Em um momento crítico da Guerra Fria entre as décadas de 1950 e 1970, quando muitos países do Terceiro Mundo lutavam por sua independência política e outros que já a possuíam buscavam um novo modelo de desenvolvimento econômico e social, as grandes potências defendiam seus interesses imperialistas e colonialistas por meio da promoção de golpes militares para derrocar governantes progressistas ou de esquerda. Esses interesses eram principalmente a preservação do seu espaço geopolítico diante da expansão das experiências socialistas no período pós-Segunda Guerra e a manutenção de suas empresas multinacionais.
Esses golpes, via de regra, eram protagonizados pelas Forças Armadas do país em questão sob o pretexto de garantir a “segurança nacional” e combater o comunismo, contando com o apoio civil de sua burguesia e classes médias, bem como de órgãos de imprensa sob seu controle, empresas, igrejas, entre outros aparatos da superestrutura. O apoio externo, normalmente norte-americano, assegurava os recursos para bancar a propaganda contra o governo a ser derrubado, a mobilização civil e eventualmente a compra de armas e pagamento de mercenários, caso dos golpes que derrubaram o presidente Jacobo Arbenz da Guatemala, em 1954, e Patrice Lumumba no Congo, uma década depois, além de muitos outros.
O padrão golpe de Estado por meio das Forças Armadas locais com apoio de setores da burguesia nacional para implantar ditaduras civis ou militares com envolvimento direto de agências de inteligência como a norte-americana CIA foi o que vigorou até a queda dos regimes de socialismo real no Leste Europeu e na União Soviética no final dos anos 1980. Na América Latina, poucos países escaparam dessa sina e a violação de direitos humanos foi recorde. Na já mencionada Guatemala houve o assassinato e desaparecimento de aproximadamente 200 mil pessoas entre o golpe de 1954 e a assinatura do acordo de paz entre o governo e a guerrilha de esquerda em 1996. O golpe militar que derrubou o presidente Sukarno na Indonésia, em 1965, cobrou a vida de cerca de 700 mil pessoas suspeitas de serem comunistas ou de esquerda. Na Argentina estima-se que a ditadura militar dos anos 1970 seja responsável por perto de 20 mil desaparecimentos.
A conjuntura pós-Guerra Fria significou a adoção do modelo de democracia liberal na maioria dos países que haviam optado pelo regime do socialismo real na segunda metade do século 20, bem como a redemocratização de muitos outros países que conviveram com ditaduras civis ou militares, caso do Brasil e de outros países da América Latina. Os governos civis que assumiram após as ditaduras em geral adotaram o neoliberalismo como política econômica, aprofundando a concentração de renda, o desemprego e a informalidade.
Quando o resultado eleitoral na Venezuela levou Hugo Chávez à Presidência em 1998, inaugurou-se uma série de mudanças políticas na América Latina que questionavam o modelo neoliberal vigente, bem como a geopolítica hegemonizada pelos EUA. Esses questionamentos e a busca de vários países latino-americanos por modelos de desenvolvimento mais autônomos provocaram a reação do imperialismo e dos setores econômicos e políticos nacionais a ele vinculados. Essa reação, no entanto, deixou de ser militar, como durante a Guerra Fria, assumindo nova estratégia e doutrina.
Estas consistem, grosso modo, em gerar um questionamento social ao governante em exercício que possa justificar sua destituição por meio de instrumentos previstos na legislação nacional, mesmo que sua aplicação seja distorcida. Convém lembrar que, embora as legislações de muitos países latino-americanos que passaram por ditaduras militares tenham sido reformadas após o fim desses regimes, certos poderes mantiveram-se inalterados e conservadores, como o Poder Judiciário. O sistema presidencialista é o dominante nos países latino-americanos e os Parlamentos possuem mecanismos para destituir o presidente na maioria deles (impeachment). Tais características visivelmente vigoram no Brasil e em outros países do continente.
Portanto, essas são as duas instituições com capacidade de aplicar os atuais “golpes legalizados”, como vimos no Paraguai em 2013, quando em função de um conflito de terras na região de Curuguatay morreram vários camponeses e policiais. Esse ocorrido pôs tanto a esquerda como a direita contra o presidente Fernando Lugo e, em menos de 48 horas, o Parlamento paraguaio, por meio de um “julgamento político”, votou por sua destituição, uma vez que seu apoio parlamentar era praticamente inexistente. Essa adjetivação da decisão visou impedir qualquer tipo de debate jurídico sobre seu mérito, já que o Parlamento é um organismo essencialmente político.
O golpe aplicado contra o presidente Manoel Zelaya de Honduras, em 2008, quando um pelotão militar o retirou de madrugada do palácio presidencial e o despachou para a Costa Rica, foi referendado imediatamente pelo Parlamento e pela corte suprema do país. Como justificativa, alegaram que Zelaya pretendia ilegalmente mudar a Constituição hondurenha para possibilitar a reeleição presidencial, embora ele mesmo não fosse diretamente beneficiado, pois o referendo que propôs para definir a questão seria realizado somente na eleição que escolheria seu sucessor.
Entretanto, em outros países da região em que os presidentes têm maior poder e maior representatividade, como na Venezuela, Bolívia e Equador, a estratégia golpista teria de ser mais sofisticada, e assim foi introduzido o elemento mobilização social, bem como atos de violência ou sabotagens que pudessem desgastar o governo.
A Venezuela enfrentou essa situação pelo menos três vezes. Na primeira, houve um golpe civil-militar clássico que, no entanto, destituiu por menos de 24 horas o presidente Hugo Chávez, pois a população e militares leais o reconduziram ao governo. Nas outras, tudo começou com processos de mobilização como a greve geral de 2002, o questionamento da oposição ao resultado eleitoral que sagrou Nicolás Maduro vitorioso em 2013 e as recentes manifestações articuladas pelos setores oposicionistas mais direitistas, como Leopoldo Lopez e Maria Corina Machado. Na verdade, essas mobilizações são organizadas por setores sociais minoritários, embora contem com apoio externo.
A mídia que as apoia lhes dão uma dimensão muito maior do que a real e, além disso, a introdução do fator violência com mortes de civis por meio de franco-atiradores, conforme verificado em vários momentos na Venezuela ou no já mencionado massacre de Curuguatay. Essas mortes tendem a ser divulgadas pela mídia como de responsabilidade do governo, que estaria reprimindo duramente manifestações legítimas. A intenção é criar um ambiente que favoreça a intervenção de alguma instituição supostamente republicana para restaurar a ordem e a paz social e dar legitimidade popular ao golpe de Estado.
O presidente da Bolívia, Evo Morales, enfrentou algo semelhante durante seu primeiro mandato por meio de um movimento separatista que opunha várias províncias ao governo central, quase paralisando o país. O presidente Lula, no Brasil, também enfrentou um processo político desgastante em 2005 que a oposição brasileira só não levou até o fim porque imaginava que a eleição do ano seguinte resolveria a questão a seu favor. E agora estamos assistindo aos desdobramentos das investigações sobre a Petrobras com as quais a oposição pretende questionar o mandato da presidenta Dilma.
Não é apenas na América Latina que as forças conservadoras desprezam a democracia para defender seus interesses. Na Europa, berço da democracia ocidental, há vários casos da utilização de mecanismos burocráticos para defender certos interesses econômicos em detrimento da opinião majoritária da população. Por exemplo, a imposição das medidas de austeridade na Grécia pela Troika, formada pelo Comissão Europeia, Banco Central Europeu e FMI, impedindo que o governo de Georges Papandreau as submetesse a referendo popular, assim como a pressão da mesma Troika em 2010 sobre o Parlamento italiano para substituir o governo Berlusconi por um “gabinete técnico” que levasse as medidas de austeridade adiante na Itália. Desde aquele momento até hoje o país já está no terceiro primeiro-ministro não eleito pelo povo.
Ou seja, num primeiro momento era importante que o capitalismo neoliberal fosse legitimado democraticamente, e, como não havia contraponto devido à queda dos regimes do socialismo real e a crise da social democracia, foi o que aconteceu. No entanto, como agora há questionamentos sérios a esse modelo, principalmente pelas experiências alternativas na América Latina, a legitimação democrática torna-se menos importante e, nesse sentido, a pressão que os governos progressistas da região ora sofrem tende a aumentar, pois há poucos aliados com os quais poderão contar no resto do mundo. Ou seja, os golpes de Estado de ontem eram para combater o comunismo e atualmente servem para defender o neoliberalismo.
* Kjeld Jakobsen é diretor da Fundação Perseu Abramo.
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