Charge: Rafael Costa |
Foram 21 anos de ditadura (1964-1985) e outros 21 anos até o golpe de Estado seguinte (1985-2016). Ao todo, 42 anos é tempo suficiente para constatar que as Forças Armadas que saíram da ditadura foram tão impregnadas pelos serviços de repressão e inteligência que deixaram de ser simplesmente Forças Armadas. São forças letais de inteligência e um assustador aparelho de ideologia de extrema-direita.
Elas têm um grande contingente armado (e muito bem armado) altamente doutrinado contra a população civil, contra a democracia e contra qualquer tipo de obstáculo que enfrente para ampliar os seus poderes para além dos quartéis. Imaginar que o clã Bolsonaro e suas milícias operam apesar das Forças Armadas, nessas alturas do campeonato, seria de uma ingenuidade comovente. Eles são parte de um único projeto e estão em operação de guerra.
O antropólogo Piero C. Leirner, um dos primeiros intelectuais brasileiros a associar à “guerra híbrida” a ofensiva ideológica que teve como palco os quartéis e os acontecimentos políticos que desde 2013 desestabilizam a política brasileira, separa uma da outra.
A guerra ideológica semeada pelos Estados Unidos a partir das chamadas “jornadas de junho” (o correspondente brasileiro às “primaveras árabes” de 2010 e 2011) e a articulada pelos militares brasileiros teriam sido dois movimentos, gestados pela mesma doutrina militar de guerra não-convencional, que em determinado momento passaram a ser simultâneos e complementares.
A ofensiva imperialista, todavia, teria proporcionado aos oficiais militares – que já operavam dentro da caserna – o ambiente político ideal para colocarem em prática a operação de guerra destinada a tomar a sociedade civil de assalto, e municiado tecnologicamente a eleição de Jair Bolsonaro com as armas invisíveis das mídias sociais e de uma máquina de tecer mentiras.
A partir dos estudos de Lerner, é possível concluir que 2018 foi apenas o ano em que a guerra ideológica iniciada dentro dos quartéis passou para uma outra etapa, a da luta pelo poder civil. Antes disso, as tropas passaram por uma fase intensa de doutrinação e ganharam organicidade. Foram forjadas pelo anticomunismo de seus comandantes (eles próprios, produtos ideológicos do regime militar que torturou e matou inimigos políticos, submeteu a Justiça e cerceou a liberdade) e são altamente manipuláveis e submissas aos seus comandos.
Quando os militares botaram de vez a cara para fora, apoiando a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência, em 2018, lá dentro já tinham constituído um partido coeso e fortemente armado. A tropa já estava conformada como um poderoso aparelho de ideologia.
Uma das lições dos manuais de guerra ideológica é forçar polarização. As tropas devem ter sempre um grande inimigo, real ou imaginário. Aí reside a força da doutrinação ideológica para a guerra.
Não é necessário grande argúcia para entender qual foi o primeiro elemento de polarização usado na moldagem das tropas: é a própria sociedade civil, “contaminada” pelo petismo, a primeira inimiga. Quando essa polaridade “plantada” prevalece dentro dos quartéis militares ou policiais, some o escrúpulo com qualquer ato de eliminação física – seja por meio de uma pandemia; seja pela bala, nos bolsões de pobreza; seja de índios, quilombolas ou eventuais vítimas de balas perdidas. A eliminação física é um ato de guerra. O morto, o inimigo. A identidade entre pobres e os governos de esquerda os tornam alvos fáceis e justificados.
Nas eleições de 2018, a operação militar se estende ao país. Não se entenda aí como uma aliança civil-militar, mas como uma estratégia de guerra não-convencional de manipulação da opinião pública. Nesta nova fase da guerra ideológica, a polaridade é construída contra a única força política que poderia se opor ao avanço militar, o Partido dos Trabalhadores.
O trabalho de afastar Lula das urnas em 2018 seria operado pelo braço judicial da guerra híbrida imperialista, a Operação Lava Jato, que colocou o líder petista na prisão por 580 dias. Com Lula atrás das grades, a ofensiva contra o PT é construída sob a velha base doutrinária do regime militar de 1964, da qual as Forças Armadas são caudatárias: o anticomunismo e o discurso anticorrupção, talhados às classes médias, que são sociologicamente sensíveis à doutrinação de extrema-direita e facilmente cooptáveis como exércitos de lúmpens, porosos que são à doutrinação conservadora.
Uma vez eleito Jair Bolsonaro, o candidato que representa a força vitoriosa na guerra ideológica particular das Forças Armadas, a manutenção do poder pressupõe operações de desestabilização permanentes para desorientar o inimigo e manter opositores potenciais com a sensação diuturna de que o pior está por vir, em caso de reação ao poder militar que agora submete a todos os civis pela força do voto, das armas e da coação. As milícias são a extensão disso, assim como os clubes de tiro e a incitação da força física contra o inimigo civil. A ideia de um inimigo permanente, note-se, é a base da guerra ideológica. O estímulo ao uso da força está implícito nessa ideia.
Do ponto de vista ideológico, a polarização é feita sob as mesmas velhas bases doutrinárias do regime militar usadas nos intramuros militares, na primeira fase da operação de guerra não-convencional. O anticomunismo prevalece, absoluto. Ultrapassado pela história, esse eixo doutrinário é substituído grosseiramente pelo antipetismo, como se o PT fosse uma camuflagem de um fantasma do passado. Num regime de inspiração fascista, é isso que força o extremismo ideológico da direita e o uso dele não é apenas para fins de propaganda. Ele justifica, por exemplo, a ação de brigadas bolsonaristas extremadas contra aqueles que consideram seus principais opositores no campo popular e democrático. A ação política violenta não é efeito colateral, é objetivo.
Na luta pelo domínio de um país por meio de uma guerra não-convencional, manter o território ocupado sob instabilidade permanente é a grande arma. Uma das táticas de guerra é a “emissão constante de sinais contraditórios junto com resoluções anteriormente planejadas”, segundo Leirner. Este jogo foi feito durante muito tempo entre Bolsonaro e seu vice, Hamilton Mourão, e em crises construídas entre Bolsonaro e seus ministros militares. É o que se designa de “camuflagem”, uma forma de escamotear protagonismos e, de quebra, passar à sociedade sempre a imagem de um risco eminente de ruptura institucional.
Nos últimos dois anos, este tipo de camuflagem foi perdendo importância com a construção de um antagonismo permanente entre Bolsonaro, e os militares, contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Esta é a polarização construída na terceira etapa da guerra híbrida dos militares brasileiros contra a sociedade civil: um “estado de guerra” entre o Poder Executivo, que tem o monopólio de todo o aparelho de coação do Estado (não existem grandes fissuras hoje entre militares, policiais e mesmo milícias paramilitares), e a Justiça, que teoricamente tem que defender as instituições.
A força e a lei estão em conflito permanente – e isso, no mínimo, cria um clima de medo que desmobiliza as forças contrárias à tropa. E é sempre bom lembrar, a todo o minuto: a primeira polarização forçada pelos militares foi a estabelecida, dentro dos quartéis, entre os militares (ou as pessoas armadas) e os civis (as pessoas desarmadas). Isso é uma ação de guerra em sua essência: a desmobilização do inimigo.
Elas têm um grande contingente armado (e muito bem armado) altamente doutrinado contra a população civil, contra a democracia e contra qualquer tipo de obstáculo que enfrente para ampliar os seus poderes para além dos quartéis. Imaginar que o clã Bolsonaro e suas milícias operam apesar das Forças Armadas, nessas alturas do campeonato, seria de uma ingenuidade comovente. Eles são parte de um único projeto e estão em operação de guerra.
O antropólogo Piero C. Leirner, um dos primeiros intelectuais brasileiros a associar à “guerra híbrida” a ofensiva ideológica que teve como palco os quartéis e os acontecimentos políticos que desde 2013 desestabilizam a política brasileira, separa uma da outra.
A guerra ideológica semeada pelos Estados Unidos a partir das chamadas “jornadas de junho” (o correspondente brasileiro às “primaveras árabes” de 2010 e 2011) e a articulada pelos militares brasileiros teriam sido dois movimentos, gestados pela mesma doutrina militar de guerra não-convencional, que em determinado momento passaram a ser simultâneos e complementares.
A ofensiva imperialista, todavia, teria proporcionado aos oficiais militares – que já operavam dentro da caserna – o ambiente político ideal para colocarem em prática a operação de guerra destinada a tomar a sociedade civil de assalto, e municiado tecnologicamente a eleição de Jair Bolsonaro com as armas invisíveis das mídias sociais e de uma máquina de tecer mentiras.
A partir dos estudos de Lerner, é possível concluir que 2018 foi apenas o ano em que a guerra ideológica iniciada dentro dos quartéis passou para uma outra etapa, a da luta pelo poder civil. Antes disso, as tropas passaram por uma fase intensa de doutrinação e ganharam organicidade. Foram forjadas pelo anticomunismo de seus comandantes (eles próprios, produtos ideológicos do regime militar que torturou e matou inimigos políticos, submeteu a Justiça e cerceou a liberdade) e são altamente manipuláveis e submissas aos seus comandos.
Quando os militares botaram de vez a cara para fora, apoiando a candidatura de Jair Bolsonaro à Presidência, em 2018, lá dentro já tinham constituído um partido coeso e fortemente armado. A tropa já estava conformada como um poderoso aparelho de ideologia.
Uma das lições dos manuais de guerra ideológica é forçar polarização. As tropas devem ter sempre um grande inimigo, real ou imaginário. Aí reside a força da doutrinação ideológica para a guerra.
Não é necessário grande argúcia para entender qual foi o primeiro elemento de polarização usado na moldagem das tropas: é a própria sociedade civil, “contaminada” pelo petismo, a primeira inimiga. Quando essa polaridade “plantada” prevalece dentro dos quartéis militares ou policiais, some o escrúpulo com qualquer ato de eliminação física – seja por meio de uma pandemia; seja pela bala, nos bolsões de pobreza; seja de índios, quilombolas ou eventuais vítimas de balas perdidas. A eliminação física é um ato de guerra. O morto, o inimigo. A identidade entre pobres e os governos de esquerda os tornam alvos fáceis e justificados.
Nas eleições de 2018, a operação militar se estende ao país. Não se entenda aí como uma aliança civil-militar, mas como uma estratégia de guerra não-convencional de manipulação da opinião pública. Nesta nova fase da guerra ideológica, a polaridade é construída contra a única força política que poderia se opor ao avanço militar, o Partido dos Trabalhadores.
O trabalho de afastar Lula das urnas em 2018 seria operado pelo braço judicial da guerra híbrida imperialista, a Operação Lava Jato, que colocou o líder petista na prisão por 580 dias. Com Lula atrás das grades, a ofensiva contra o PT é construída sob a velha base doutrinária do regime militar de 1964, da qual as Forças Armadas são caudatárias: o anticomunismo e o discurso anticorrupção, talhados às classes médias, que são sociologicamente sensíveis à doutrinação de extrema-direita e facilmente cooptáveis como exércitos de lúmpens, porosos que são à doutrinação conservadora.
Uma vez eleito Jair Bolsonaro, o candidato que representa a força vitoriosa na guerra ideológica particular das Forças Armadas, a manutenção do poder pressupõe operações de desestabilização permanentes para desorientar o inimigo e manter opositores potenciais com a sensação diuturna de que o pior está por vir, em caso de reação ao poder militar que agora submete a todos os civis pela força do voto, das armas e da coação. As milícias são a extensão disso, assim como os clubes de tiro e a incitação da força física contra o inimigo civil. A ideia de um inimigo permanente, note-se, é a base da guerra ideológica. O estímulo ao uso da força está implícito nessa ideia.
Do ponto de vista ideológico, a polarização é feita sob as mesmas velhas bases doutrinárias do regime militar usadas nos intramuros militares, na primeira fase da operação de guerra não-convencional. O anticomunismo prevalece, absoluto. Ultrapassado pela história, esse eixo doutrinário é substituído grosseiramente pelo antipetismo, como se o PT fosse uma camuflagem de um fantasma do passado. Num regime de inspiração fascista, é isso que força o extremismo ideológico da direita e o uso dele não é apenas para fins de propaganda. Ele justifica, por exemplo, a ação de brigadas bolsonaristas extremadas contra aqueles que consideram seus principais opositores no campo popular e democrático. A ação política violenta não é efeito colateral, é objetivo.
Na luta pelo domínio de um país por meio de uma guerra não-convencional, manter o território ocupado sob instabilidade permanente é a grande arma. Uma das táticas de guerra é a “emissão constante de sinais contraditórios junto com resoluções anteriormente planejadas”, segundo Leirner. Este jogo foi feito durante muito tempo entre Bolsonaro e seu vice, Hamilton Mourão, e em crises construídas entre Bolsonaro e seus ministros militares. É o que se designa de “camuflagem”, uma forma de escamotear protagonismos e, de quebra, passar à sociedade sempre a imagem de um risco eminente de ruptura institucional.
Nos últimos dois anos, este tipo de camuflagem foi perdendo importância com a construção de um antagonismo permanente entre Bolsonaro, e os militares, contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Esta é a polarização construída na terceira etapa da guerra híbrida dos militares brasileiros contra a sociedade civil: um “estado de guerra” entre o Poder Executivo, que tem o monopólio de todo o aparelho de coação do Estado (não existem grandes fissuras hoje entre militares, policiais e mesmo milícias paramilitares), e a Justiça, que teoricamente tem que defender as instituições.
A força e a lei estão em conflito permanente – e isso, no mínimo, cria um clima de medo que desmobiliza as forças contrárias à tropa. E é sempre bom lembrar, a todo o minuto: a primeira polarização forçada pelos militares foi a estabelecida, dentro dos quartéis, entre os militares (ou as pessoas armadas) e os civis (as pessoas desarmadas). Isso é uma ação de guerra em sua essência: a desmobilização do inimigo.
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