Por Marcelo Zero
A América Latina assiste hoje a uma grave crise, que combina forte instabilidade política, fragilização das instituições democráticas, falta de legitimidade dos sistemas tradicionais de representação, intensa polarização ideológica e, em certos casos, erosão de garantias típicas do Estado Democrático de Direito.
As extensas e intensas rebeliões populares no Equador e no Chile, que exigem o fim da experiência neoliberal, e o golpe de Estado militarizado na Bolívia são as demonstrações mais recentes e evidentes desse amplo fenômeno.
Observa-se, assim, uma preocupante crise nas democracias da região, tradicionalmente frágeis, instáveis e de escasso enraizamento em suas sociedades.
A região voltou a ser sinônimo de instabilidade política e de republiquetas de bananas, com graves danos à sua imagem.
Claro está que essa crise das democracias e da política não é exclusiva da América Latina.
Na Europa, nos EUA e em outros países constata-se também crise semelhante.
No continente europeu, em particular, há uma desconfiança em relação aos partidos tradicionais e às instituições democráticas, o questionamento dos sistemas de representação, a emergência do denominado “populismo de direita”, a exacerbação das diferenças ideológicas e um sentimento mais ou menos generalizado de que a atividade política não cria alternativas para solucionar os problemas dos países e para melhorar a vida da maioria da população.
Contudo, no caso da América Latina há agravantes. Aqui, diferentemente do que acontece na Europa e em outras regiões, a crise das democracias manifesta-se, sobretudo, na eclosão de golpes de Estado de natureza diversa, que incluem tanto golpes “brancos”, mascarados por decisões jurídicas e institucionais, quanto por típicas quarteladas sustentadas pela força e pela violência, como a da Bolívia.
Há também uma ampla partidarização das instituições, notadamente no poder judiciário, que não se observa em países de maior tradição democrática.
Neste século, já houve golpes na Venezuela, em Honduras, no Paraguai, no Brasil e, mais recentemente, na Bolívia, para citar os mais evidentes. Mesmo em países que não chegaram a experimentar golpes estrito senso, assiste-se, muitas vezes, a processos bastante intensos de desestabilização de governos progressistas, baseados em disseminação ampla de fake news e em lawfares direcionadas contra governantes e políticos de relevo.
Também de forma distinta ao que ocorre em países mais desenvolvidos e com maior tradição democrática, há, em alguns casos, uma crescente relativização das garantias típicas do Estado Democrático de Direito.
No Brasil, assiste-se a uma marcha constante e firme em direção a uma ditadura mais ou menos disfarçada.
Do Estado de exceção seletivo, implantado após o golpe e consolidado com a eleição de um neofascista que se elegeu com o discurso da repressão contra a esquerda e os dissidentes de um modo geral, ruma-se, agora, para um fechamento de regime, com GLOs com excludente de ilicitude, promessas de ressuscitação do AI-5, volta da censura, destruição de todas as políticas progressistas, perseguições contra jornalistas, prisões de ambientalistas, políticas genocidas de segurança pública e toda uma série de atos de repressão que são normalizados pela imprensa e por setores políticos que, em tese, deveriam defender a democracia.
Dessa forma, no Brasil e na América Latina a crise da política e dos sistemas de representação atinge, muitas vezes, a própria institucionalidade democrática.
Outra diferença importante, que merece ser destacada, tange à inegável interferência externa que em vários casos se verifica na vida política dos países da região. Parece haver pouca dúvida de que os EUA, em particular, ainda interferem, de forma negativa, para desestabilizar governos progressistas da região, inclusive mediante o uso político dos sistemas judiciais.
Conforme assinalou Enrique Santiago Romero, secretário-geral do Partido Comunista Espanhol, “na América Latina como um todo, assistimos à paulatina substituição dos sistemas penais inquisitivos ou mistos, pelo sistema penal acusatório à imagem e semelhança do sistema estadunidense, provocando um maior empoderamento das promotorias nacionais, que na prática operam sob instruções, informações e indicações remitidas pela justiça estadunidense. ”
No caso do Brasil, essa interferência via sistema jurídico foi de grande relevância para o golpe de Estado de 2016 e para a prisão, sem provas, do ex-presidente Lula. Agora mesmo, o TRF-4, amotinando-se contra o STF, voltou a condenar Lula, em ridícula decisão “corte e cola”, num processo totalmente carente de provas materiais, originado nos porões partidarizados da Lava Jato.
Mas, mesmo levando em consideração essas diferenças significativas, parece-nos que a causa principal da crise dos sistemas políticos e das democracias é basicamente a mesma em todas as regiões: a predominância do modelo neoliberal e das políticas de austeridade, combinadas com a crise econômica mundial.
Com efeito, a atual configuração do capitalismo, sua crise e a prevalência de políticas econômicas ortodoxas e neoliberais vêm configurando um quadro social muito negativo, que repercute fortemente nas democracias e nos sistemas de representação política.
Muitos autores, como Thomas Piketty, Cristian Laval, Noam Chomsky e Joseph E. Stiglitz, só para citar os mais conhecidos, destacam essa relação estreita entre o capitalismo financeirizado e desregulado, o aumento das desigualdades, a erosão dos Estado de Bem-Estar e a crise que atinge em cheio as democracias e a legitimidade dos sistemas de representação política.
Obviamente, são esses fatores que explicam também a eclosão de forças de direita e de extrema direita em todo o mundo.
Ademais, essa crise dos sistemas políticos e das democracias é fruto, em grande parte, da crise econômica mundial, que exacerba os efeitos sociais negativos do neoliberalismo e das políticas de austeridade a ele associadas.
Com efeito, sempre que há uma grande crise econômica, intensa e persistente como a da atualidade, a democracia e os sistemas de representação sofrem considerável estresse. Nessas circunstâncias, a capacidade da política de absorver e arbitrar conflitos, especialmente os conflitos distributivos inerentes ao sistema capitalista, se fragiliza ou, em muitos casos, se esvai completamente.
Na crise dos anos 20 e 30 do século passado, após as sequelas da Primeira Guerra Mundial, alguns sistemas políticos europeus simplesmente implodiram, dando lugar ao fascismo e ao nazismo, que levaram o mundo à gigantesca tragédia da Segunda Guerra Mundial.
Nos EUA, entretanto, o sistema político foi salvo pelas políticas anticíclicas de Roosevelt.
Contudo, nessa crise política mundial, há um fator de base, mais profundo, que vai além da crise econômica.
Trata-se do que poderíamos denominar de a “despolitização da política econômica”.
Com efeito, é, desde a década de 1980 que, em graus variados, os sistemas de representação política vêm “terceirizando” as decisões relevantes sobre a condução da economia para o “mercado”, “analistas de mercado” e “instituições independentes”, como bancos centrais dominados pelos grandes interesses financeiros.
Criaram-se, desde aquela época, “consensos técnicos” que consagraram, como racionais, desejáveis e inevitáveis, as políticas neoliberais amigáveis aos interesses do grande capital financeiro. Com isso, as decisões realmente relevantes sobre a condução das economias e dos países foram excluídas do sistema de representação e do controle da soberania popular, exercida pelo voto.
Na Europa e nos EUA, a tradicional alternância entre partidos tradicionais de centro-esquerda e de centro-direita deixou de ter incidência relevante sobre a política econômica e sobre a vida das pessoas. A maioria dos governos reproduziam e reproduzem, em maior ou menor grau, a mesmice dos “consensos técnicos” e neoliberais. Na Europa, essa submissão ideológica das esquerdas tradicionais ao ideário neoliberal denominou-se “Terceira Via”.
Tudo isso resultou no aumento expressivo da desigualdade econômica e social, num incontido desemprego estrutural e na “financeirização” e desregulamentação da economia, fatores determinantes da pior crise mundial desde 1929.
No campo político, essa usurpação do controle da política econômica pelo voto popular resultou, em um primeiro momento, num crescente absenteísmo eleitoral e, agora, na crise, na descrença generalizada na política e na falta de credibilidade dos partidos e dos sistemas de representação em muitos países. Os eleitores percebem, em muitas democracias, que seus votos não fazem tanta diferença em suas vidas.
Tanto faz votar ou não, porque o sentimento predominante é o de que nada muda.
A política que não cria reais alternativas de poder não é política, é apenas simulacro de democracia.
É esse “vazio político” que está na origem da crise das democracias modernas. Assim, a crise mundial da política é, na realidade, a crise da falta de política.
A crise dos sistemas de representação é a crise da falta de representatividade dos sistemas políticos, que não dão voz efetiva aos votos colhidos.
E a crise da democracia é, em geral, a crise da falta de uma democracia substantiva, que ofereça alternativas reais e factíveis às políticas neoliberais, que só agravam a desigualdade, a pobreza e a ausência de perspectivas para a maior parte da população.
Na América Latina, no início deste século, experimentaram-se, em muitos países, processos políticos que, na contramão do que acontecia em países desenvolvidos, conduziram à redução da pobreza e da desigualdade, à ampliação de direitos sociais e econômicos, ao alargamento das oportunidades e à melhoria substantiva da qualidade de vida das grandes massas historicamente marginalizadas.
Infelizmente, esses processos virtuosos, que também conduziam à ampliação e aprimoramento das democracias da região, foram revertidos na maior parte das nações, algumas vezes, como mencionamos, por golpes de natureza diversa. Agora, no entanto, ocorre uma reação em sentido contrário, em alguns países.
Frise-se, porém, que a recente eclosão de amplas revoltas populares, como no Chile e no Equador, não é algo suficiente, por si só, para assegurar mudanças de governo e, muito menos, mudanças efetivas no modelo econômico e social.
O grande perigo, tanto na Europa quanto na América Latina e em outras regiões, é o de que a insatisfação popular seja capturada por forças de direita e da ultradireita, como aconteceu em alguns países da Europa, nos EUA de Trump e no Brasil de Bolsonaro.
Nesses casos, tal insatisfação não é dirigida contra o “inimigo” real, o neoliberalismo e suas políticas de austeridade, mas sim contra inimigos imaginários.
Na Alemanha nazista, os inimigos da nação eram os judeus e os comunistas. Nos EUA de Trump, os inimigos são os imigrantes, o marxismo cultural e países como China e Rússia, que “roubam empregos” e poderio dos norte-americanos.
No Brasil de Bolsonaro, os inimigos são a corrupção, o PT, o marxismo cultural, o feminismo, o ambientalismo, o movimento negro, o movimento LGBT e tudo aquilo que conspire contra os valores da “civilização cristã” e de um idílico Brasil tradicional.
Essa transferência da insatisfação contra o “inimigo” real, causador da situação de pobreza, desigualdade, desemprego e insegurança, para inimigos imaginários, resulta da despolitização, simplificação e distorção do debate público.
Paradoxalmente, o inimigo imaginário tem uma concretude que falta ao “inimigo” real.
Na Alemanha nazista era muito mais “fácil” odiar o judeu, o diferente, do que condenar os perversos mecanismos da ordem capitalista.
Nos EUA de Trump, é mais “simples” odiar o imigrante latino e os chineses do que identificar, como causador das mazelas, um modelo econômico que se apresenta como resultado de uma incontestável razão técnica.
No Brasil de hoje, face a anos de mitificação grosseira, é também muito mais “fácil” achar que os problemas do país são causados por “corruptos”, “petistas”, “bolivarianos”, “políticos”, ONGs e “mamadeiras de pênis” do que por um modelo econômico e social que conduz inevitavelmente à pobreza, à desigualdade, ao desemprego, ao sucateamento dos serviços públicos e à ausência de oportunidades para a maioria da população.
E, assim como o diagnóstico é grosseiramente simplificador e distorcido, a solução também é: o Brasil só sairá da crise destruindo todas as políticas progressistas e reprimindo duramente esses inimigos imaginários. O Brasil só sairá da crise pela “antipolítica” do fascismo.
Nesta quadra, a antidemocracia e a antipolítica parecem ter se tornado imperativos para um projeto ultraneoliberal que inexoravelmente acirra contradições e insatisfações. Esse é um perigo real e iminente.
A última pesquisa feita no Brasil pelo Latinobarômetro (2018) demostra que o apoio popular à democracia em nosso país é atualmente muito tênue. Ante a pergunta, você considera que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo, apenas 34% responderam afirmativamente. Ou seja, praticamente dois terços dos brasileiros admitiram apoiar ou, ao menos, suportar um regime autoritário, caso julguem que a democracia (ou a “velha política”) tenha fracassado.
Evidentemente, a solução real para a crise e os problemas do Brasil reside na política e em suas alternativas democráticas. Até agora, os únicos países que conseguiram reverter a onda neoliberal e autoritária na América Latina foram o México e a Argentina, que elegeram, pela via democrática e por um intenso debate político, novos governos progressistas.
É por isso que ter Lula livre é fundamental para a democracia.
Lula oferece a possibilidade de canalizar a insatisfação popular contra “inimigos reais”, pela via do debate público e da democracia.
Nesse caso, o inimigo real não são pessoas ou grupos específicos merecedores de ódio, mas sim um modelo que arruína a maior parte da população, inclusive amplos setores populares e de classe média que se identificam atualmente com as políticas conservadoras e ultraneoliberais.
O “inimigo” real são as políticas aparentemente abstratas e travestidas de racionalidade técnica, que conduzem, no mundo todo, à ruína da democracia.
O sentimento motivador é, nesse caso, a crença esperançosa de que outro mundo é possível, não o ódio estéril e destrutivo ao diferente.
Mesmo assim, e talvez por isso, nossos setores conservadores e boa parte da imprensa equiparam Lula a Bolsonaro, “antípodas ideológicas igualmente autoritárias”. Insistem num canhestro antipetismo, base político-ideológica do bolsonarismo.
Já escrevi que o medo e o ódio a Lula proveem de um medo à democracia real e inclusiva. Do medo da perda de privilégios.
Do medo da perda de controle do sistema político. Do medo de cidadãos pobres críticos e atuantes. Da ansiedade em promover políticas neoliberais que assegurem e ampliem interesses de classe em tempos de crise. Do medo a revoltas populares, como a que acontece no Chile.
Em nome desse medo e desse ódio continuam a apostar em Bolsonaro. Em nome da “democracia”, continuam a destruir a democracia.
Entretanto, mais cedo ou mais tarde, o Brasil, a América Latina e o Mundo terão de escolher entre neoliberalismo e, em alguns casos, fascismo e regimes autoritários, de um lado, ou democracias reais e substantivas, de outro. Essa é a grande encruzilhada.
Melhor cedo do que tarde. Melhor Lula.
A América Latina assiste hoje a uma grave crise, que combina forte instabilidade política, fragilização das instituições democráticas, falta de legitimidade dos sistemas tradicionais de representação, intensa polarização ideológica e, em certos casos, erosão de garantias típicas do Estado Democrático de Direito.
As extensas e intensas rebeliões populares no Equador e no Chile, que exigem o fim da experiência neoliberal, e o golpe de Estado militarizado na Bolívia são as demonstrações mais recentes e evidentes desse amplo fenômeno.
Observa-se, assim, uma preocupante crise nas democracias da região, tradicionalmente frágeis, instáveis e de escasso enraizamento em suas sociedades.
A região voltou a ser sinônimo de instabilidade política e de republiquetas de bananas, com graves danos à sua imagem.
Claro está que essa crise das democracias e da política não é exclusiva da América Latina.
Na Europa, nos EUA e em outros países constata-se também crise semelhante.
No continente europeu, em particular, há uma desconfiança em relação aos partidos tradicionais e às instituições democráticas, o questionamento dos sistemas de representação, a emergência do denominado “populismo de direita”, a exacerbação das diferenças ideológicas e um sentimento mais ou menos generalizado de que a atividade política não cria alternativas para solucionar os problemas dos países e para melhorar a vida da maioria da população.
Contudo, no caso da América Latina há agravantes. Aqui, diferentemente do que acontece na Europa e em outras regiões, a crise das democracias manifesta-se, sobretudo, na eclosão de golpes de Estado de natureza diversa, que incluem tanto golpes “brancos”, mascarados por decisões jurídicas e institucionais, quanto por típicas quarteladas sustentadas pela força e pela violência, como a da Bolívia.
Há também uma ampla partidarização das instituições, notadamente no poder judiciário, que não se observa em países de maior tradição democrática.
Neste século, já houve golpes na Venezuela, em Honduras, no Paraguai, no Brasil e, mais recentemente, na Bolívia, para citar os mais evidentes. Mesmo em países que não chegaram a experimentar golpes estrito senso, assiste-se, muitas vezes, a processos bastante intensos de desestabilização de governos progressistas, baseados em disseminação ampla de fake news e em lawfares direcionadas contra governantes e políticos de relevo.
Também de forma distinta ao que ocorre em países mais desenvolvidos e com maior tradição democrática, há, em alguns casos, uma crescente relativização das garantias típicas do Estado Democrático de Direito.
No Brasil, assiste-se a uma marcha constante e firme em direção a uma ditadura mais ou menos disfarçada.
Do Estado de exceção seletivo, implantado após o golpe e consolidado com a eleição de um neofascista que se elegeu com o discurso da repressão contra a esquerda e os dissidentes de um modo geral, ruma-se, agora, para um fechamento de regime, com GLOs com excludente de ilicitude, promessas de ressuscitação do AI-5, volta da censura, destruição de todas as políticas progressistas, perseguições contra jornalistas, prisões de ambientalistas, políticas genocidas de segurança pública e toda uma série de atos de repressão que são normalizados pela imprensa e por setores políticos que, em tese, deveriam defender a democracia.
Dessa forma, no Brasil e na América Latina a crise da política e dos sistemas de representação atinge, muitas vezes, a própria institucionalidade democrática.
Outra diferença importante, que merece ser destacada, tange à inegável interferência externa que em vários casos se verifica na vida política dos países da região. Parece haver pouca dúvida de que os EUA, em particular, ainda interferem, de forma negativa, para desestabilizar governos progressistas da região, inclusive mediante o uso político dos sistemas judiciais.
Conforme assinalou Enrique Santiago Romero, secretário-geral do Partido Comunista Espanhol, “na América Latina como um todo, assistimos à paulatina substituição dos sistemas penais inquisitivos ou mistos, pelo sistema penal acusatório à imagem e semelhança do sistema estadunidense, provocando um maior empoderamento das promotorias nacionais, que na prática operam sob instruções, informações e indicações remitidas pela justiça estadunidense. ”
No caso do Brasil, essa interferência via sistema jurídico foi de grande relevância para o golpe de Estado de 2016 e para a prisão, sem provas, do ex-presidente Lula. Agora mesmo, o TRF-4, amotinando-se contra o STF, voltou a condenar Lula, em ridícula decisão “corte e cola”, num processo totalmente carente de provas materiais, originado nos porões partidarizados da Lava Jato.
Mas, mesmo levando em consideração essas diferenças significativas, parece-nos que a causa principal da crise dos sistemas políticos e das democracias é basicamente a mesma em todas as regiões: a predominância do modelo neoliberal e das políticas de austeridade, combinadas com a crise econômica mundial.
Com efeito, a atual configuração do capitalismo, sua crise e a prevalência de políticas econômicas ortodoxas e neoliberais vêm configurando um quadro social muito negativo, que repercute fortemente nas democracias e nos sistemas de representação política.
Muitos autores, como Thomas Piketty, Cristian Laval, Noam Chomsky e Joseph E. Stiglitz, só para citar os mais conhecidos, destacam essa relação estreita entre o capitalismo financeirizado e desregulado, o aumento das desigualdades, a erosão dos Estado de Bem-Estar e a crise que atinge em cheio as democracias e a legitimidade dos sistemas de representação política.
Obviamente, são esses fatores que explicam também a eclosão de forças de direita e de extrema direita em todo o mundo.
Ademais, essa crise dos sistemas políticos e das democracias é fruto, em grande parte, da crise econômica mundial, que exacerba os efeitos sociais negativos do neoliberalismo e das políticas de austeridade a ele associadas.
Com efeito, sempre que há uma grande crise econômica, intensa e persistente como a da atualidade, a democracia e os sistemas de representação sofrem considerável estresse. Nessas circunstâncias, a capacidade da política de absorver e arbitrar conflitos, especialmente os conflitos distributivos inerentes ao sistema capitalista, se fragiliza ou, em muitos casos, se esvai completamente.
Na crise dos anos 20 e 30 do século passado, após as sequelas da Primeira Guerra Mundial, alguns sistemas políticos europeus simplesmente implodiram, dando lugar ao fascismo e ao nazismo, que levaram o mundo à gigantesca tragédia da Segunda Guerra Mundial.
Nos EUA, entretanto, o sistema político foi salvo pelas políticas anticíclicas de Roosevelt.
Contudo, nessa crise política mundial, há um fator de base, mais profundo, que vai além da crise econômica.
Trata-se do que poderíamos denominar de a “despolitização da política econômica”.
Com efeito, é, desde a década de 1980 que, em graus variados, os sistemas de representação política vêm “terceirizando” as decisões relevantes sobre a condução da economia para o “mercado”, “analistas de mercado” e “instituições independentes”, como bancos centrais dominados pelos grandes interesses financeiros.
Criaram-se, desde aquela época, “consensos técnicos” que consagraram, como racionais, desejáveis e inevitáveis, as políticas neoliberais amigáveis aos interesses do grande capital financeiro. Com isso, as decisões realmente relevantes sobre a condução das economias e dos países foram excluídas do sistema de representação e do controle da soberania popular, exercida pelo voto.
Na Europa e nos EUA, a tradicional alternância entre partidos tradicionais de centro-esquerda e de centro-direita deixou de ter incidência relevante sobre a política econômica e sobre a vida das pessoas. A maioria dos governos reproduziam e reproduzem, em maior ou menor grau, a mesmice dos “consensos técnicos” e neoliberais. Na Europa, essa submissão ideológica das esquerdas tradicionais ao ideário neoliberal denominou-se “Terceira Via”.
Tudo isso resultou no aumento expressivo da desigualdade econômica e social, num incontido desemprego estrutural e na “financeirização” e desregulamentação da economia, fatores determinantes da pior crise mundial desde 1929.
No campo político, essa usurpação do controle da política econômica pelo voto popular resultou, em um primeiro momento, num crescente absenteísmo eleitoral e, agora, na crise, na descrença generalizada na política e na falta de credibilidade dos partidos e dos sistemas de representação em muitos países. Os eleitores percebem, em muitas democracias, que seus votos não fazem tanta diferença em suas vidas.
Tanto faz votar ou não, porque o sentimento predominante é o de que nada muda.
A política que não cria reais alternativas de poder não é política, é apenas simulacro de democracia.
É esse “vazio político” que está na origem da crise das democracias modernas. Assim, a crise mundial da política é, na realidade, a crise da falta de política.
A crise dos sistemas de representação é a crise da falta de representatividade dos sistemas políticos, que não dão voz efetiva aos votos colhidos.
E a crise da democracia é, em geral, a crise da falta de uma democracia substantiva, que ofereça alternativas reais e factíveis às políticas neoliberais, que só agravam a desigualdade, a pobreza e a ausência de perspectivas para a maior parte da população.
Na América Latina, no início deste século, experimentaram-se, em muitos países, processos políticos que, na contramão do que acontecia em países desenvolvidos, conduziram à redução da pobreza e da desigualdade, à ampliação de direitos sociais e econômicos, ao alargamento das oportunidades e à melhoria substantiva da qualidade de vida das grandes massas historicamente marginalizadas.
Infelizmente, esses processos virtuosos, que também conduziam à ampliação e aprimoramento das democracias da região, foram revertidos na maior parte das nações, algumas vezes, como mencionamos, por golpes de natureza diversa. Agora, no entanto, ocorre uma reação em sentido contrário, em alguns países.
Frise-se, porém, que a recente eclosão de amplas revoltas populares, como no Chile e no Equador, não é algo suficiente, por si só, para assegurar mudanças de governo e, muito menos, mudanças efetivas no modelo econômico e social.
O grande perigo, tanto na Europa quanto na América Latina e em outras regiões, é o de que a insatisfação popular seja capturada por forças de direita e da ultradireita, como aconteceu em alguns países da Europa, nos EUA de Trump e no Brasil de Bolsonaro.
Nesses casos, tal insatisfação não é dirigida contra o “inimigo” real, o neoliberalismo e suas políticas de austeridade, mas sim contra inimigos imaginários.
Na Alemanha nazista, os inimigos da nação eram os judeus e os comunistas. Nos EUA de Trump, os inimigos são os imigrantes, o marxismo cultural e países como China e Rússia, que “roubam empregos” e poderio dos norte-americanos.
No Brasil de Bolsonaro, os inimigos são a corrupção, o PT, o marxismo cultural, o feminismo, o ambientalismo, o movimento negro, o movimento LGBT e tudo aquilo que conspire contra os valores da “civilização cristã” e de um idílico Brasil tradicional.
Essa transferência da insatisfação contra o “inimigo” real, causador da situação de pobreza, desigualdade, desemprego e insegurança, para inimigos imaginários, resulta da despolitização, simplificação e distorção do debate público.
Paradoxalmente, o inimigo imaginário tem uma concretude que falta ao “inimigo” real.
Na Alemanha nazista era muito mais “fácil” odiar o judeu, o diferente, do que condenar os perversos mecanismos da ordem capitalista.
Nos EUA de Trump, é mais “simples” odiar o imigrante latino e os chineses do que identificar, como causador das mazelas, um modelo econômico que se apresenta como resultado de uma incontestável razão técnica.
No Brasil de hoje, face a anos de mitificação grosseira, é também muito mais “fácil” achar que os problemas do país são causados por “corruptos”, “petistas”, “bolivarianos”, “políticos”, ONGs e “mamadeiras de pênis” do que por um modelo econômico e social que conduz inevitavelmente à pobreza, à desigualdade, ao desemprego, ao sucateamento dos serviços públicos e à ausência de oportunidades para a maioria da população.
E, assim como o diagnóstico é grosseiramente simplificador e distorcido, a solução também é: o Brasil só sairá da crise destruindo todas as políticas progressistas e reprimindo duramente esses inimigos imaginários. O Brasil só sairá da crise pela “antipolítica” do fascismo.
Nesta quadra, a antidemocracia e a antipolítica parecem ter se tornado imperativos para um projeto ultraneoliberal que inexoravelmente acirra contradições e insatisfações. Esse é um perigo real e iminente.
A última pesquisa feita no Brasil pelo Latinobarômetro (2018) demostra que o apoio popular à democracia em nosso país é atualmente muito tênue. Ante a pergunta, você considera que a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo, apenas 34% responderam afirmativamente. Ou seja, praticamente dois terços dos brasileiros admitiram apoiar ou, ao menos, suportar um regime autoritário, caso julguem que a democracia (ou a “velha política”) tenha fracassado.
Evidentemente, a solução real para a crise e os problemas do Brasil reside na política e em suas alternativas democráticas. Até agora, os únicos países que conseguiram reverter a onda neoliberal e autoritária na América Latina foram o México e a Argentina, que elegeram, pela via democrática e por um intenso debate político, novos governos progressistas.
É por isso que ter Lula livre é fundamental para a democracia.
Lula oferece a possibilidade de canalizar a insatisfação popular contra “inimigos reais”, pela via do debate público e da democracia.
Nesse caso, o inimigo real não são pessoas ou grupos específicos merecedores de ódio, mas sim um modelo que arruína a maior parte da população, inclusive amplos setores populares e de classe média que se identificam atualmente com as políticas conservadoras e ultraneoliberais.
O “inimigo” real são as políticas aparentemente abstratas e travestidas de racionalidade técnica, que conduzem, no mundo todo, à ruína da democracia.
O sentimento motivador é, nesse caso, a crença esperançosa de que outro mundo é possível, não o ódio estéril e destrutivo ao diferente.
Mesmo assim, e talvez por isso, nossos setores conservadores e boa parte da imprensa equiparam Lula a Bolsonaro, “antípodas ideológicas igualmente autoritárias”. Insistem num canhestro antipetismo, base político-ideológica do bolsonarismo.
Já escrevi que o medo e o ódio a Lula proveem de um medo à democracia real e inclusiva. Do medo da perda de privilégios.
Do medo da perda de controle do sistema político. Do medo de cidadãos pobres críticos e atuantes. Da ansiedade em promover políticas neoliberais que assegurem e ampliem interesses de classe em tempos de crise. Do medo a revoltas populares, como a que acontece no Chile.
Em nome desse medo e desse ódio continuam a apostar em Bolsonaro. Em nome da “democracia”, continuam a destruir a democracia.
Entretanto, mais cedo ou mais tarde, o Brasil, a América Latina e o Mundo terão de escolher entre neoliberalismo e, em alguns casos, fascismo e regimes autoritários, de um lado, ou democracias reais e substantivas, de outro. Essa é a grande encruzilhada.
Melhor cedo do que tarde. Melhor Lula.
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