quarta-feira, 25 de julho de 2018

Lula, Rosa Luxemburgo e a resistência

Do blog Pataxó
Por Paulo Moreira Leite, em seu blog:

O esforço para garantir a liberdade de Lula e sua presença na campanha presidencial deu origem a um debate conhecido. Conforme vozes respeitáveis da luta política, "só um levante popular " ou "só uma greve geral" seriam capazes de garantir o respeito pelos direitos de Lula, a começar por sua liberdade e pela presença na campanha presidencial.

Para sustentar este argumento, diz-se que as "vias institucionais" se esgotaram e deixaram de abrir caminho para qualquer avanço. Pode-se deduzir assim - de forma um tanto mecânica, em minha opinião - que "nada mais resta" além de iniciativas de caráter radical e mesmo revolucionário.

O problema se agrava quando a "única saída que resta" também não funciona e o comparecimento popular às passeatas, comícios e concentrações de natureza política frequentemente decepcionam seus organizadores. Em vez de romper uma situação bloqueada, cria-se um novo impasse e uma nova sensação de impotência diante de um golpe em profundidade contra o presente e o futuro das brasileiras e dos brasileiros iniciado pela deposição de Dilma sem crime de responsabilidade.

Em setembro de 2017, ainda em liberdade, Lula deu sua visão sobre o assunto numa entrevista ao programa Contraponto, na rádio Trianon. Depois das gravações de Joesley Batista, a pergunta do momento tratava da dificuldade para se promover grandes mobilizações de massa para atender ao grito de "Fora Temer, Diretas-Já", que tomava as ruas e praças do país. Com a autoridade natural de quem esteve a frente das principais lutas populares dos últimos 50 anos, Lula pediu humildade aos "formadores de opinião" que dão a impressão de "entender mais do povo do que o próprio povo". Explicou: "o povo sabe que a relação de forças não permite que a gente possa fazer as mudanças que precisamos. Todo mundo sabe que não temos voto (para reformar a Constituição e mudar o calendário eleitoral) para isso." Deixando claro que acredita que a maioria das pessoas só se mobiliza para atingir objetivos que considera capaz de alcançar, Lula acrescentou: "o povo está se preparando, em sua sabedoria, para, no momento certo, fazer as coisas que tem que fazer".

1917, 1954 e 1978
A leitura de "A greve de 1917", de José Luiz del Royo, mostra o potencial das lutas de caráter insurreicional num país que assistia a primeira grande mobilização de trabalhadores de São Paulo. Numa paralisação das empresas do setor têxtil, uma greve de caráter salarial logo evoluiu para uma mobilização de natureza política e com ampla participação popular. Quando se estabeleceu um impasse entre as lideranças do Comitê de Defesa de Proletária, e empresários tão conservadores que remetiam recursos para a Itália para financiar o fascismo de Mussolini, os dirigentes dos grandes jornais da cidade -- Diário Popular, Estadão, Jornal do Comércio e outros -- entraram em cena como mediadores. Resolveram o conflito, definindo o atendimento de boa parte das reivindicações, a começar pelo aumento de 20% nos salários. O balanço final não foi pacífico.

Vários líderes operários foram sequestrados em suas casas, e, como se descobriu anos depois, mortos e enterrados clandestinamente no Araçá, um dos cemitérios da cidade de São Paulo, que assinam inaugurava a prática dos desaparecimentos políticos. Os lideres mais destacados foram embarcados de navio, em Santos, para serem expulsos do país. Puderam retornar várias semanas depois, graças a uma sentença do Supremo Tribunal Federal que considerou, por 7 votos a 6, que a expulsão era ilegal. Numa demonstração do uso da justiça criminal para fins políticos já estava em curso, o militante anarquista Edgar Leuenroth, operário gráfico e jornalista, cumpriu seis meses de prisão pela acusação de ter sido o "autor psíquico-intelectual" do roubo de seis sacos de farinha de trigo arrebatados por famílias esfomeadas durante a greve.

Os brasileiros promoveram um genuíno levante popular em agosto de 1954, após o suicídio de Getúlio Vargas. O centro do Rio de Janeiro, de São Paulo e de outras cidades brasileiras foi ocupado por uma massa inconformada e agressiva, que atacou edifícios e instituições identificadas com o golpe contra Getúlio, empastelando vários jornais, inclusive as redações da imprensa do PCB, que integrava o bloco dos adversários do varguismo. A energia liberada por aquela mobilização gigantesca assegurou a sobrevivência da Constituição de 1946, permitindo a campanha e a posse de Juscelino, que a cúpula militar tentava impedir de qualquer maneira. Nos anos seguintes, foram vencidas várias tentativas de golpe militar, numa resistência que passou pela crise da renúncia de Jânio em 1961 e se prolongou até a derrota de 1964.

Buscando o terreno de lutas recentes, também é correto pensar em 1978, momento menos lembrado do que deveria. Após uma greve nas montadoras do ABC, teve início uma sequencia não planejada nem articulada de paralisações pelo país inteiro, envolvendo médicos e operários da construção civil, professores e jornalistas, funcionários públicos e metalúrgicos, levando um ministro do regime militar a fazer a pergunta inesquecível: "Que país é este?" Não há simples coincidência no fato de que, um ano depois, numa evolução em cascata, os presos políticos deixaram a cadeia e os exilados puderam retornar; em 1980 nasceu o PT, primeiro partido operário legal desde 1947 e em seguida a primeira central sindical independente em décadas. Em 1982, os governadores de Estado passaram a ser eleitos por voto direto e em 1984 ocorreu a campanha das diretas-já.

Ainda que apresentassem uma natureza diversa dos anteriores, pois teve sua direção política alterada de forma radical no curso das mobilizações, os protestos de massa 2013 deslocaram o poder de Estado e paralisaram as forças da ordem, encurralando o governo Dilma. Ao propor a convocação de uma Constituinte como resposta a situação, proposta que não teve forças para levar adiante, a presidente deixou claro o tamanho da mobilização que o país enfrentava.

A experiência histórica de mais de um século ensina que o fator determinante, aqui, envolve a conjuntura, este elemento que define a forma pela qual as mulheres e os homens podem atuar para transformar uma situação dada. Mais do que uma escolha arbitrária, a realização de um levante popular é uma imposição de determinado momento político.

"Não é a greve de massas que produz a revolução. É a revolução que produz a greve de massas", explica Rosa Luxemburgo (1871-1919), num texto clássico, escrito em 1906, "Greve de Massas, Partido e Sindicato". Num período da história no qual a palavra "revolução" não havia saído do vocabulário corrente, Rosa Luxemburgo emprega o termo "greve de massas" num sentido amplo, que envolve manifestações de caráter insurrecional de forma geral, como os levantes que hoje frequentam o vocabulário da luta pelos direitos de Lula.

Lembrando que "seis meses de revolução contribuirão mais para a educação das massas do que dez anos de comícios e panfletos", ela aponta para mobilizações que se assemelham a um vulcão em erupção, no qual trabalhadores e trabalhadoras derrubam direções sindicais que não se mostram a altura das necessidades da luta, fundam novas entidades quando as antigas foram fechadas pela polícia e não têm receio de se organizar clandestinamente quando a repressão policial atua com violência.

Revolucionária capaz de combinar a luta política, na qual perdeu a vida, Rosa Luxemburgo deixou uma produção teórica diferenciada, com estatura comparável a Lenin, Trotsky e Gramsci, onde esclarece que nessas mobilizações insurrecionais "o elemento espontâneo representa um enorme papel, como motor e como freio". Ela também explica que em situações como esta, as direções e lideranças não devem pretender assumir o comando das mobilizações, mas "adaptar-se o mais habilmente possível" às condições dadas.

Descrevendo mobilizações profundas, que envolvem homens e mulheres que raramente aparecem nos sindicatos e entidades populares, Rosa Luxemburgo distingue as as lutas de caráter insurreicional das greves regulares do movimento sindical, que classifica como ações de caráter simbólico. Não se deve enxergar nenhum rebaixamento nessa distinção mas uma tentativa de lembrar que a luta dos trabalhadores por seus direitos pode assumir formas diferenciadas, conforme a situação política. Num caso, a força dos trabalhadores é exibida simbolicamente, em atos demonstrativos, inteiramente enquadrados pelas instituições do Estado. Em outro, a força se transforma em luta de verdade, num conflito no qual homens e mulheres arriscam seus empregos, sua estabilidade e mesmo suas vidas.

A elaboração de Rosa Luxemburgo tem como base o processo revolucionário de 1905, na Rússia czarista. Foi um levante grandioso, que se espalhou por vilas e cidades. Apesar da grandeza das mobilizações, espalhadas pelo território de um dos países mais extensos do mundo, a luta encerrou-se em derrota. As lideranças foram mortas e presas, torturadas e exiladas.Como resposta à mobilização, o Czar chegou a convocar um parlamento, sem poder real algum, que logo seria boicotado pelos revolucionários, a começar pelos bolcheviques liderados por Lenin.

Ficou o registro, porém, de uma luta iniciada a partir da reação espontânea da população a uma brutal repressão policial contra um protesto pacífico de camponeses que se dirigiam a Moscou.

Evitando qualquer apelo fácil -- aquilo que hoje chamaríamos de propaganda enganosa -- Rosa Luxemburgo sublinha que "o preço que a massa paga por cada revolução é um oceano de privações e sofrimentos horríveis". Procurando explicar a força que mantém homens e mulheres de pé, quando enfrentam ameaças e violências de todo tipo, ela ressalta a importância da formação política quando adverte: "só um idealismo muito grande permite manter-se insensível aos sofrimentos mais atrozes".

Comprando a discussão tanto com lideranças que se recusavam a enxergar a imensa disposição de luta expressa pelo movimento operário em determinados momentos, como aqueles que imaginavam ser possível retirar uma greve geral do bolso do colete, ao sabor das próprias conveniências, ela se apoia num argumento de Friederich Engels contra Bakunin para sustentar seu ponto de vista, construindo uma narrativa imaginaria daquela mobilização que -- na teoria -- deveria enterrar o regime capitalista.

"Uma bela manhã", escreveu Engels, sem resistir à ironia, "operários de todas as empresas de um país ou de todo o mundo abandonam o trabalho, obrigando assim, mais ou menos em quatro semanas, as classes poderosas ou a capitular ou atacar os operários, tendo estes o direito de defender-se e, ao mesmo tempo, abater inteiramente a velha sociedade".

A discussão não termina aqui, porém.

Condenado sem provas, Lula segue na cadeia mesmo depois que um habeas corpus assinado dentro de todas as formalidades legais determinou sua soltura. Em 4 de agosto, ele vai confirmar a candidatura. No dia 15, haverá uma concentração em Brasília para se fazer o registro no TSE. A partir daí inicia-se aquele momento que "o povo está, com muita paciência, esperando".

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