sábado, 9 de fevereiro de 2019

Bolsonaro, Piñera e as afinidades eletivas

Por Renato Martins, na revista Teoria e Debate:

As afinidades eletivas entre os atuais governantes do Chile e do Brasil não são mera coincidência. Ambos fazem parte da mesma onda ultradireitista que se espalhou pelo mundo nos últimos tempos. Os dois presidentes sul-americanos são herdeiros ideológicos do que há de pior das ditaduras militares que se impuseram nos anos 1960. Apesar das diferenças, compartilham a mesma alma reacionária.

Piñera apoiou o golpe de Pinochet, foi um entusiasta das reformas neoliberais e calou-se diante dos crimes contra os direitos humanos. Seu irmão, além de ministro do Trabalho da ditadura, compôs uma das bandas ultrarreacionárias da direita chilena. Pertencem à aristocracia. Sem produzir um parafuso, Piñera tornou-se uma das maiores fortunas do país. Ele é a cara do capitalismo chileno pós-autoritário. Especulativo e sem compromisso com projetos nacionais.

Para chegar à presidência pela primeira vez em 2010 e depois em 2018, Piñera procurou se afastar ideologicamente de Pinochet, vendendo a imagem do empresário bem-sucedido que levaria o Chile ao primeiro mundo. Ao contrário, Jair Bolsonaro serviu para os eleitores um prato bem mais indigesto, temperado de machismo, xenofobia, racismo, sexismo e antipetismo. E ódio, muito ódio, que acabou voltando-se contra ele mesmo.

Seus vínculos históricos com as milícias estão a apontar para um cenário catastrófico, muito antes do que se poderia imaginar. As bandeiras que o elegeram, como a da segurança e do combate à corrupção, estão se desmanchando no ar desde que se revelaram os vínculos que ele e sua família mantêm com milicianos foragidos, possivelmente envolvidos no ainda não esclarecido assassinato de Marielle.

Apesar das diferenças evidentes entre o empresário e o ex-militar, ao lado do qual Piñera tem a estatura de um estadista, não é preciso consultar os livros de História para confirmar as identidades ideológicas e origens autoritárias dos dois presidentes. Na dúvida, basta lembrar que ambos, em algum momento de sua história, remota ou recente, foram ou continuam sendo simpatizantes de personagens execráveis, como os coronéis Manuel Contreras, no Chile, e Brilhante Ustra, no Brasil, dois serial killers formados pelos EUA na famigerada Escola das Américas.

Atualmente, Piñera e Bolsonaro se dizem democratas. Há controvérsias, evidentemente, uma vez que essa espécie de “democrata” é a mesma que está levando ao colapso a democracia conquistada na região. Isso sem falar na destruição econômica que o também “democrata” Mauricio Macri está causando na Argentina, ao colocar o país mais uma vez de joelhos diante do FMI, por conta de suas políticas neoliberais.

O discurso nacionalista é uma das facetas mais emblemáticas e contraditórias da direita que chegou ao poder com o desmonte do progressismo sul-americano. Recentemente, os governos brasileiro e chileno se negaram a assinar o pacto internacional da ONU sobre migrações. Alegaram questão de soberania, mesmo não se tratando de um acordo vinculante. Mais um vexame internacional, seguido do “bandejão solitário” de Davos.

Segundo a difundida “doutrina do marxismo cultural”, a ONU não é outra coisa senão um ninho de comunista. O governo do Tropical Trump tem a pretensão de transformar o Brasil para todos, do Lula, no Brazil above all, dos seus colegas milicianos. É claro que o nacionalismo deles não passa de hipocrisia, que mais cedo ou mais tarde vai se revelar aos olhos da descerebrada classe média que ainda os apoia.

Um exemplo recente elucida a contradição.

No Brasil, a entrega da Embraer, do pré-sal, da Base de Alcântara e da Amazônia planejada pelo atual governo vem sendo embalada por um discurso patrioteiro. A “privatização de tudo” é o mote da atual equipe econômica, o que obviamente colide com qualquer veleidade nacionalista. Por experiência própria, sabemos que privatização implica necessariamente desnacionalização, venda do patrimônio público e alienação dos recursos naturais para monopólios internacionais e empresas estatais estrangeiras.

No Chile, há pouco ficamos sabendo que o presidente Piñera, igualmente nacionalista, destinou uma área de quase 5 mil hectares do Parque Nacional da Patagônia a uma mineradora australiana (www.interferencia.cl). Um absurdo completo, passível de acontecer somente em governos autoritários. Desde que o assunto veio à tona, lideranças sociais têm denunciado a ação lobista da Equus Mining, empresa multinacional de mineração que também opera em outros continentes.

Desde os anos 40 do século passado, a Patagônia chilena é protegida por uma rede de parques e reservas destinada a proteger o ecossistema, a fauna e a flora da região. Antes de deixar o governo, a ex-presidenta Michelle Bachelet aprovou um decreto instituindo a criação de mais três parques contíguos ao Parque Nacional, ampliando a proteção já existente e reforçando a sua fiscalização.

Sem consulta às comunidades locais e graças à ação lobista em favor da multinacional, o governo Piñera retirou uma área de quase 5 mil hectares dos parques a serem implantados. A área subtraída foi destinada à implantação do “projeto sustentável” Los Domos, da empresa Equus Mining, para exploração dos veios de ouro e prata já prospectados no local.

O episódio é ilustrativo do modus operandi das mineradoras no capitalismo global. Elas contam com aliados no parlamento nacional e no mundo empresarial. Por certo, o projeto Los Domos não teria sido aprovado sem a participação de políticos da Renovação Nacional (RN), o partido direitista de Piñera. Acordos não republicanos resultam do conluio entre empresários, empresas multinacionais e governos nacionais e são posteriormente empurrados goela abaixo da sociedade. Assim, o poder econômico e o oportunismo político acabam sempre prevalecendo sobre os direitos dos povos. E as tragédias se sucedem.

Jair Bolsonaro e Sebastián Piñera fazem parte do mesmo fenômeno político mundial, que é a ascensão política e ideológica da direita. As esquerdas se ressentem de uma frente antifascista que unifique os partidos, os movimentos sindicais e sociais. A resistência não prescindirá de uma visão global do que está acontecendo no mundo e, especialmente, de uma ação internacional. As memoráveis lutas contra o neoliberalismo e a Alca revelam que isso é possível. Em outro contexto, muito mais complexo, vai ser preciso reinventá-las, antes que seja tarde e a lama de Brumadinho ameace as geleiras da Patagônia chilena, levando consigo o que foi conquistado nos últimos trinta anos.

* Renato Martins é presidente do Fórum Universitário Mercosul (FoMerco).

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