Charge: Pataxó |
Durante longo período o presidencialismo brasileiro foi caracterizado como sendo de “coalizão”, aquele arranjo no qual o centro do Executivo negocia cada passo com uma nuvem de partidos ou consórcios de interesse pouco significativos por si mesmos, mas dotados do inestimável recurso que é o poder de veto. Pois bem, isso que agora vemos ser construído, tudo indica que em consonância a plano muito bem pensado em escala transnacional, é regime bem diferente. Pode ser denominado, à falta de outro termo, “presidencialismo de ocupação”.
Em análise recente Wanderley Guilherme dos Santos usou o termo “ocupação” para caracterizar o empenho do novo governo em tratar opositores como “estrangeiros”. Nisso aponta aspecto importante do processo em curso e se aproxima da concepção que aqui proponho, embora o faça da perspectiva de específico governo, quando aqui se trata de algo que supera de longe a ínfima figura de Bolsonaro e sua trupe. Não se trata de mera ocupação de postos e de acesso a recursos. É algo mais fundo que se vai formando, e sua lógica não é propriamente política, pelo menos não enquanto a organização e o exercício do poder forem pensados num registro democrático. Trata-se de lógica copiada da estratégia militar.
Que ninguém se iluda. O que se ensaia no Brasil não é mera aberração sustentada por governo ocasional. Tem importância planetária, como tudo aquilo que cerca a bem-sucedida campanha eleitoral e o modo como se busca consolidar o poder uma vez conquistado (o termo é apropriado). A arquitetura do conjunto sugere a emergência de um projeto muito mais amplo do que o caso brasileiro. É verdade que o Brasil oferece cenário exemplar para isso. Para além dos Estados Unidos de Trump, constitui caso decisivo, pela magnitude e importância no concerto internacional, apesar de tudo. Sobretudo, permite testar a combinação entre o direcionamento high-tech de processo eleitoral e a implantação de formato de governo conforme estratégia política peculiar. Consiste ela em tratar a nação como um território a ser ocupado, em dois passos.
Que ninguém se iluda. O que se ensaia no Brasil não é mera aberração sustentada por governo ocasional. Tem importância planetária, como tudo aquilo que cerca a bem-sucedida campanha eleitoral e o modo como se busca consolidar o poder uma vez conquistado (o termo é apropriado). A arquitetura do conjunto sugere a emergência de um projeto muito mais amplo do que o caso brasileiro. É verdade que o Brasil oferece cenário exemplar para isso. Para além dos Estados Unidos de Trump, constitui caso decisivo, pela magnitude e importância no concerto internacional, apesar de tudo. Sobretudo, permite testar a combinação entre o direcionamento high-tech de processo eleitoral e a implantação de formato de governo conforme estratégia política peculiar. Consiste ela em tratar a nação como um território a ser ocupado, em dois passos.
Primeiro, a conquista de apoio no interior da sociedade, de preferência mediante campanha eleitoral com efeito legitimador. Em seguida, a ocupação mediante movimento de pinça executado por duas forças poderosas agindo em conjunto (sendo que neste ponto reside o essencial e também o ponto vulnerável de tal operação). Uma delas consiste na concentração do poder de gestão e planejamento econômicos em um núcleo ministerial concentrado e com elevada autonomia. A outra é formada por igualmente concentrado núcleo de condução e legitimação mediante o manejo dos instrumentos legais, repressivos e de propaganda disponíveis ou a serem construídos. Ambas convergem na tarefa de liquidação das “forças inimigas”, sejam elas partidos ou movimentos no interior da sociedade. Ao mesmo tempo, colocam o chefe de governo em situação polarizada. Ou bem ele concentra poder suficiente para se impor aos seus superministros, e nesse caso abre-se o cenário para ditadura franca (e indesejada no modelo), ou então fica reduzido por eles a papel de mero defensor e executivo de suas diretrizes. Nesse modelo o presidente (ou quem executa tal função, como na variante Putin) opera em cenário extremado, de alta polarização, como que operando com valores “zero” ou “um”, numa “digitalização” da política bastante afim ao uso da tecnologia informática.
Fascismo, como imaginam alguns? Não, Bolsonaro nada tem a ver com Mussolini (de quem no máximo poderia ser pálida caricatura), muito menos com Hitler. Não representa movimento apoiado em Estado intervencionista em todas as áreas (avesso, portanto, à lógica do mercado irrestrito), nem promotor de mobilização social dirigida com liderança concentrada em figura saliente, e nem sequer exibe ideologia própria. Se quisermos traçar paralelo histórico da maior relevância no momento atual, seu governo evoca outra figura dos sinistros anos 30 do século passado. Trata-se de Goebbels, o mago da comunicação e da propaganda nazista, sempre pronto a fazer uso da mais avançada tecnologia para comprovar sua tese de que uma mentira (hoje os artífices da novilingua preferem “fake news”) continuamente repetida vira verdade.
Fascismo, como imaginam alguns? Não, Bolsonaro nada tem a ver com Mussolini (de quem no máximo poderia ser pálida caricatura), muito menos com Hitler. Não representa movimento apoiado em Estado intervencionista em todas as áreas (avesso, portanto, à lógica do mercado irrestrito), nem promotor de mobilização social dirigida com liderança concentrada em figura saliente, e nem sequer exibe ideologia própria. Se quisermos traçar paralelo histórico da maior relevância no momento atual, seu governo evoca outra figura dos sinistros anos 30 do século passado. Trata-se de Goebbels, o mago da comunicação e da propaganda nazista, sempre pronto a fazer uso da mais avançada tecnologia para comprovar sua tese de que uma mentira (hoje os artífices da novilingua preferem “fake news”) continuamente repetida vira verdade.
O novo mundo, aquele que se busca criar na era Trump (e Putin) é o mundo de Goebbels, a mais importante figura política da extrema direita no século XX. Nele não há lugar para déspotas desnecessários ou incômodos e, sobretudo, acidentais. Contudo, não será possível governar só com o lado soft do exercício do poder. Permanecendo em nossa analogia histórica, todo Goebbels precisa de um Himmler, o homem que controla os corpos combatentes de elite (SS, no caso nazista) e o conjunto do aparelho repressivo (Gestapo, no mesmo caso), com o respaldo de um Judiciário complacente, quando não cúmplice. Precisa, pois, de agente capaz de concentrar em si todo o aparato da normatização e da força para implementa-la. Não está claro quem faz o papel de Goebbels no caso brasileiro, nem parece que seja local, talvez esteja na terra de Trump. É claro, porém, que Moro nada tem de Himmler, salvo a perturbadora analogia de posição e função. Quanto ao fascismo, trata-se de regime centrado em Estado inequivocamente forte e agressivamente interventor, sem traço de qualquer liberalismo, antigo ou neo. Um Estado que faz questão de tornar evidentes a forma e o exercício do poder, em contraste com aquilo que se desenha aqui, bem ao gosto de uma sociedade adepta ao jogo do faz de conta. Brutalidade criminosa não falta, nem falas ameaçadoras mais destinadas a desviar a atenção do que a dirigir. O importante nesse modelo é que o trabalho sujo é como que terceirizado, deixado ao encargo de setores da chamada sociedade civil e dos sicários que para tanto forem contratados.
Analogias históricas são instrutivas, desde que não levadas ao pé da letra. Há momentos em que trazem à tona semelhanças e afinidades muito nítidas entre regimes autoritários ontem e hoje (e autoritarismo é o que menos falta no modelo que se vai construindo, importa descobrir a forma particular que vai assumindo em cada caso). Exemplo eloquente daquelas afinidades é dado pela insistência do atual presidente quando candidato no lema “Meu partido é o Brasil”. Parece inofensivo, mas nele ressoa tudo o que há de mais assustador na linguagem e na prática da extrema direita: a afirmação da compacta e homogênea unidade nacional, que ninguém pode perturbar por atos ou por palavras, sob risco de ser excluído do todo unitário ou, no limite, exterminado (como já se ameaçou mais de uma vez, em perigosas bravatas). Associado a dois outros itens daquele complexo temático, o da identificação no interior da sociedade da entidade responsável por todas as mazelas (uma etnia, por exemplo, ou um específico partido) e o da exigência de “limpar” a nação mediante a eliminação de impurezas como a “imoralidade” e a “corrupção”, temos uma temática explosiva, pronta a causar sérios problemas se não for neutralizada em tempo.
O ponto essencial, contudo, não é esse, da comparação entre regimes distantes no tempo, embora com traços comuns persistentes. Ter clareza quanto a isso é recomendável, desde que não se perca de vista o essencial. É para a frente, para o futuro próximo que se deve dirigir o olhar daqueles resistem à nova ordem em gestação. Por uma razão decisiva: estamos diante da emergência de algo novo, de modo peculiar de organização e exercício do poder em escala planetária, e para cuja consolidação o caso brasileiro é da maior importância, por tudo aquilo que este país representa. É de se lembrar, neste ponto, que o jogo, aqui ou nos Estados Unidos e alhures, só começou. No Brasil o passo decisivo para sua definição é dado pelo processo eleitoral em 2022, com todas suas promessas e ameaças. Estamos no centro, por razões que bem gostaríamos de dispensar. Tanto mais se torna vital a lucidez, a abertura para o novo também na sua face sombria, a atenção e a inteligência alerta, móveis, que saibam enfrentar o pior risco, o de perder o tempo da história.
* Gabriel Cohn é professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
Analogias históricas são instrutivas, desde que não levadas ao pé da letra. Há momentos em que trazem à tona semelhanças e afinidades muito nítidas entre regimes autoritários ontem e hoje (e autoritarismo é o que menos falta no modelo que se vai construindo, importa descobrir a forma particular que vai assumindo em cada caso). Exemplo eloquente daquelas afinidades é dado pela insistência do atual presidente quando candidato no lema “Meu partido é o Brasil”. Parece inofensivo, mas nele ressoa tudo o que há de mais assustador na linguagem e na prática da extrema direita: a afirmação da compacta e homogênea unidade nacional, que ninguém pode perturbar por atos ou por palavras, sob risco de ser excluído do todo unitário ou, no limite, exterminado (como já se ameaçou mais de uma vez, em perigosas bravatas). Associado a dois outros itens daquele complexo temático, o da identificação no interior da sociedade da entidade responsável por todas as mazelas (uma etnia, por exemplo, ou um específico partido) e o da exigência de “limpar” a nação mediante a eliminação de impurezas como a “imoralidade” e a “corrupção”, temos uma temática explosiva, pronta a causar sérios problemas se não for neutralizada em tempo.
O ponto essencial, contudo, não é esse, da comparação entre regimes distantes no tempo, embora com traços comuns persistentes. Ter clareza quanto a isso é recomendável, desde que não se perca de vista o essencial. É para a frente, para o futuro próximo que se deve dirigir o olhar daqueles resistem à nova ordem em gestação. Por uma razão decisiva: estamos diante da emergência de algo novo, de modo peculiar de organização e exercício do poder em escala planetária, e para cuja consolidação o caso brasileiro é da maior importância, por tudo aquilo que este país representa. É de se lembrar, neste ponto, que o jogo, aqui ou nos Estados Unidos e alhures, só começou. No Brasil o passo decisivo para sua definição é dado pelo processo eleitoral em 2022, com todas suas promessas e ameaças. Estamos no centro, por razões que bem gostaríamos de dispensar. Tanto mais se torna vital a lucidez, a abertura para o novo também na sua face sombria, a atenção e a inteligência alerta, móveis, que saibam enfrentar o pior risco, o de perder o tempo da história.
* Gabriel Cohn é professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP.
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