Por Diego Sartorato, na Revista do Brasil:
Em pronunciamentos oficiais e declarações à imprensa, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), é categórico: não haverá racionamento de água em 2014. A temporada é complicada. A capital será vitrine internacional do país durante a Copa do Mundo e a população decidirá nas urnas, em outubro, se mantém com o tucano - como ocorre desde 1995 - a chave do Palácio dos Bandeirantes, sede governo paulista. A realidade, porém, se impõe. Diante da pior estiagem desde o início das medições, há 84 anos, o Sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de água de 8 milhões de pessoas na região metropolitana de São Paulo, começou o ano com apenas 27% de seu volume útil; no fim de abril, minguava abaixo dos 11%.
De acordo com o grupo de acompanhamento formado pela Agência Nacional de Águas (ANA), o estadual Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), a estatal paulista de saneamento Sabesp e órgãos municipais, o volume útil do reservatório pode se esgotar em julho, e o “volume morto”, reserva abaixo da altura de captação das bombas da Sabesp, que começa a ser explorado para abastecimento agora em maio, segura a demanda da Grande São Paulo por mais quatro meses, no ritmo atual de consumo.
Desde fevereiro, quando reconheceu publicamente o estado de emergência nas reservas de água do estado, o governo pendulou entre medidas consideradas de inúteis a ilegais. Entre elas, o uso de um avião monomotor para “bombardear” nuvens sobre o Cantareira na tentativa de “forçar” a chuva; o desconto de 30% na conta de água para quem reduzir o consumo em 20%; a ideia de ligar o Sistema Cantareira a outros reservatórios de água para compensar a vazão reduzida; e a proposta de multar em 30% sobre o valor da conta de água quem aumentar o consumo em relação ao mês anterior.
Esta última, antes mesmo de ser oficializada, já causou reação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), que considera a multa ofensiva ao Código de Defesa do Consumidor pelo fato de o governo não ter tomado medidas para evitar a situação de escassez. “O governo do estado tem conhecimento desde 2002 dos níveis preocupantes dos reservatórios de água e, no entanto, não adotou, na velocidade necessária, medidas como a diminuição das perdas físicas de água (perto de 25% da água tratada é perdida na rede de distribuição)”, diz o Idec, em nota. O instituto pede também “postura mais proativa” do governo estadual. “A responsabilização deve ser coletiva e, mesmo que a população venha a sofrer com o racionamento, que também tem seus inconvenientes, este já deveria ter iniciado”, diz o gerente técnico do Idec, Carlos Thadeu de Oliveira.
Na prática
Enquanto a situação se agrava, o racionamento já é realidade em áreas da capital, em cidades da região metropolitana, como Osasco e Guarulhos, e da região de Campinas, no interior. Em São Paulo, ofício assinado em 15 de abril pelo secretário municipal de Governo, Chico Macena, revela que a pressão da água que chega à cidade está caindo em até 75% durante a madrugada, dificultando a chegada a locais com elevação do solo superior a 10 metros – afetando cerca de 260 mil pessoas que vivem em Tucuruvi e Tremembé, bairros da zona norte.
O caso de Guarulhos é parecido, porém mais grave: a cidade tem uma empresa municipal de tratamento e abastecimento, mas compra água da Sabesp por atacado, um investimento de cerca de R$ 100 milhões por ano. No entanto, como a população local não alcançou os resultados esperados pelo governo estadual com a campanha de descontos na conta, em março, a Sabesp reduziu o volume vendido à cidade. Com a responsabilidade de iniciar um rodízio no fornecimento, o prefeito Sebastião Almeida (PT) disse à época que foi avisado por um e-mail do corpo técnico do governo estadual que teria de aplicar o racionamento a 850 mil pessoas com apenas dois dias de antecedência.
Em Guarulhos, 1 milhão de moradores enfrentam abastecimento inconstante. As cidades da região de Campinas e de Piracicaba vivem situação similar, depois que o volume total de água fornecido para a região, onde vivem 3 milhões de pessoas, foi reduzido de 5 mil para 3 mil litros por segundo, em março.
Manipular os valores da conta de água para induzir um tipo de “racionamento voluntário” ou proibir a menção à palavra “racionamento” a cada anúncio de ações do governo não é suficiente para lidar com a situação. E a falta de água já causa reações irritadas da população. Em 21 de abril, moradores dos bairros Cachoeirinha e Vila Marina realizaram um protesto na Avenida Coronel Sezefredo Fagundes. Um ônibus foi queimado antes de as cerca de mil pessoas presentes ao ato serem dispersadas pela polícia.
“Aqui a água começou a vir esbranquiçada, mas deve ser bom, né? Para matar as bactérias”, diz a aposentada Alzira Fernandes, 71 anos, moradora dessa região da zona norte desde que nasceu. “Passei mal do estômago um tempo atrás, e o médico disse que podia ser a água.” Como sua casa não tem caixa, ela é imediatamente afetada todas as vezes que falta água, o que não acontece com seus vizinhos que têm reservatório em casa. “Minha sobrinha mora ao lado da minha casa, mas lá não faltou. Aqui eu fiquei sem algumas vezes no último mês”, conta.
Alzira, mesmo sem caixa d’água, tem menos problemas do que os moradores dos morros que se erguem de ambos os lados da avenida. O motorista Bruno César, de 27 anos, que possui caixa, enfrenta problemas constantes de desabastecimento. “Durante a semana retrasada inteira (de 6 a 12 de abril), a água acabava às 22h e só voltava às 6h. Aqui, quem demorava para ir tomar banho à noite corria o risco de ir pro trabalho sem se lavar no dia seguinte. Tivemos de juntar água para não ficar sem”, diz. “No domingo daquela semana, a água parou às 11h30 da manhã e só voltou perto de 23h. Depois deu uma normalizada, mas a pressão continua meio baixa.”
Comerciantes de diferentes perfis sentem na pele as consequências da seca. Edison Ivanov, proprietário de uma cantina em área de classe média do Tucuruvi está antecipando o fechamento da cozinha há cerca de duas semanas por conta do corte de água à noite. “Começou a acabar a água às 23h30, aí começou a acabar às 22h, e agora às 21h30 já seca a torneira. Normalmente volta às 6h, 7h, mas, em um domingo, só voltou 11h45 e eu quase perdi uma reserva para o almoço”, conta. Na porta do restaurante, uma placa avisa aos clientes que a falta de água é responsável pelo fechamento mais cedo, e sugere: “beber vinho pode”.
A situação é similar à de Marco Antônio Nunes da Silva, proprietário de um bar aos pés da comunidade do Parque Ramos Freitas, a pouco menos de dois quilômetros de distância do restaurante de Ivanov: “Ainda bem que vendo engarrafados aqui”, afirma Silva. “Há um mês, estamos passando três dias da semana sem água; é dia sim, dia não. O mesmo na minha casa, mas lá tenho caixa d’água. No bar, não, então a torneira fica seca. Ainda não tive prejuízo financeiro, mas tenho de incomodar os vizinhos para buscar baldes para lavar os copos”, diz. “O maior problema é que a Sabesp nunca avisa quando vai haver falta de água, então não podemos nem nos precaver”, lamenta.
Relatos semelhantes se repetem em reclamações postadas diariamente na página da Sabesp no Facebook. Aos questionamentos, a empresa tem respondido que os problemas são decorrentes de manutenção no sistema; quando não há justificativa, solicita mais informações e diz que encaminhará resposta aos usuários.
A Revista do Brasil busca com porta-vozes da Sabesp e DAEE informações oficiais sobre o estresse hídrico em São Paulo desde fevereiro, mas teve suas solicitações ignoradas. O Ministério Público também encontra dificuldades para obter uma explicação formal: levou um mês para conseguir informações oficiais do DAEE, e até 23 de abril aguardava posicionamento oficial da ANA e da Agência Reguladora de Saneamento de Energia de São Paulo (Arsesp).
O Ministério Público quer que o racionamento seja instituído de forma oficial no estado. “Não temos informação técnica que indique se a próxima estação de chuvas será normal ou seca, como a deste ano. Não temos informações sobre o planejamento das agências envolvidas, estaduais e federais, para recuperar o Sistema Cantareira após esse período de desabastecimento. A situação é grave e, até agora, o racionamento é a medida técnica mais adequada para garantir a saúde da população e o equilíbrio ambiental dos mananciais”, lamenta o promotor Ivan Carneiro Castanheiro, do Grupo de Atuação Especial do Meio Ambiente (Gaema) de Piracicaba.
Há três inquéritos em andamento por parte dos Gaemas de Piracicaba e Campinas, da promotoria do meio ambiente do Ministério Público Estadual e do Ministério Público Federal, e a falta de prestação de contas sobre o caso pode inspirar uma ação de improbidade administrativa contra o governador Alckmin.
Em 25 de abril, o Consórcio PCJ, que representa 43 municípios e empresas baseados nos mananciais dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí realizou protesto cobrando do estado a decretação de calamidade pública.
Em pronunciamentos oficiais e declarações à imprensa, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), é categórico: não haverá racionamento de água em 2014. A temporada é complicada. A capital será vitrine internacional do país durante a Copa do Mundo e a população decidirá nas urnas, em outubro, se mantém com o tucano - como ocorre desde 1995 - a chave do Palácio dos Bandeirantes, sede governo paulista. A realidade, porém, se impõe. Diante da pior estiagem desde o início das medições, há 84 anos, o Sistema Cantareira, responsável pelo abastecimento de água de 8 milhões de pessoas na região metropolitana de São Paulo, começou o ano com apenas 27% de seu volume útil; no fim de abril, minguava abaixo dos 11%.
De acordo com o grupo de acompanhamento formado pela Agência Nacional de Águas (ANA), o estadual Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE), a estatal paulista de saneamento Sabesp e órgãos municipais, o volume útil do reservatório pode se esgotar em julho, e o “volume morto”, reserva abaixo da altura de captação das bombas da Sabesp, que começa a ser explorado para abastecimento agora em maio, segura a demanda da Grande São Paulo por mais quatro meses, no ritmo atual de consumo.
Desde fevereiro, quando reconheceu publicamente o estado de emergência nas reservas de água do estado, o governo pendulou entre medidas consideradas de inúteis a ilegais. Entre elas, o uso de um avião monomotor para “bombardear” nuvens sobre o Cantareira na tentativa de “forçar” a chuva; o desconto de 30% na conta de água para quem reduzir o consumo em 20%; a ideia de ligar o Sistema Cantareira a outros reservatórios de água para compensar a vazão reduzida; e a proposta de multar em 30% sobre o valor da conta de água quem aumentar o consumo em relação ao mês anterior.
Esta última, antes mesmo de ser oficializada, já causou reação do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), que considera a multa ofensiva ao Código de Defesa do Consumidor pelo fato de o governo não ter tomado medidas para evitar a situação de escassez. “O governo do estado tem conhecimento desde 2002 dos níveis preocupantes dos reservatórios de água e, no entanto, não adotou, na velocidade necessária, medidas como a diminuição das perdas físicas de água (perto de 25% da água tratada é perdida na rede de distribuição)”, diz o Idec, em nota. O instituto pede também “postura mais proativa” do governo estadual. “A responsabilização deve ser coletiva e, mesmo que a população venha a sofrer com o racionamento, que também tem seus inconvenientes, este já deveria ter iniciado”, diz o gerente técnico do Idec, Carlos Thadeu de Oliveira.
Na prática
Enquanto a situação se agrava, o racionamento já é realidade em áreas da capital, em cidades da região metropolitana, como Osasco e Guarulhos, e da região de Campinas, no interior. Em São Paulo, ofício assinado em 15 de abril pelo secretário municipal de Governo, Chico Macena, revela que a pressão da água que chega à cidade está caindo em até 75% durante a madrugada, dificultando a chegada a locais com elevação do solo superior a 10 metros – afetando cerca de 260 mil pessoas que vivem em Tucuruvi e Tremembé, bairros da zona norte.
O caso de Guarulhos é parecido, porém mais grave: a cidade tem uma empresa municipal de tratamento e abastecimento, mas compra água da Sabesp por atacado, um investimento de cerca de R$ 100 milhões por ano. No entanto, como a população local não alcançou os resultados esperados pelo governo estadual com a campanha de descontos na conta, em março, a Sabesp reduziu o volume vendido à cidade. Com a responsabilidade de iniciar um rodízio no fornecimento, o prefeito Sebastião Almeida (PT) disse à época que foi avisado por um e-mail do corpo técnico do governo estadual que teria de aplicar o racionamento a 850 mil pessoas com apenas dois dias de antecedência.
Em Guarulhos, 1 milhão de moradores enfrentam abastecimento inconstante. As cidades da região de Campinas e de Piracicaba vivem situação similar, depois que o volume total de água fornecido para a região, onde vivem 3 milhões de pessoas, foi reduzido de 5 mil para 3 mil litros por segundo, em março.
Manipular os valores da conta de água para induzir um tipo de “racionamento voluntário” ou proibir a menção à palavra “racionamento” a cada anúncio de ações do governo não é suficiente para lidar com a situação. E a falta de água já causa reações irritadas da população. Em 21 de abril, moradores dos bairros Cachoeirinha e Vila Marina realizaram um protesto na Avenida Coronel Sezefredo Fagundes. Um ônibus foi queimado antes de as cerca de mil pessoas presentes ao ato serem dispersadas pela polícia.
“Aqui a água começou a vir esbranquiçada, mas deve ser bom, né? Para matar as bactérias”, diz a aposentada Alzira Fernandes, 71 anos, moradora dessa região da zona norte desde que nasceu. “Passei mal do estômago um tempo atrás, e o médico disse que podia ser a água.” Como sua casa não tem caixa, ela é imediatamente afetada todas as vezes que falta água, o que não acontece com seus vizinhos que têm reservatório em casa. “Minha sobrinha mora ao lado da minha casa, mas lá não faltou. Aqui eu fiquei sem algumas vezes no último mês”, conta.
Alzira, mesmo sem caixa d’água, tem menos problemas do que os moradores dos morros que se erguem de ambos os lados da avenida. O motorista Bruno César, de 27 anos, que possui caixa, enfrenta problemas constantes de desabastecimento. “Durante a semana retrasada inteira (de 6 a 12 de abril), a água acabava às 22h e só voltava às 6h. Aqui, quem demorava para ir tomar banho à noite corria o risco de ir pro trabalho sem se lavar no dia seguinte. Tivemos de juntar água para não ficar sem”, diz. “No domingo daquela semana, a água parou às 11h30 da manhã e só voltou perto de 23h. Depois deu uma normalizada, mas a pressão continua meio baixa.”
Comerciantes de diferentes perfis sentem na pele as consequências da seca. Edison Ivanov, proprietário de uma cantina em área de classe média do Tucuruvi está antecipando o fechamento da cozinha há cerca de duas semanas por conta do corte de água à noite. “Começou a acabar a água às 23h30, aí começou a acabar às 22h, e agora às 21h30 já seca a torneira. Normalmente volta às 6h, 7h, mas, em um domingo, só voltou 11h45 e eu quase perdi uma reserva para o almoço”, conta. Na porta do restaurante, uma placa avisa aos clientes que a falta de água é responsável pelo fechamento mais cedo, e sugere: “beber vinho pode”.
A situação é similar à de Marco Antônio Nunes da Silva, proprietário de um bar aos pés da comunidade do Parque Ramos Freitas, a pouco menos de dois quilômetros de distância do restaurante de Ivanov: “Ainda bem que vendo engarrafados aqui”, afirma Silva. “Há um mês, estamos passando três dias da semana sem água; é dia sim, dia não. O mesmo na minha casa, mas lá tenho caixa d’água. No bar, não, então a torneira fica seca. Ainda não tive prejuízo financeiro, mas tenho de incomodar os vizinhos para buscar baldes para lavar os copos”, diz. “O maior problema é que a Sabesp nunca avisa quando vai haver falta de água, então não podemos nem nos precaver”, lamenta.
Relatos semelhantes se repetem em reclamações postadas diariamente na página da Sabesp no Facebook. Aos questionamentos, a empresa tem respondido que os problemas são decorrentes de manutenção no sistema; quando não há justificativa, solicita mais informações e diz que encaminhará resposta aos usuários.
A Revista do Brasil busca com porta-vozes da Sabesp e DAEE informações oficiais sobre o estresse hídrico em São Paulo desde fevereiro, mas teve suas solicitações ignoradas. O Ministério Público também encontra dificuldades para obter uma explicação formal: levou um mês para conseguir informações oficiais do DAEE, e até 23 de abril aguardava posicionamento oficial da ANA e da Agência Reguladora de Saneamento de Energia de São Paulo (Arsesp).
O Ministério Público quer que o racionamento seja instituído de forma oficial no estado. “Não temos informação técnica que indique se a próxima estação de chuvas será normal ou seca, como a deste ano. Não temos informações sobre o planejamento das agências envolvidas, estaduais e federais, para recuperar o Sistema Cantareira após esse período de desabastecimento. A situação é grave e, até agora, o racionamento é a medida técnica mais adequada para garantir a saúde da população e o equilíbrio ambiental dos mananciais”, lamenta o promotor Ivan Carneiro Castanheiro, do Grupo de Atuação Especial do Meio Ambiente (Gaema) de Piracicaba.
Há três inquéritos em andamento por parte dos Gaemas de Piracicaba e Campinas, da promotoria do meio ambiente do Ministério Público Estadual e do Ministério Público Federal, e a falta de prestação de contas sobre o caso pode inspirar uma ação de improbidade administrativa contra o governador Alckmin.
Em 25 de abril, o Consórcio PCJ, que representa 43 municípios e empresas baseados nos mananciais dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí realizou protesto cobrando do estado a decretação de calamidade pública.
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