Por Tarso Genro, no site Sul-21:
O ex-ministro e hoje deputado Orlando Silva sofreu uma cruel campanha da mídia tradicional porque, num dado momento – como ministro dos Esportes que tinha a Copa do Mundo pela frente –, comprou uma tapioca com o seu cartão corporativo. Foi exposto aos seus amigos, a sua família, ao seu país, ao mundo - no bojo do moralismo bandido que se instalou no país - como uma pessoa que se utilizou das funções públicas em “próprio proveito”. A campanha foi sistemática, ofensiva, mentirosa e visava arrasar uma liderança comunista, que se comprometera com os métodos democráticos de luta, parlamentar e social, já no bojo da transição da ditadura militar-civil que obstruíra a democracia no país por mais de vinte anos.
Canalhices contra um homem honesto, probo, mas comunista, que por isso precisava ser retirado do centro daquele bilionário acontecimento esportivo, por dentro do qual se cruzavam interesses empresariais lícitos e ilícitos, de todas as ordens, principalmente dos meios de comunicação. A operação contra Lula foi mais complexa, pois foi necessário estruturar um centro orgânico em Curitiba que – acoitado pela mesma grande mídia - articulou uma série de procedimentos ilegais e legais, para simplesmente retirá-lo do cenário político democrático e assim criar a possibilidade de escolha, dentro de um sistema do “mal menor”, que oferecia duas opções: Haddad ou Bolsonaro.
Ato contínuo, a conspiração antidemocrática “provou” aos incautos e aos que precisavam de quaisquer argumentos para expor suas veias fascistas -usando os meios tecnológicos mais sofisticados em rede e sua capacidade de manipulação infinita- que o mal maior era Haddad. O professor, petista, moderado, de formação acadêmica superior, ministro de Educação competente, dialógico e bem sucedido era o demônio; e o mal menor era Bolsonaro – o mito – um oficial mal sucedido, com impetuosidades terroristas, desligado das Forças Armadas por ser portador de graves problemas psicológicos, misógino, armamentista e admirador das torturas e dos torturadores.
Não foi uma oposição Hitler x Roosevelt, que seria logo flagrada como uma rememoração forçada da Guerra Fria, mas um confronto entre a Idade Média (da Inquisição e da Tortura) e a Modernidade libertária (dos Direitos Humanos), que precisaria ser superada pelos retorno às trevas, pois só estas viabilizariam politicamente – de forma opaca a intransparente como necessário – as reformas neoliberais. As biografias de Torquemada e Leopardi simbolizam melhor o confronto posterior, pois a vida e a obra destes, carrega as duas possibilidades históricas da racionalidade ilustrada. Elas estariam presentes, globalmente, ora como barbárie, ora como civilização: democracia e fascismo, estado e milícias, delírios psicopáticos no poder ou previsibilidade do Estado de Direito.
Vejamos sobre Torquemada, Inquisidor Geral de Espanha (a partir de 1483):”Enquanto os açoitamentos e torturas eram deflagrados Torquemada passava o tempo sussurrando as suas preces. Segundo alguns documentos os interrogados tinham unhas arrancadas, a pele marcada com ferro em brasa e os dedos perfurados”. Um Presidente como Bolsonaro, que defende justiçamentos por milicianos, revela com seu zelo pela violência estatal e privada, não somente a natureza do seu governo, mas também o caráter dominante do país que lhe elegeu.
Sobre os escritos de Leopardi – poeta e filósofo – diz Carmelo Distante a respeito dos seus escritos de 1822: “Leopardi, como grande moralista que era, não acreditava que os homens modernos, inclinados a uma corrida tecnológica cada vez mais avançada até o inverossímil, pudessem inventar algum autômato (…) que os liberasse da falta congênita de energias morais de que os via vítimas, pelos vícios ou pela volúpia das aparências…”
Um candidato como Haddad, derrotado pelas aparências dos “fake news” de autômatos que tem humanos sem moral os manipulando, também revela – por seu turno – o caráter e a amoralidade dos seus adversários, que hoje controlam o país de alto a baixo. Na últimas semanas eles revelaram sua visão de mundo e o seu senso de humanidade: Olavo de Carvalho – o José Lopes Rega do bolsonarismo mais demente e primitivo – propôs – sem estarrecimento de qualquer instituição ou órgão de imprensa tradicional - um “AI 5” e a ditadura militar; o General Villas Boas advertiu diretamente o STF e orientou uma linha de julgamento, como se integrasse uma Junta Militar; o próprio Presidente -assediado pelo carregamento de drogas em avião da frota presidencial- acusou diretamente o PT, PCdoB, PSOL, PSB e PPS de serem financiados com o dinheiro da droga.
Onde vamos chegar já chegamos. É a derrota completa de quem defende a democracia, os direitos humanos, uma sociedade de diálogo e concertação política, soberania nacional, reformas para promover os direitos fundamentais (não para extinguir as funções públicas do Estado), previsibilidade democrática, o que é retratado por Cid Benjamin (Vice-Presidente da Associação Brasileira de Imprensa) no seu último livro “Estado Policial”. Nele, sobre a já célebre Milícia Imobiliária de Muzema (Rio), Cid menciona um editorial do próprio jornal “Globo”: “Fica claro que o poder público ali é apenas visitante de ocasião. O poder verdadeiro é o paralelo, da milícia”.
A milícia hoje, na concepção gramsciana de “Estado Ampliado”, é instituição legitimada pelas palavras presidenciais, pela inércia das instituições de controle e do Sistema do Justiça e poderão, em breve, concorrer com as Forças Armadas na sua missão institucional de garantir o funcionamento do poderes de Estado. Perverterão, assim, de maneira definitiva o Pacto Constituinte de 88 tornado-se - elas mesmas - o aparato de segurança “de fato” do criminoso Estado proto-fascista em implantação. Não esqueçamos que esta possibilidade vem contando com a complacência da mídia tradicional, das próprias Forças Armadas e da maioria política Congresso. A democracia devora a democracia.
Não podemos cometer o erro de pensar que esta situação de desastre será superada pelo enfraquecimento do governo, gerado pelas disputas internas da malta do “partido” presidencial, em sentido amplo. Isso seria possível de forma mais imediata em três hipóteses: 1, se interessasse à Rede Globo a substituição de Bolsonaro; 2, se as Forças Armadas não estivessem cooptadas pelo sistemas de poder já estruturado; 3. se a oposição de esquerda tivesse a capacidade - política e programática - de unir o Brasil em torno de um programa nacional-democrático, de integração soberana na globalização capitalista, que atraísse alguns setores das classes dominantes para o campo antifascista. Nenhuma destas hipóteses está próxima de ser configurada.
A celebração da vida, da solidariedade e das utopias da igualdade, nas artes, na academia, ação política da cotidiana; no pensamento socialista que busca emancipação dos humanos, em todos os sentidos da existência; no amor concreto aos oprimidos e excluídos na vida cotidiana; a celebração no respeito às diferenças; na sabedoria expressa na militância partidária ou não, na produção intelectual – neste tempo em que somos passageiros comuns desta nave terra viajando no espaço (num país infelicitado pelo ódio fascista) –; a celebração da vida em todos os sentidos é um antídoto contra o fascismo, e é o que a nossa geração pode dar no “dia-à-dia” do nosso tempo moral e político. Para os grandes enfrentamentos que ainda virão e para que a história se repita como esperança. Não como tragédia.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
O ex-ministro e hoje deputado Orlando Silva sofreu uma cruel campanha da mídia tradicional porque, num dado momento – como ministro dos Esportes que tinha a Copa do Mundo pela frente –, comprou uma tapioca com o seu cartão corporativo. Foi exposto aos seus amigos, a sua família, ao seu país, ao mundo - no bojo do moralismo bandido que se instalou no país - como uma pessoa que se utilizou das funções públicas em “próprio proveito”. A campanha foi sistemática, ofensiva, mentirosa e visava arrasar uma liderança comunista, que se comprometera com os métodos democráticos de luta, parlamentar e social, já no bojo da transição da ditadura militar-civil que obstruíra a democracia no país por mais de vinte anos.
Canalhices contra um homem honesto, probo, mas comunista, que por isso precisava ser retirado do centro daquele bilionário acontecimento esportivo, por dentro do qual se cruzavam interesses empresariais lícitos e ilícitos, de todas as ordens, principalmente dos meios de comunicação. A operação contra Lula foi mais complexa, pois foi necessário estruturar um centro orgânico em Curitiba que – acoitado pela mesma grande mídia - articulou uma série de procedimentos ilegais e legais, para simplesmente retirá-lo do cenário político democrático e assim criar a possibilidade de escolha, dentro de um sistema do “mal menor”, que oferecia duas opções: Haddad ou Bolsonaro.
Ato contínuo, a conspiração antidemocrática “provou” aos incautos e aos que precisavam de quaisquer argumentos para expor suas veias fascistas -usando os meios tecnológicos mais sofisticados em rede e sua capacidade de manipulação infinita- que o mal maior era Haddad. O professor, petista, moderado, de formação acadêmica superior, ministro de Educação competente, dialógico e bem sucedido era o demônio; e o mal menor era Bolsonaro – o mito – um oficial mal sucedido, com impetuosidades terroristas, desligado das Forças Armadas por ser portador de graves problemas psicológicos, misógino, armamentista e admirador das torturas e dos torturadores.
Não foi uma oposição Hitler x Roosevelt, que seria logo flagrada como uma rememoração forçada da Guerra Fria, mas um confronto entre a Idade Média (da Inquisição e da Tortura) e a Modernidade libertária (dos Direitos Humanos), que precisaria ser superada pelos retorno às trevas, pois só estas viabilizariam politicamente – de forma opaca a intransparente como necessário – as reformas neoliberais. As biografias de Torquemada e Leopardi simbolizam melhor o confronto posterior, pois a vida e a obra destes, carrega as duas possibilidades históricas da racionalidade ilustrada. Elas estariam presentes, globalmente, ora como barbárie, ora como civilização: democracia e fascismo, estado e milícias, delírios psicopáticos no poder ou previsibilidade do Estado de Direito.
Vejamos sobre Torquemada, Inquisidor Geral de Espanha (a partir de 1483):”Enquanto os açoitamentos e torturas eram deflagrados Torquemada passava o tempo sussurrando as suas preces. Segundo alguns documentos os interrogados tinham unhas arrancadas, a pele marcada com ferro em brasa e os dedos perfurados”. Um Presidente como Bolsonaro, que defende justiçamentos por milicianos, revela com seu zelo pela violência estatal e privada, não somente a natureza do seu governo, mas também o caráter dominante do país que lhe elegeu.
Sobre os escritos de Leopardi – poeta e filósofo – diz Carmelo Distante a respeito dos seus escritos de 1822: “Leopardi, como grande moralista que era, não acreditava que os homens modernos, inclinados a uma corrida tecnológica cada vez mais avançada até o inverossímil, pudessem inventar algum autômato (…) que os liberasse da falta congênita de energias morais de que os via vítimas, pelos vícios ou pela volúpia das aparências…”
Um candidato como Haddad, derrotado pelas aparências dos “fake news” de autômatos que tem humanos sem moral os manipulando, também revela – por seu turno – o caráter e a amoralidade dos seus adversários, que hoje controlam o país de alto a baixo. Na últimas semanas eles revelaram sua visão de mundo e o seu senso de humanidade: Olavo de Carvalho – o José Lopes Rega do bolsonarismo mais demente e primitivo – propôs – sem estarrecimento de qualquer instituição ou órgão de imprensa tradicional - um “AI 5” e a ditadura militar; o General Villas Boas advertiu diretamente o STF e orientou uma linha de julgamento, como se integrasse uma Junta Militar; o próprio Presidente -assediado pelo carregamento de drogas em avião da frota presidencial- acusou diretamente o PT, PCdoB, PSOL, PSB e PPS de serem financiados com o dinheiro da droga.
Onde vamos chegar já chegamos. É a derrota completa de quem defende a democracia, os direitos humanos, uma sociedade de diálogo e concertação política, soberania nacional, reformas para promover os direitos fundamentais (não para extinguir as funções públicas do Estado), previsibilidade democrática, o que é retratado por Cid Benjamin (Vice-Presidente da Associação Brasileira de Imprensa) no seu último livro “Estado Policial”. Nele, sobre a já célebre Milícia Imobiliária de Muzema (Rio), Cid menciona um editorial do próprio jornal “Globo”: “Fica claro que o poder público ali é apenas visitante de ocasião. O poder verdadeiro é o paralelo, da milícia”.
A milícia hoje, na concepção gramsciana de “Estado Ampliado”, é instituição legitimada pelas palavras presidenciais, pela inércia das instituições de controle e do Sistema do Justiça e poderão, em breve, concorrer com as Forças Armadas na sua missão institucional de garantir o funcionamento do poderes de Estado. Perverterão, assim, de maneira definitiva o Pacto Constituinte de 88 tornado-se - elas mesmas - o aparato de segurança “de fato” do criminoso Estado proto-fascista em implantação. Não esqueçamos que esta possibilidade vem contando com a complacência da mídia tradicional, das próprias Forças Armadas e da maioria política Congresso. A democracia devora a democracia.
Não podemos cometer o erro de pensar que esta situação de desastre será superada pelo enfraquecimento do governo, gerado pelas disputas internas da malta do “partido” presidencial, em sentido amplo. Isso seria possível de forma mais imediata em três hipóteses: 1, se interessasse à Rede Globo a substituição de Bolsonaro; 2, se as Forças Armadas não estivessem cooptadas pelo sistemas de poder já estruturado; 3. se a oposição de esquerda tivesse a capacidade - política e programática - de unir o Brasil em torno de um programa nacional-democrático, de integração soberana na globalização capitalista, que atraísse alguns setores das classes dominantes para o campo antifascista. Nenhuma destas hipóteses está próxima de ser configurada.
A celebração da vida, da solidariedade e das utopias da igualdade, nas artes, na academia, ação política da cotidiana; no pensamento socialista que busca emancipação dos humanos, em todos os sentidos da existência; no amor concreto aos oprimidos e excluídos na vida cotidiana; a celebração no respeito às diferenças; na sabedoria expressa na militância partidária ou não, na produção intelectual – neste tempo em que somos passageiros comuns desta nave terra viajando no espaço (num país infelicitado pelo ódio fascista) –; a celebração da vida em todos os sentidos é um antídoto contra o fascismo, e é o que a nossa geração pode dar no “dia-à-dia” do nosso tempo moral e político. Para os grandes enfrentamentos que ainda virão e para que a história se repita como esperança. Não como tragédia.
* Tarso Genro foi governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre, ministro da Justiça, ministro da Educação e ministro das Relações Institucionais do Brasil.
1 comentários:
Primeira vez (será que estou tão mal informado assim?) que vejo alguém chamar a atenção para a abjeta injustiça feita a Orlando Silva.
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