Por Renato Francisquini, no jornal Le Monde Diplomatique-Brasil:
Mesmo quem aventava a possibilidade de Bolsonaro chegar ao segundo turno (como o cientista político Jairo Nicolau, em artigo para a revista Piauí), considerava a sua eleição pouco provável. À exceção de um núcleo duro formado por aqueles que compartilhavam dos preconceitos expressos por ele, soava impraticável ao então candidato angariar o apoio necessário à vitória em dois turnos. Para usar uma imagem que tem sido evocada, Bolsonaro não seria capaz de “furar a bolha”, que as pesquisas atestavam não exceder algo em torno de 20% das intenções de voto.
*****
Sem a pretensão de esgotar o tema, e optando deliberadamente por desconsiderar fatores relevantes, como o contexto internacional, a corrupção na formação da opinião pública por meio das redes sociais e do Whatsapp, o atentado sofrido pelo candidato, parece evidente que a eleição do militar reformado se insere em um ambiente em que se consolidou certa visão sobre a política. A ascensão do candidato do até então nanico PSL se inscreve em um processo mais amplo e longevo de rejeição da política tradicional, ou da forma tradicional de se fazer política que vinha se estabelecendo no país desde a Constituição de 1988.
Não se trata de fenômeno novo nem tampouco restrito a partidos ou governos específicos: a repulsa pela política tradicional se manifestou na oposição “udenista” feita pelo PT ao governo FHC (1995-2002); ganhou corpo quando parte da imprensa acusava o governo Lula de “aparelhar” o Estado através da nomeação de pessoas com pouco preparo técnico para posições relevantes da administração pública (uma reedição da “República Sindical”, de Jango); apareceu nas eleições seguintes, quando os candidatos de oposição exploraram o escândalo do mensalão e enquadraram a política de formação de governos, identificada com o PT, como corrupção, além da mobilização da pauta dos costumes, sobretudo em 2010, por José Serra (PSDB); apareceu na reinterpretação da imprensa acerca das manifestações pelo passe livre em 2013 e nos novos grupos que ocuparam as ruas desde então; surgiu na emergência do Judiciário como “poder moderador”, supostamente imune à disputa política, da qual o julgamento da Ação Penal 470 na figura de seu relator, o ministro Joaquim Barbosa, aparece como personagem mais famoso; reforçou-se com a cruzada da Operação Lava-Jato, inicialmente contra Lula e o PT, atingindo, posteriormente, os demais partidos que davam sustentação ao sistema político brasileiro.
Esta mesma “política da antipolítica” – que já havia ganhado destaque nas eleições municipais de 2016 através de candidatos autoidentificados como “não-políticos”, como João Dória (PSDB-SP) e Alexandre Kalil (PHS-MG) – emergiu com força renovada nas eleições de 2018 na figura de Bolsonaro, que combinava duas formas de rejeição da política: de um lado, uma proposta de moralização da sociedade a partir da busca pelos “verdadeiros valores da nação”, rejeitando o que se denominava de marxismo cultural (e tudo aquilo que foi a ele associado, como a igualdade de gênero, a diversidade sexual, o combate ao racismo estrutural e às variadas formas de preconceito que vicejam na sociedade brasileira), o que se evidencia na ascensão dos ministros da ala olavista; de outro, uma espécie de elitismo político, que se coaduna com uma tecnocracia representada, no campo econômico, pela figura do ministro da Economia, Paulo Guedes, e, no plano jurídico, pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro.
Perceba-se que temos, nesse sentido, o encontro de duas tendências que, a princípio, seriam opostas, a saber, o conservadorismo (ou o reacionarismo) moral e o (ultra-) liberalismo. No primeiro caso, o Estado aparece como órgão responsável por “varrer da sociedade” as ideologias identificadas com a esquerda, como afirmou o então candidato ao público de apoiadores em ato na Avenida Paulista na semana anterior ao pleito e, novamente, no discurso de posse. Já no segundo o esforço consiste, ao contrário, em enfraquecer ou reduzir a capacidade do Estado de intervir sobre as relações econômicas, facultando à sociedade (e aos agentes do mercado) a autorregulação das atividades produtivas e comerciais. Ambas as vertentes, embora antagônicas no que toca à ação do Estado, rejeitam a política democrática pois negam o pluralismo de valores e apostam, respectivamente, na existência de uma única e verdadeira identidade nacional a ser imposta contra os que não se reconhecem nela e na validade científica de decisões técnicas que dispensam o debate público e deslegitimam o inevitável conflito de interesses e as diversas possibilidades de lidar com ele.
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Para entender a emergência deste fenômeno vale a pena identificar a atuação de dois personagens fundamentais a qualquer regime político democrático: a imprensa e o Poder Judiciário. Novamente sem a pretensão de esgotar as razões do fenômeno, a confluência de um enquadramento limitado por parte da cobertura política e uma crescente desconsideração das garantias constitucionais pelos órgãos de controle da atuação política podem explicar, ao menos em parte, a perda de legitimidade da democracia representativa, que conflagrou a escolha de um mandatário que a renega em diversas dimensões, como mostrou Renato Lessa em artigo recente na Ilustríssima.
Não se desconhece certa preferência da imprensa tradicional por expor escândalos políticos associados à relação pouco republicana entre agentes do Estado e do mercado. É obviamente fundamental o papel que os meios de comunicação realizam ao dar publicidade ao que, de outra sorte, restaria à câmara obscura dos gabinetes governamentais, com prejuízos incalculáveis para a sociedade. É também inequívoco que existe, no Brasil, um longo histórico de acordos espúrios envolvendo a atuação de parlamentares e membros do Poder Executivo e o financiamento de campanhas por parte de grandes empresas, como as empreiteiras, os bancos e outras.
Todavia, na medida em que o jornalismo de maior visibilidade opta por divulgar, em uma perspectiva restrita, os escândalos de corrupção e desconstruir a imagem da política como um todo, qual seria a saída para nós, cidadãos comuns? Ora, se a própria atividade política, que envolve necessariamente a barganha e a negociação entre valores e interesses irreconciliáveis, passa a ser tratada como eminentemente corrupta, a solução só pode ser algo exógeno a ela. O enquadramento preferencialmente mobilizado no noticiário reforça a ideia de que os problemas sociais e políticos são de responsabilidade individual de quem se dedica à política. Não é por coincidência que muitos ainda acreditam que, com o fim da corrupção, sobrariam recursos para solucionar o problema de subfinanciamento de áreas como saúde e da educação. A saída para a enrascada em que nos metemos seria encontrada, segundo tal interpretação, em instituições e atores que supostamente não participariam da política tradicional, que atuariam sem os constrangimentos impostos pela democracia e as formas de competição que ela impõe e estariam imunes aos defeitos que encontramos nas lideranças tradicionais. Os baixíssimos índices de confiança observados nas pesquisas de opinião em relação aos partidos políticos e aos poderes Executivo e Legislativo são apenas um sinal claro do sentimento de rejeição à política que grassa na sociedade brasileira, com consequências negativas em diversos aspectos. Não foi à toa que a taxa de renovação para o Poder Legislativo foi a mais alta desde a redemocratização.
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A formação de uma opinião pública que rejeita a política e os políticos, que clama pela mudança “de tudo isso que está aí”, oferece o terreno propício para expansão da área de atuação do Poder Judiciário, cujo alcance das decisões vem, por vezes, invadindo o campo tipicamente atribuído aos representantes eleitos. Poderíamos dizer até que tal ampliação vem causando uma espécie de desequilíbrio de poderes, com a balança pendendo cada vez mais para o lado do Judiciário. As cortes foram responsáveis ou corresponsáveis recentemente por decisões significativas no Brasil, desde a liberação de pesquisas com células tronco e o casamento igualitário até a supervisão do processo de impeachment e o afastamento, após sua conflagração, em decisão para lá de controversa, do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (ator fundamental, diga-se, no impedimento da presidenta eleita Dilma Rousseff).
Nesse aspecto, a escolha do ex-juiz Sérgio Moro para o Ministério da Justiça, com poderes ampliados, faz parte do jogo que beneficiou a eleição de Bolsonaro. Embalados pela rejeição à política, as cortes e os juízes aprofundaram a visão disseminada na opinião pública, sendo, ao mesmo tempo, seus beneficiários. Por mais importantes que as instituições de controle sejam, não estou convencido de que estejam, nesse caso, atuando da melhor forma para lidar com o grave problema da corrupção. O objetivo esposado de “limpar” a política e substituir os políticos tradicionais por novos personagens soa como uma cruzada tão voluntariosa quanto ineficaz. Em primeiro lugar, por não ser capaz de esclarecer, para ficar em apenas um exemplo, como o sistema de financiamento privado de campanhas, com teto proporcional ao lucro do doador, seria responsável pela manutenção da relação espúria entre agentes públicos e privados. Além disso, a inépcia de promotores, delegados e juízes para compreender a dinâmica política nos levam a absurdos lógicos como o powerpoint exibido por Deltan Dallagnol, peça cujo único legado foi uma série de troças nas redes sociais, desmoralizando para parte da opinião pública o próprio combate à corrupção.
Os instrumentos utilizados pela Lava-Jato, ademais, implicam sobejas violações aos direitos e garantias legais, conferindo aos juízes e promotores carta branca para agir à margem da Constituição a que deveriam servir. Como consequência, assistimos a uma forte politização desses atores, que, ao interferirem sobre o campo da política, em ações espetaculosas, carentes de provas mas repletas de convicções, acabam por perder a legitimidade necessária para cumprir a função para a qual foram destinados, isto é, conferir previsibilidade e estabilidade ao jogo político (sobre a Lava-Jato, vale a pena conferir o texto de Bruno P. W. Reis, publicado na Revista Novos Estudos.
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Nesse cenário, os movimentos a que assistimos desde o período de transição parecem corroborar o sentido antipolítico que contribuiu para a eleição de Bolsonaro e que dão o tom de seu governo. A “guerra cultural” contra o que é visto como ideologia de esquerda e a escolha de militares e técnicos supostamente não políticos para a formação do núcleo duro do governo são apenas duas faces da mesma moeda. Segue o mesmo padrão o esforço para não se sujeitar ao presidencialismo de coalizão, que exige do chefe de governo a negociação com as lideranças partidárias para a formação de maiorias congressuais, em prol de uma coordenação que privilegia as bancadas temáticas, cujos impactos sobre a governabilidade são cada vez mais evidentes – que o diga o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
O discurso e as práticas antipolíticas são um risco para a estabilidade da democracia, já tão castigada no país em anos recentes. A democracia é baseada na incerteza sobre os resultados que serão alcançados depois de um processo deliberativo que faculte a todos a participação nas decisões coletivas. Nenhum interesse ou nenhum valor tem, nem deve ter, a garantia de que prevalecerá nas políticas públicas. Quando descartamos o pluralismo, característica inevitável de uma sociedade livre, em nome de um sistema pré-ordenado de valores aos quais se atribui o status de verdade absoluta, ou quando dispensamos a troca de argumentos em público em prol de uma abordagem técnica supostamente neutra e imparcial sobre temas que envolvem desacordos profundos, nos afastamos perigosamente da incerteza que define um regime democrático.
O argumento da “salvação nacional”, quando associado à tentativa de eliminar física ou simbolicamente a oposição, ou quando atribuído a um gerenciamento apartidário do conflito distributivo, dificilmente contribui para o aprofundamento da democracia e para o bem-estar da população. Identificar essa pretensão como a única saída para lidar com problemas que são inevitavelmente políticos, desqualificando a discussão política como um debate ideológico vazio de sentido, é apenas uma outra forma de autoritarismo, muito parecida com aquela que prevaleceu entre 1964 e 1985, amparada, como fora naquele tempo, sobre fim de libertar a sociedade do espectro do socialismo e, desta feita, do politicamente correto com que se identificaria.
* Renato Francisquini, doutor em Ciência Política pela USP, com pós-doutorado em comunicação política pela UFMG; é professor do Departamento de Ciência Política da UFBA.
Inúmeras hipóteses têm sido apresentadas a fim de explicar a ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência da República. Antes do processo eleitoral, muito embora o então candidato figurasse como favorito nas pesquisas – notadamente quando se excluía o ex-presidente Lula da lista apresentada aos entrevistados – poucos confiavam em sua capacidade de vencer o pleito. Havia boas razões para tal descrédito: à luz dos estudos sobre comportamento eleitoral e de nossa experiência mais recente (1994-2014), soava implausível que o candidato sem uma estrutura partidária sólida e com uma retórica ofensiva, para dizer o mínimo, pudesse ampliar o apoio que até então desfrutava nas pesquisas.
Mesmo quem aventava a possibilidade de Bolsonaro chegar ao segundo turno (como o cientista político Jairo Nicolau, em artigo para a revista Piauí), considerava a sua eleição pouco provável. À exceção de um núcleo duro formado por aqueles que compartilhavam dos preconceitos expressos por ele, soava impraticável ao então candidato angariar o apoio necessário à vitória em dois turnos. Para usar uma imagem que tem sido evocada, Bolsonaro não seria capaz de “furar a bolha”, que as pesquisas atestavam não exceder algo em torno de 20% das intenções de voto.
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Sem a pretensão de esgotar o tema, e optando deliberadamente por desconsiderar fatores relevantes, como o contexto internacional, a corrupção na formação da opinião pública por meio das redes sociais e do Whatsapp, o atentado sofrido pelo candidato, parece evidente que a eleição do militar reformado se insere em um ambiente em que se consolidou certa visão sobre a política. A ascensão do candidato do até então nanico PSL se inscreve em um processo mais amplo e longevo de rejeição da política tradicional, ou da forma tradicional de se fazer política que vinha se estabelecendo no país desde a Constituição de 1988.
Não se trata de fenômeno novo nem tampouco restrito a partidos ou governos específicos: a repulsa pela política tradicional se manifestou na oposição “udenista” feita pelo PT ao governo FHC (1995-2002); ganhou corpo quando parte da imprensa acusava o governo Lula de “aparelhar” o Estado através da nomeação de pessoas com pouco preparo técnico para posições relevantes da administração pública (uma reedição da “República Sindical”, de Jango); apareceu nas eleições seguintes, quando os candidatos de oposição exploraram o escândalo do mensalão e enquadraram a política de formação de governos, identificada com o PT, como corrupção, além da mobilização da pauta dos costumes, sobretudo em 2010, por José Serra (PSDB); apareceu na reinterpretação da imprensa acerca das manifestações pelo passe livre em 2013 e nos novos grupos que ocuparam as ruas desde então; surgiu na emergência do Judiciário como “poder moderador”, supostamente imune à disputa política, da qual o julgamento da Ação Penal 470 na figura de seu relator, o ministro Joaquim Barbosa, aparece como personagem mais famoso; reforçou-se com a cruzada da Operação Lava-Jato, inicialmente contra Lula e o PT, atingindo, posteriormente, os demais partidos que davam sustentação ao sistema político brasileiro.
Esta mesma “política da antipolítica” – que já havia ganhado destaque nas eleições municipais de 2016 através de candidatos autoidentificados como “não-políticos”, como João Dória (PSDB-SP) e Alexandre Kalil (PHS-MG) – emergiu com força renovada nas eleições de 2018 na figura de Bolsonaro, que combinava duas formas de rejeição da política: de um lado, uma proposta de moralização da sociedade a partir da busca pelos “verdadeiros valores da nação”, rejeitando o que se denominava de marxismo cultural (e tudo aquilo que foi a ele associado, como a igualdade de gênero, a diversidade sexual, o combate ao racismo estrutural e às variadas formas de preconceito que vicejam na sociedade brasileira), o que se evidencia na ascensão dos ministros da ala olavista; de outro, uma espécie de elitismo político, que se coaduna com uma tecnocracia representada, no campo econômico, pela figura do ministro da Economia, Paulo Guedes, e, no plano jurídico, pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro.
Perceba-se que temos, nesse sentido, o encontro de duas tendências que, a princípio, seriam opostas, a saber, o conservadorismo (ou o reacionarismo) moral e o (ultra-) liberalismo. No primeiro caso, o Estado aparece como órgão responsável por “varrer da sociedade” as ideologias identificadas com a esquerda, como afirmou o então candidato ao público de apoiadores em ato na Avenida Paulista na semana anterior ao pleito e, novamente, no discurso de posse. Já no segundo o esforço consiste, ao contrário, em enfraquecer ou reduzir a capacidade do Estado de intervir sobre as relações econômicas, facultando à sociedade (e aos agentes do mercado) a autorregulação das atividades produtivas e comerciais. Ambas as vertentes, embora antagônicas no que toca à ação do Estado, rejeitam a política democrática pois negam o pluralismo de valores e apostam, respectivamente, na existência de uma única e verdadeira identidade nacional a ser imposta contra os que não se reconhecem nela e na validade científica de decisões técnicas que dispensam o debate público e deslegitimam o inevitável conflito de interesses e as diversas possibilidades de lidar com ele.
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Para entender a emergência deste fenômeno vale a pena identificar a atuação de dois personagens fundamentais a qualquer regime político democrático: a imprensa e o Poder Judiciário. Novamente sem a pretensão de esgotar as razões do fenômeno, a confluência de um enquadramento limitado por parte da cobertura política e uma crescente desconsideração das garantias constitucionais pelos órgãos de controle da atuação política podem explicar, ao menos em parte, a perda de legitimidade da democracia representativa, que conflagrou a escolha de um mandatário que a renega em diversas dimensões, como mostrou Renato Lessa em artigo recente na Ilustríssima.
Não se desconhece certa preferência da imprensa tradicional por expor escândalos políticos associados à relação pouco republicana entre agentes do Estado e do mercado. É obviamente fundamental o papel que os meios de comunicação realizam ao dar publicidade ao que, de outra sorte, restaria à câmara obscura dos gabinetes governamentais, com prejuízos incalculáveis para a sociedade. É também inequívoco que existe, no Brasil, um longo histórico de acordos espúrios envolvendo a atuação de parlamentares e membros do Poder Executivo e o financiamento de campanhas por parte de grandes empresas, como as empreiteiras, os bancos e outras.
Todavia, na medida em que o jornalismo de maior visibilidade opta por divulgar, em uma perspectiva restrita, os escândalos de corrupção e desconstruir a imagem da política como um todo, qual seria a saída para nós, cidadãos comuns? Ora, se a própria atividade política, que envolve necessariamente a barganha e a negociação entre valores e interesses irreconciliáveis, passa a ser tratada como eminentemente corrupta, a solução só pode ser algo exógeno a ela. O enquadramento preferencialmente mobilizado no noticiário reforça a ideia de que os problemas sociais e políticos são de responsabilidade individual de quem se dedica à política. Não é por coincidência que muitos ainda acreditam que, com o fim da corrupção, sobrariam recursos para solucionar o problema de subfinanciamento de áreas como saúde e da educação. A saída para a enrascada em que nos metemos seria encontrada, segundo tal interpretação, em instituições e atores que supostamente não participariam da política tradicional, que atuariam sem os constrangimentos impostos pela democracia e as formas de competição que ela impõe e estariam imunes aos defeitos que encontramos nas lideranças tradicionais. Os baixíssimos índices de confiança observados nas pesquisas de opinião em relação aos partidos políticos e aos poderes Executivo e Legislativo são apenas um sinal claro do sentimento de rejeição à política que grassa na sociedade brasileira, com consequências negativas em diversos aspectos. Não foi à toa que a taxa de renovação para o Poder Legislativo foi a mais alta desde a redemocratização.
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A formação de uma opinião pública que rejeita a política e os políticos, que clama pela mudança “de tudo isso que está aí”, oferece o terreno propício para expansão da área de atuação do Poder Judiciário, cujo alcance das decisões vem, por vezes, invadindo o campo tipicamente atribuído aos representantes eleitos. Poderíamos dizer até que tal ampliação vem causando uma espécie de desequilíbrio de poderes, com a balança pendendo cada vez mais para o lado do Judiciário. As cortes foram responsáveis ou corresponsáveis recentemente por decisões significativas no Brasil, desde a liberação de pesquisas com células tronco e o casamento igualitário até a supervisão do processo de impeachment e o afastamento, após sua conflagração, em decisão para lá de controversa, do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha (ator fundamental, diga-se, no impedimento da presidenta eleita Dilma Rousseff).
Nesse aspecto, a escolha do ex-juiz Sérgio Moro para o Ministério da Justiça, com poderes ampliados, faz parte do jogo que beneficiou a eleição de Bolsonaro. Embalados pela rejeição à política, as cortes e os juízes aprofundaram a visão disseminada na opinião pública, sendo, ao mesmo tempo, seus beneficiários. Por mais importantes que as instituições de controle sejam, não estou convencido de que estejam, nesse caso, atuando da melhor forma para lidar com o grave problema da corrupção. O objetivo esposado de “limpar” a política e substituir os políticos tradicionais por novos personagens soa como uma cruzada tão voluntariosa quanto ineficaz. Em primeiro lugar, por não ser capaz de esclarecer, para ficar em apenas um exemplo, como o sistema de financiamento privado de campanhas, com teto proporcional ao lucro do doador, seria responsável pela manutenção da relação espúria entre agentes públicos e privados. Além disso, a inépcia de promotores, delegados e juízes para compreender a dinâmica política nos levam a absurdos lógicos como o powerpoint exibido por Deltan Dallagnol, peça cujo único legado foi uma série de troças nas redes sociais, desmoralizando para parte da opinião pública o próprio combate à corrupção.
Os instrumentos utilizados pela Lava-Jato, ademais, implicam sobejas violações aos direitos e garantias legais, conferindo aos juízes e promotores carta branca para agir à margem da Constituição a que deveriam servir. Como consequência, assistimos a uma forte politização desses atores, que, ao interferirem sobre o campo da política, em ações espetaculosas, carentes de provas mas repletas de convicções, acabam por perder a legitimidade necessária para cumprir a função para a qual foram destinados, isto é, conferir previsibilidade e estabilidade ao jogo político (sobre a Lava-Jato, vale a pena conferir o texto de Bruno P. W. Reis, publicado na Revista Novos Estudos.
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Nesse cenário, os movimentos a que assistimos desde o período de transição parecem corroborar o sentido antipolítico que contribuiu para a eleição de Bolsonaro e que dão o tom de seu governo. A “guerra cultural” contra o que é visto como ideologia de esquerda e a escolha de militares e técnicos supostamente não políticos para a formação do núcleo duro do governo são apenas duas faces da mesma moeda. Segue o mesmo padrão o esforço para não se sujeitar ao presidencialismo de coalizão, que exige do chefe de governo a negociação com as lideranças partidárias para a formação de maiorias congressuais, em prol de uma coordenação que privilegia as bancadas temáticas, cujos impactos sobre a governabilidade são cada vez mais evidentes – que o diga o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ).
O discurso e as práticas antipolíticas são um risco para a estabilidade da democracia, já tão castigada no país em anos recentes. A democracia é baseada na incerteza sobre os resultados que serão alcançados depois de um processo deliberativo que faculte a todos a participação nas decisões coletivas. Nenhum interesse ou nenhum valor tem, nem deve ter, a garantia de que prevalecerá nas políticas públicas. Quando descartamos o pluralismo, característica inevitável de uma sociedade livre, em nome de um sistema pré-ordenado de valores aos quais se atribui o status de verdade absoluta, ou quando dispensamos a troca de argumentos em público em prol de uma abordagem técnica supostamente neutra e imparcial sobre temas que envolvem desacordos profundos, nos afastamos perigosamente da incerteza que define um regime democrático.
O argumento da “salvação nacional”, quando associado à tentativa de eliminar física ou simbolicamente a oposição, ou quando atribuído a um gerenciamento apartidário do conflito distributivo, dificilmente contribui para o aprofundamento da democracia e para o bem-estar da população. Identificar essa pretensão como a única saída para lidar com problemas que são inevitavelmente políticos, desqualificando a discussão política como um debate ideológico vazio de sentido, é apenas uma outra forma de autoritarismo, muito parecida com aquela que prevaleceu entre 1964 e 1985, amparada, como fora naquele tempo, sobre fim de libertar a sociedade do espectro do socialismo e, desta feita, do politicamente correto com que se identificaria.
* Renato Francisquini, doutor em Ciência Política pela USP, com pós-doutorado em comunicação política pela UFMG; é professor do Departamento de Ciência Política da UFBA.
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