geral. Há várias versões desta lei. Eu conheço pelo menos seis. Essa é a grande dívida. O primeiro passo, portanto, é fazer a lei e atualizar o quadro normativo. Uma lei que tanto pode ser específica para a radiodifusão (mídia eletrônica) e novas mídias, quanto ser uma lei convergente e, com o tempo, com o aparato regulatório, incluir a Lei Geral de Telecomunicações de 1997. Aliás, esta também precisa ser atualizada. Ela foi feita para o telefone fixo e o avanço tecnológico mudou esse quadro completamente. Então, precisamos de uma lei para a radiodifusão ou uma lei convergente, não importa. O fundamental é a atualização do marco regulatório.
Como você vê as iniciativas recentes em torno da democratização da informação como a TV Brasil, a Conferência Nacional de Comunicação (Confecom), o seminário de convergência das mídias?
São passos extremamente importantes, sobretudo, a criação da TV Brasil enquanto televisão pública. A Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) como empresa pública (radio, agência e TV Brasil) ainda está em busca de uma identidade e isso realmente demora um tempo. O fato é que a TV pública era uma demanda histórica dos movimentos de redemocratização da comunicação. A TV Brasil era uma iniciativa setorial. Foi fundamental ter fundido as estruturas da TVE do Rio com a Radiobrás e criado o embrião de algo que hoje já é uma realidade palpável. Foi um passo extremamente importante e meritório.
Já a Confecom foi um avanço enorme, porque finalmente a área da comunicação fez a sua conferência. Era uma demanda de três a quatro décadas. E a fez com todas as dificuldades, inclusive, com a saída de alguns órgãos importantes. Agora, tenho certeza que muitos se arrependeram por ter pulado fora. Eu transito tanto na universidade quanto no meio empresarial, e afirmo que aqueles que ficaram estão muito satisfeitos. Como, por exemplo, as teles e a Associação Brasileira de Radiodifusores (ABRA) da Rede TV! e Bandeirantes.
Na realidade, eles tiveram um ganho democrático porque entenderam a lógica da Conferência e circularam naquele Centro de Convenções ao lado de 1.800 delegados de movimentos sociais os mais diversificados. Circularam em meio a diferentes parâmetros, diferentes discursos, retóricas complicadas, com a radiodifusão comunitária dura como sempre batendo. Um aprendizado sem dúvidas e um avanço importante, com desdobramentos.
Um destes foi o Seminário da Convergência das Mídias [no final do governo Lula]. Ele foi uma decorrência direta da Confecomm e complementou o grupo de trabalho interministerial. Aliás, ele foi fundamental menos por razões técnicas, e mais para levar o empresariado para ver a BBC, a FCC, a CNT espanhola, a OfCom e tantas outras agências. E ouvir a UNESCO, por exemplo. Então, essa finalidade política foi muito bem sucedida porque mostrou a todos o que o mundo inteiro faz. Lemos, inclusive, à época, comentários da nossa imprensa dizendo que havia muito órgão regulador no Brasil, o que é simplesmente risível. Qualquer pessoa minimamente bem informada sobre isso dá uma resposta na hora. O Offcom inglês, por exemplo, estabelece padrões de qualidade na programação e tem um departamento para receber queixas. É patético, portanto, discutir isso e ouvir o pessoal da radiodifusão usar uma argumentação pueril.
Como você avalia os Conselhos Estaduais de Comunicação?
São uma demanda da sociedade que já vem de muitos anos. Eu participei de um grupo que atuou na área de comunicação quando da elaboração da Lei Orgânica dos municípios. Nela está prevista a possibilidade de criação de um conselho de comunicação social. Isso nunca chegou a ser implantado e não há nada de errado nestes conselhos. Os Estados têm todo direito de estabelecê-los. Claro que dentro do que determina a Constituição, os poderes da União, para regulamentar o setor de comunicação. Eles têm limitações. Alguns possivelmente foram além do que deveria, mas isso é um processo, porque vai para a Assembléia Legislativa e será discutido etc. Agora, querer negar o Conselho é um absurdo. Eles fazem parte de um sistema e estão legalmente previstos.
A título de exemplo, na Espanha, cada comunidade autônoma tem seu conselho audiovisual. O mais forte deles é o da Catalunha. Além de ter o órgão regulador que na Espanha são dois. Então, há modelos claros para isso. A gritaria contra da mídia faz parte da velha tática de desqualificar o "indesqualificável".
Na sua avaliação a regulamentação levará tempo? Temos condições políticas para fazê-la?
Ou se faz no começo [de um novo governo], ou não se faz. Se você tem um projeto nessa área, você tem que implantá-lo no início do governo. No caso do governo FHC, o projeto incluía a radiodifusão e eles perderam com a Lei de Telecomunicações de 1997. Tanto que o Sérgio [Motta] morreu tentando resgatar o projeto de criar uma agência reguladora. Isso é dado histórico. Tinha até nome - Agência Nacional de Comunicações (Anacom). Ele pretendia voltar à questão, fazer uma nova lei e fundir o órgão regulador – criar a Anatel das telecomunicações.
Agora, eu vejo o governo Dilma Rousseff assumindo o processo da Confecom, o grupo interministerial, a possibilidade real de um projeto de Lei. Vejo que, apesar das dificultades - e estas serão cada vez maiores conforme o tempo passar - o governo tem maioria no Congresso. Por isso afirmo, nós temos que fazer logo.
Em relação à mídia latinoamericana, como você vê a situação da Argentina e da Venezuela?
Há tem um déficit normativo na América Latina, nosso, da Argentina, Venezuela etc, enfim, todos os países o têm. Até porque nosso modelo de rádio e TV, principalmente, foi inspirado no dos EUA, onde há uma hegemonia do sistema comercial sobre o [sistema] público que é sempre marginal. A Venezuela saiu na frente pelas circunstâncias políticas e fez sua lei de responsabilidade social da mídia. Teve claros avanços na mídia pública. No meu ponto de vista, com déficit para a radiodifusão comunitária e seu controle. Tem um certo exagero contra determinadas empresas. Mas não dá pra dizer que não houve um avanço na Venezuela neste setor.
Já a Argentina tem uma particularidade porque havia uma demanda da sociedade, mas foi a disputa entre governo e o grupo Clarin que ajudou nesta questão. A ruptura fez com que o governo argentino rapidamente se mobilizasse e fizesse a lei de comunicação. O que foi ótimo. E o mais curioso é que no Brasil nós sempre fomos mais sofisticados do ponto de vista do movimento social em termos de democratização da informação. Nós temos experiências fortes, porém, os argentinos pularam na nossa frente e fizeram sua lei. A legislação argentina promoveu uma requalificação da mídia pública e uma política de espectro mais democrática.
Mas, sempre é bom lembrar que nem os EUA, nem a Venezuela, nem a Argentina são modelos para nós em termos de comunicação. Nós temos que criar, a partir das nossas condições, o nosso próprio modelo e a nossa legislação.
Agora, em relação à mídia internacional e a brasileira, em quais aspectos elas são semelhantes e em quais se distanciam?
Há diferenças e pontos em comum. Quando eu viajo, gosto de ler os jornais dos outros países sobretudo porque eles falam da própria mídia. Aqui no Brasil, essa interdição da própria pauta é um problema sérissimo. Você pega o El Pais (Espanha), o New York Times (EUA), The Gardian (Inglaterra) e encontra lá páginas e mais páginas sobre o negócio da comunicação, as crises, os problemas, as dificuldades, discussão sobre a programação... E é isso que aproxima esses jornais do seu público. E isso não só em editorial, mas a questão da comunicação é notícia. Lá, está no noticiário normal. Aqui no Brasil isso não existe.
Já do ponto de vista do jornalismo praticado há uma qualificação muito grande nos outros países. Apesar de serem realidades políticas mais estáveis, com menos desigualdade, é inimaginável pensar numa democracia avançada hoje tendo uma mídia que se partidariza como a brasileira. Essa é a diferença capital que mostra, do ponto de vista das empresas de comunicação, sua imaturidade política. Lá, ao se partidarizar, ela assume. Esta é uma diferença muito grande.
Assume e o outro jornal comenta quando sai uma notícia que aquele jornal apóia o partido conservador etc. O próprio jornal esclarece isso para o leitor.
São jornais de muita qualidade, pelo menos os principais. Aqui nós não temos uma mídia impressa com essa qualidade informativa. Os nossos jornais são bons tecnicamente e tal, mas editorialmente são erráticos. E nem estou falando das revistas. The Times, The Economist, Newsweek. Ao ler uma revista semanal brasileira, eu não sei se estou lendo Caras ou uma revista de Saúde. É um negócio de louco. Eles acharam um modelo, mas que não tem nada a ver com o jornalismo no sentido de formação da cidadania, informação, opinião pública.
A Veja nem dá para comentar. A Época é de uma fragilidade... Poderia mencionar a Carta Capital, uma revista semanal de qualidade, mas muito voltada para um certo público. Eu me refiro mais àquela revista de informação geral. Todos nós já lemos uma revista melhor do que estas que estão aí. Eu acho que tudo isso é uma subestimação da capacidade de formação política e de entendimento das coisas por parte do leitor brasileiro. É escolher a via mais fácil. Nivelar por baixo mesmo.
Aos que ainda afirmam que regulamentação é censura, o que você diria?
Eu diria para eles primeiramente: modernizem-se, atualizem-se, ajam com maturidade política. Fujam da mera retórica e encarem o debate como se faz em qualquer outro país democrático do mundo. Isso eu gostaria de dizer e sempre que posso, digo.
Segundo, o grande problema dos que são contra as mudanças é o receio de perder o controle. Mas a transição técnica que estamos vivendo hoje está mexendo em todos os modelos de negócios. Quem garante que a TV aberta generalista vai sobreviver com alta definição só abrindo break publicitário? Há uma crise latente, como a crise dos jornais. Neste sentido, a norma é fundamental para segurar a estabilidade do negócio. Até para atrair parceiro estrangeiro no caso da radiodifusão porque ele vai querer estabilidade legal. A não ser que tenha uma razão muito específica, um conjunto de investidores internacionais não vai entrar em uma empresa de mídia brasileira de TV aberta por exemplo. Ele vai olhar o quadro normativo e dizer “isso não dá segurança jurídica, é muito instável”. Então, para a própria saúde do negócio, a norma é importante. E eles sabem que é, mas não querem perder o controle.
A saudade do passado, de pegar lá o secretário geral e a norma sair de acordo com o interesse deles, customizada, é grande. Mas isso não vale hoje. Enfrentar uma discussão na sociedade, no Congresso, mais democrática é absolutamente necessário. A CONFECOM é uma amostra disso. Na hora que você apara os arroubos da Conferência, percebe que saíram de lá soluções muito boas.
E quanto aos avanços da tecnologia, por exemplo, a Internet?
A internet é um ambiente ainda não muito claro. Nem no mundo acadêmico, nem no mundo dos negócios, alguém consegue saber para onde ela vai e até que ponto vai modificar ainda mais a comunicação. O que é o Google? Era um instrumento de busca, hoje é de produção de notícias. E toda a discussão das redes sociais? Os 700 milhões de filiados ao Facebook que estão sendo apropriados hoje comercialmente? Aliás, aquele espírito hippie da internet não existe mais. Todas as grandes empresas tem seus departamentos de novas mídias voltados para entrar nesse ambiente e usá-lo para fazer o target perfeito da colocação de seu produto no mercado.
Portanto, dizer “eu sei o que vai acontecer” é mentira. Ninguém sabe.
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