quarta-feira, 15 de novembro de 2017

No MinC de Temer, a cultura do compadrio

Por Jotabê Medeiros, na revista CartaCapital:

Qual será o interesse que leva uma pessoa a aceitar um cargo em um regime de exceção? A primeira resposta que ocorre é: vantagens? Três meses depois que o jornalista Sérgio Sá Leitão assumiu o Ministério da Cultura do governo Temer, dando fim a uma vacância de 34 dias na pasta, seu currículo levanta dúvidas sobre as motivações no cargo.

Ex-secretário do ministro Gilberto Gil durante dois anos, ex-secretário municipal de Cultura do Rio de Janeiro na gestão de Eduardo Paes (PMDB) e ex-presidente da RioFilme, Leitão tinha, ao contrário do antecessor, Roberto Freire, um perfil de trânsito no meio cultural. E não pesa contra ele acusação de malversação, tráfico de influência ou desvios, ao contrário de quase todo o espectro ministerial do governo Temer.

Quando esteve ao lado de Gil no governo Lula, Sérgio Sá Leitão, hoje com 49 anos, bateu-se pela aprovação da Ancinav, projeto abortado de uma agência reguladora nacional de cinema e audiovisual (que rendeu ao governo Lula o carimbo de “dirigista” e a acusação de que pretendia estatizar o direito autoral). Leitão atribuiu o combate à Ancinav a um “desejo da oposição de contrapor uma teoria conspiratória ao êxito da política econômica do governo, na véspera da eleição” e a “interesses contrariados, ou não contemplados na íntegra, de agentes econômicos do setor audiovisual”.

Hoje do lado da antiga oposição que criticava, Leitão pulou o muro de diversas maneiras. Primeiro se tornou assessor de financiadores da área do audiovisual, o principal deles o BNDES. Depois, aventurou-se pela iniciativa privada, como vice-presidente da Associação das Distribuidoras Independentes Brasileiras de Obras Audiovisuais (Adibra) e sócio da produtora Solar Filmes e da editora AgitProp, CEO da produtora Escarlate Audiovisual e da Vereda Filmes, cujo braço exportador é a Vereda Internacional Audiovisual. Trabalhou também para o grupo distribuidor de filmes Severiano Ribeiro.

Com foco e lucros advindos da área audiovisual, não foi surpresa quando, há alguns dias, Leitão escolheu para a direção da Agência Nacional de Cinema (Ancine) um parceiro da iniciativa privada: Christian de Castro, cofundador da Vereda Filmes, distribuidora voltada para o mercado internacional e que empregou o ministro durante uma temporada. Leitão trabalhou com Castro também em pareceres e consultorias na empresa Zooks e até criou com ele uma empresa, a AfroReggae Audiovisual, em parceria com José Júnior.

Alguns sites de informação noticiaram que a próxima intenção de Sá Leitão é a de conduzir Christian de Castro à presidência da Agência Nacional de Cinema. A posição de ministro da Cultura dá a prerrogativa ao ocupante de nomear diretores de instituições coligadas (Biblioteca Nacional, Iphan, Ibram, Ancine, Casa de Rui Barbosa). No caso da Ancine, os diretores têm mandato de dois anos, renovável, constituindo-se num problema para quem for eleito no ano que vem.

Interpelado pela reportagem de CartaCapital, o Ministério da Cultura enviou nota dizendo que Christian de Castro tem 20 anos de “destacada atuação no setor audiovisual brasileiro”, que sua indicação para a Ancine foi apoiada por “diversas entidades e associações do setor”, foi “sabatinado e aprovado por unanimidade pela Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado Federal” e pelo plenário do Senado.

O MinC confirmou que o ministro e Castro trabalharam juntos na Vereda Filmes “há cerca de dez anos, por alguns meses”, e na AfroReggae Audiovisual, há dois anos. “Para assumir a função, ele se desligou de suas atividades privadas”, informou. O audiovisual voltou a ocupar a rotina do ministro no fim de outubro, durante um simpósio em São Paulo no qual ele falou em planos para os próximos cinco anos – apesar de estar em um governo-tampão.

Alfinetando certa “governança falha” na condução da política do audiovisual e munido de um diagnóstico que ele mesmo diz ter preparado, com a ajuda da Ancine, ressaltou o fato de que, dos recursos do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA, fundo estatal formado com dinheiro de taxação do mercado) nos últimos cinco anos, “somente 7% foram destinados ao desenvolvimento e 4% à distribuição”.

Disse que quer inverter essa prioridade, destinando mais dinheiro ao setor de onde é egresso. “Meus amigos, eu posso afirmar, pela experiência que tenho na área, que dessa maneira não se desenvolve uma indústria do audiovisual”, decretou.

O diagnóstico de Leitão mostrava que, dos 881 filmes produzidos desde 2012 sem recursos do Fundo Setorial do Audiovisual, 438 tiveram a média de 3.650 ingressos vendidos. Sá Leitão ironizou, dizendo que tinha mais amigos no Facebook do que isso. “Não são todos amigos. Mas pelo menos não há haters”, afirmou. O FSA arrecadou 7,7 bilhões de reais desde 2012 (em 2017, 1 bilhão de
reais oriundos das teles). Desse total, 3,8 bilhões foram destinados ao cinema.

Estabelecer uma cabeça de ponte estratégica em um governo em ruínas como o de Temer é complicado. Primeiro, exige certa ambiguidade ética. Quando esquentou o debate sobre os limites entre arte e moralidade nos museus brasileiros, Sá Leitão foi rápido em defender uma classificação etária para exposições de arte. O Museu de Arte de São Paulo entendeu isso como um recado e baixou uma classificação de 18 anos para uma mostra sobre sexualidade.

Como dizia Nietzsche, se você olhar longamente para o abismo, o abismo também olha para dentro de você. Durante uma reunião com a bancada evangélica da Câmara dos Deputados, organizada pelo deputado Sóstenes Cavalcante (DEM-RJ), Leitão quis fazer média com a brigada de suposta motivação religiosa. Declarou que a performance La Bête, que ocupou o MAM de São Paulo (e acirrou ânimos após circular um vídeo no qual uma criança acompanhada da mãe tocou nas mãos e pés do coreógrafo Wagner Schwartz, que estava nu), apresentava “um claro descumprimento do que determina o Estatuto da Criança e do Adolescente”.

No dia 18, durante uma audiência pública na Câmara dos Deputados, ao tentar explicar que não era favorável à censura de exposições de arte, o ministro foi vulgarmente atacado por um deputado, o fanático Givaldo Carimbão (PHS-AL), em cruzada contra a mostra Queermuseu, banida do Santander Cultural de Porto Alegre.

“Eu queria que fosse com a mãe dele. Eu queria que fosse com a mãe do ministro. Mijando na cabeça dela. Porque Maria é minha mãe. Maria é minha mãe. Maria é minha mãe. Eu queria pegar a mãe do ministro e colocar com as pernas abertas como está aqui nessas fotos, como Pastor Eurico mostrou, se ele gostava. Pegar sua filha...”, espumou Carimbão.

Sérgio Sá Leitão descobriu ali que não se pode brincar com fogo. Mas continua pendendo para o lado da fogueira: recentemente, informou a um colunista carioca que pretende incluir um artigo numa minuta de nova regulamentação da Lei Rouanet (a segunda em um ano de Temer). No seu artigo, Leitão quer vetar a apresentação de propostas que “vilipendiem a fé religiosa, promovam a sexualização precoce de crianças e adolescentes ou façam apologia a crimes ou atividades criminosas”. Qualquer alegoria artística pode ser enquadrada nessa definição, abrindo um perigoso precedente para a censura.

“Estamos presenciando uma espécie de ditadura coletiva, muito próxima do que foi o início do nazismo. A Alemanha dos anos 1930 também utilizou a publicidade para criar um estado de histeria coletiva, para conduzir as pessoas para um sentimento fanático”, reagiu o premiado artista Ernesto Neto, em entrevista ao jornal O Globo.

O recrudescimento da censura pediria uma ação mais efetiva do Estado brasileiro, se este houvesse, para coibir os abusos e o ataque às liberdades de expressão. Na Paraíba, um policial deu voz de prisão a uma estudante e a um professor por pintarem os dizeres “seja marginal, seja herói”, estandarte de 1968 de Hélio Oiticica. Os artistas estão lutando.

Fizeram abraçaços no Masp e no MAM de São Paulo. Enfrentaram sprays de pimenta na Cinelândia na semana passada, capitaneados pela empresária Paula Lavigne. Até o baterista do grupo irlandês U2 entrou em cena no Estádio do Morumbi vestindo uma camiseta com os dizeres “censura nunca mais”. Mas a inanição do MinC de Temer é sintomática: de onde não se espera nada é que não vem nada mesmo, já dizia o ditado.

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