Por Antônio Augusto de Queiroz, na revista Teoria e Debate:
O presidente eleito, sob o argumento de que a estrutura partidária está viciada e só age à base do toma lá dá cá, fez campanha prometendo que não negociaria com os partidos a formação de seu governo, mas, tão logo eleito, passou a negociar indicações com as bancadas informais, temáticas ou transversais, que se articulam no Congresso para a defesa de interesses setoriais.
Na formação do primeiro escalão de seu governo, aparentemente foi coerente, na medida em que não consultou os partidos nos casos em que recrutou filiados em alguns deles. Entretanto, há três equívocos nesse raciocínio, que precisam ser explicitados, além de mostrar a mistificação retórica que isso representa.
O primeiro equívoco consiste em dizer que a negociação com as bancadas informais são republicanas e não se dão em bases fisiológicas, como supostamente ocorreria em relação aos partidos. É preciso conhecer o que significam ou o que representam os partidos e as bancadas informais para compreender o desacerto dessa opção ou escolha.
Os partidos, por sua gênese, se guiam por uma doutrina, seguem princípios, e, no exercício da sua função precípua de agregação de interesses, estão aptos a representar toda a sociedade, apresentam programas e ideias que orientam os mandatos de seus representantes na formulação e implementação de políticas públicas, atendendo a uma multiplicidade de interesses, enquanto as bancadas informais são grupos de pressão dentro do Parlamento, que se organizam para articular interesses específicos dos segmentos que representam, sempre condicionando seu voto ao atendimento de suas demandas e reivindicações setoriais. Logo, não existe nenhuma base para se afirmar que as bancadas informais seriam menos interessadas em favores do governo do que os partidos. Pelo contrário, pela sua própria natureza, elas representam de forma mais direta os lobbies do que os próprios partidos.
Se a negociação dos conteúdos das políticas públicas, bem como do seu processo de votação, fosse transferida dos partidos para as bancadas informais, como ficariam os segmentos da sociedade que não estivessem organizados em bancada dentro do Parlamento? Ficariam sem voz nem vez? A quem interessaria o esvaziamento dos partidos, especialmente no momento em que a sociedade defende uma reforma política que teria exatamente o condão de fortalecer e empoderar os partidos, inclusive para cobrar deles, e não dos parlamentares individualmente, os compromissos programáticos, além de baratear os custos de campanha, dar equidade na disputa eleitoral e reduzir a corrupção eleitoral?
O segundo equívoco consiste em achar que as bancadas informais terão mais controle sobre os parlamentares do que os partidos. Tudo no Congresso gira em torno dos partidos. Não há institucionalidade no processo legislativo fora dos partidos, e mesmo no caso de partidos em que há um líder forte, centralizador, o funcionamento parlamentar obriga esse líder a dividir o exercício do poder. Já as frentes parlamentares ou bancadas informais não possuem nenhum controle sobre os seus integrantes, nem mesmo possibilidade de constrangê-los ou puni-los caso ajam em desacordo com a sua recomendação. O único elo que une seus membros é, precisamente, a subordinação ao interesse temático que representam.
Os partidos, ao contrário, possuem muitos poderes e prerrogativas que vão desde o exercício do monopólio da disputa eleitoral e do exercício do mandato, na medida em que o mandato pertence ao partido e não ao eleito no pleito proporcional, passam pela orientação e encaminhamento de votação, pela designação de relatores e indicação de nomes para compor ou presidir colegiados no Parlamento, até o poder de fechar questão e punir aqueles que agirem em desacordo com a orientação partidária.
O terceiro equívoco consiste em imaginar que os partidos e suas lideranças irão abrir mão de suas prerrogativas e se curvar aos caprichos do presidente eleito, permitindo que o governo se relacione com seus parlamentares sem observância do programa, da doutrina ou da orientação partidária. Esse entendimento se agrava sob o fundamento negativo de que prefere as bancadas informais aos partidos porque estes supostamente não seriam éticos e republicanos.
Além disso, a retórica governamental de que estaria sendo coerente com o que prometeu na campanha perderá consistência na fase seguinte à formação do primeiro escalão. Aliás, o novo governo já iniciou a conversa com os partidos sobre as propostas governamentais e também na formação do segundo escalão. E nessas conversas sinalizou que terá mais políticos derrotados em seu governo do que qualquer outro presidente no período pós-redemocratização. Entretanto, o argumento para acomodar os políticos que fracassaram nas urnas, especialmente os deputados e senadores, é de que eles serão chamados a colaborar com o governo, principalmente na coordenação política, não porque pertencem aos partidos, mas porque têm capacidade de articulação ou possuem expertise para os cargos para os quais serão designados. Mais uma vez, é a lógica de aliar-se a “lobistas” em lugar de partidos, pois imagina que, agindo individualmente, esses ex-parlamentares terão acesso facilitado ao Parlamente e, assim, atuarão no “varejo” para o atendimento das demandas governamentais, evitando o “atacado” das negociações com as lideranças dos partidos.
O pior é que muitos jornalistas e analistas políticos, sendo aderente às teses do novo governo, numa postura claramente chapa branca, têm admitido que o presidente eleito pode acabar com o presidencialismo de coalização, como se ele tivesse eleito uma bancada com número suficiente para governar. Ora, enquanto os governantes não elegerem, em sua coligação, base de apoio suficiente para governar, terão que construí-la mediante coalizão, ou seja, por meio do emprego dos três instrumentos tradicionais do presidencialismo brasileiro: cargo, emendas do orçamento e negociação do conteúdo da política pública. E os interlocutores sempre foram, e continuarão sendo, os partidos políticos.
O novo governo, mais do que nunca, vai precisar de apoio parlamentar para implementar sua agenda impopular e contrária às expectativas da população, que espera medidas efetivas para combater a violência e a criminalidade, mas, também, melhorar o emprego e a renda, ampliar e melhorar a qualidade dos serviços públicos, além de combater a corrupção. Com excesso de demanda e escassez orçamentária, combinado com o voluntarismo, a belicosidade e a inexperiência da nova equipe, queremos ver como o novo governo fará para – em contexto democrático – levar à frente o ajuste fiscal, com corte drástico de despesa, de um lado, e atender as demandas que implicam aumento de gastos, de outro.
O viés autoritário do governo, para usar uma expressão em moda, está presente na indicação de seus ministros, que, com exceção da equipe econômica, foram escolhidos mais por sua agressividade aos adversários de campanha do candidato eleito do que propriamente por sua capacidade ou compromisso em resolver os graves problemas do país. Aliás, a agenda liberal/fiscal e penal do governo em nada combina com as expectativas da população, em geral, e de seus eleitores, em particular.
Além disso tudo, o novo governo pretende articular-se para viabilizar uma série de modificações regimentais para retirar a possibilidade de obstrução da oposição. Seriam pelo menos três alterações regimentais: acabar com a votação automática das emendas aglutinativas, impedir o encaminhamento de votação nos requerimentos de quebra de interstícios, e admitir a liberdade para o presidente prorrogar as sessões extraordinárias pelo tempo que considerar necessário à conclusão da pauta de votação.
O pano de fundo para a certeza de que fará o que deseja e de que terá maioria para governar é o de que o governo, com o respaldo advindo das urnas, teria legitimidade e força política para pressionar os parlamentares, individualmente ou via bancadas informais, para agirem por cima dos partidos, sob pena de constrangê-los nas redes sociais, de ameaçar convocar referendo ou plebiscito para as políticas públicas de seu interesse ou de insinuar que o ministro Sérgio Moro estaria de olho, além da chantagem ou ameaça de retirada do fundo partidário e eleitoral dos partidos.
O futuro governo, com a anuência de boa parte da imprensa e de muitos analistas políticos, não tem sido contestado sobre sua estratégia, em especial quanto aos riscos de ingovernabilidade, com potencial abuso de autoritarismo, que acarreta. Pelo contrário, tem recebido apoio e estímulo. Entretanto, quando o futuro presidente da República assumir o governo irá perceber o quanto o processo decisório é complexo, podendo se frustrar com a ausência de efetividade de suas ações, especialmente se negligenciar a relação com os partidos no Congresso. Da forma como reagirá a isso depende o futuro da democracia no Brasil.
O presidente eleito, sob o argumento de que a estrutura partidária está viciada e só age à base do toma lá dá cá, fez campanha prometendo que não negociaria com os partidos a formação de seu governo, mas, tão logo eleito, passou a negociar indicações com as bancadas informais, temáticas ou transversais, que se articulam no Congresso para a defesa de interesses setoriais.
Na formação do primeiro escalão de seu governo, aparentemente foi coerente, na medida em que não consultou os partidos nos casos em que recrutou filiados em alguns deles. Entretanto, há três equívocos nesse raciocínio, que precisam ser explicitados, além de mostrar a mistificação retórica que isso representa.
O primeiro equívoco consiste em dizer que a negociação com as bancadas informais são republicanas e não se dão em bases fisiológicas, como supostamente ocorreria em relação aos partidos. É preciso conhecer o que significam ou o que representam os partidos e as bancadas informais para compreender o desacerto dessa opção ou escolha.
Os partidos, por sua gênese, se guiam por uma doutrina, seguem princípios, e, no exercício da sua função precípua de agregação de interesses, estão aptos a representar toda a sociedade, apresentam programas e ideias que orientam os mandatos de seus representantes na formulação e implementação de políticas públicas, atendendo a uma multiplicidade de interesses, enquanto as bancadas informais são grupos de pressão dentro do Parlamento, que se organizam para articular interesses específicos dos segmentos que representam, sempre condicionando seu voto ao atendimento de suas demandas e reivindicações setoriais. Logo, não existe nenhuma base para se afirmar que as bancadas informais seriam menos interessadas em favores do governo do que os partidos. Pelo contrário, pela sua própria natureza, elas representam de forma mais direta os lobbies do que os próprios partidos.
Se a negociação dos conteúdos das políticas públicas, bem como do seu processo de votação, fosse transferida dos partidos para as bancadas informais, como ficariam os segmentos da sociedade que não estivessem organizados em bancada dentro do Parlamento? Ficariam sem voz nem vez? A quem interessaria o esvaziamento dos partidos, especialmente no momento em que a sociedade defende uma reforma política que teria exatamente o condão de fortalecer e empoderar os partidos, inclusive para cobrar deles, e não dos parlamentares individualmente, os compromissos programáticos, além de baratear os custos de campanha, dar equidade na disputa eleitoral e reduzir a corrupção eleitoral?
O segundo equívoco consiste em achar que as bancadas informais terão mais controle sobre os parlamentares do que os partidos. Tudo no Congresso gira em torno dos partidos. Não há institucionalidade no processo legislativo fora dos partidos, e mesmo no caso de partidos em que há um líder forte, centralizador, o funcionamento parlamentar obriga esse líder a dividir o exercício do poder. Já as frentes parlamentares ou bancadas informais não possuem nenhum controle sobre os seus integrantes, nem mesmo possibilidade de constrangê-los ou puni-los caso ajam em desacordo com a sua recomendação. O único elo que une seus membros é, precisamente, a subordinação ao interesse temático que representam.
Os partidos, ao contrário, possuem muitos poderes e prerrogativas que vão desde o exercício do monopólio da disputa eleitoral e do exercício do mandato, na medida em que o mandato pertence ao partido e não ao eleito no pleito proporcional, passam pela orientação e encaminhamento de votação, pela designação de relatores e indicação de nomes para compor ou presidir colegiados no Parlamento, até o poder de fechar questão e punir aqueles que agirem em desacordo com a orientação partidária.
O terceiro equívoco consiste em imaginar que os partidos e suas lideranças irão abrir mão de suas prerrogativas e se curvar aos caprichos do presidente eleito, permitindo que o governo se relacione com seus parlamentares sem observância do programa, da doutrina ou da orientação partidária. Esse entendimento se agrava sob o fundamento negativo de que prefere as bancadas informais aos partidos porque estes supostamente não seriam éticos e republicanos.
Além disso, a retórica governamental de que estaria sendo coerente com o que prometeu na campanha perderá consistência na fase seguinte à formação do primeiro escalão. Aliás, o novo governo já iniciou a conversa com os partidos sobre as propostas governamentais e também na formação do segundo escalão. E nessas conversas sinalizou que terá mais políticos derrotados em seu governo do que qualquer outro presidente no período pós-redemocratização. Entretanto, o argumento para acomodar os políticos que fracassaram nas urnas, especialmente os deputados e senadores, é de que eles serão chamados a colaborar com o governo, principalmente na coordenação política, não porque pertencem aos partidos, mas porque têm capacidade de articulação ou possuem expertise para os cargos para os quais serão designados. Mais uma vez, é a lógica de aliar-se a “lobistas” em lugar de partidos, pois imagina que, agindo individualmente, esses ex-parlamentares terão acesso facilitado ao Parlamente e, assim, atuarão no “varejo” para o atendimento das demandas governamentais, evitando o “atacado” das negociações com as lideranças dos partidos.
O pior é que muitos jornalistas e analistas políticos, sendo aderente às teses do novo governo, numa postura claramente chapa branca, têm admitido que o presidente eleito pode acabar com o presidencialismo de coalização, como se ele tivesse eleito uma bancada com número suficiente para governar. Ora, enquanto os governantes não elegerem, em sua coligação, base de apoio suficiente para governar, terão que construí-la mediante coalizão, ou seja, por meio do emprego dos três instrumentos tradicionais do presidencialismo brasileiro: cargo, emendas do orçamento e negociação do conteúdo da política pública. E os interlocutores sempre foram, e continuarão sendo, os partidos políticos.
O novo governo, mais do que nunca, vai precisar de apoio parlamentar para implementar sua agenda impopular e contrária às expectativas da população, que espera medidas efetivas para combater a violência e a criminalidade, mas, também, melhorar o emprego e a renda, ampliar e melhorar a qualidade dos serviços públicos, além de combater a corrupção. Com excesso de demanda e escassez orçamentária, combinado com o voluntarismo, a belicosidade e a inexperiência da nova equipe, queremos ver como o novo governo fará para – em contexto democrático – levar à frente o ajuste fiscal, com corte drástico de despesa, de um lado, e atender as demandas que implicam aumento de gastos, de outro.
O viés autoritário do governo, para usar uma expressão em moda, está presente na indicação de seus ministros, que, com exceção da equipe econômica, foram escolhidos mais por sua agressividade aos adversários de campanha do candidato eleito do que propriamente por sua capacidade ou compromisso em resolver os graves problemas do país. Aliás, a agenda liberal/fiscal e penal do governo em nada combina com as expectativas da população, em geral, e de seus eleitores, em particular.
Além disso tudo, o novo governo pretende articular-se para viabilizar uma série de modificações regimentais para retirar a possibilidade de obstrução da oposição. Seriam pelo menos três alterações regimentais: acabar com a votação automática das emendas aglutinativas, impedir o encaminhamento de votação nos requerimentos de quebra de interstícios, e admitir a liberdade para o presidente prorrogar as sessões extraordinárias pelo tempo que considerar necessário à conclusão da pauta de votação.
O pano de fundo para a certeza de que fará o que deseja e de que terá maioria para governar é o de que o governo, com o respaldo advindo das urnas, teria legitimidade e força política para pressionar os parlamentares, individualmente ou via bancadas informais, para agirem por cima dos partidos, sob pena de constrangê-los nas redes sociais, de ameaçar convocar referendo ou plebiscito para as políticas públicas de seu interesse ou de insinuar que o ministro Sérgio Moro estaria de olho, além da chantagem ou ameaça de retirada do fundo partidário e eleitoral dos partidos.
O futuro governo, com a anuência de boa parte da imprensa e de muitos analistas políticos, não tem sido contestado sobre sua estratégia, em especial quanto aos riscos de ingovernabilidade, com potencial abuso de autoritarismo, que acarreta. Pelo contrário, tem recebido apoio e estímulo. Entretanto, quando o futuro presidente da República assumir o governo irá perceber o quanto o processo decisório é complexo, podendo se frustrar com a ausência de efetividade de suas ações, especialmente se negligenciar a relação com os partidos no Congresso. Da forma como reagirá a isso depende o futuro da democracia no Brasil.
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