segunda-feira, 8 de novembro de 2010

"Lula não poderá ser sombra de Dilma"

Reproduzo entrevista da socióloga Maria Victoria Benevides, publicada na revista IstoÉ:

Aos 68 anos, Maria Victoria Benevides é uma das mais importantes e independentes sociólogas do País. Professora titular da Escola de Educação da Universidade de São Paulo, ela estudou na França e nos Estados Unidos. Observadora atenta do cenário político brasileiro, Maria Victória tem dez livros publicados, entre eles “O Governo Kubitschek”, “A UDN e o Udenismo” e o “PTB e o Trabalhismo”.

É uma das pioneiras do estudo dos direitos humanos e, em 1986, recebeu do Conselho Nacional de Mulheres o título de Mulher do Ano na área de ciência política.

Tem participado dos debates públicos sobre a reforma política, com ênfase nos instrumentos de democracia direta. Participou dos debates de fundação do PT, mas se afastou do partido em 2005, e nunca perdeu sua independência intelectual e acadêmica (*).

Maria Victoria faz críticas ao processo eleitoral e enumera os desafios que deverão ser enfrentados pela presidente eleita, Dilma Rousseff. “Num país ainda dominado por uma política machista e personalista, ter pela primeira vez uma mulher como presidente da República é uma grande novidade”, disse.

O maior desafio, entretanto, ainda está por vir. “Haverá sobre Dilma uma dupla cobrança. Assim como Lula dizia que não podia errar por ser um operário de origem pobre, ela não poderá errar exatamente pelo fato de ser mulher”, explica a socióloga.

A entrevista é de Claudio Dantas Sequeira e Sérgio Pardellas e publicada pela revista IstoÉ, no. 219, 05-11-2010. Eis a entrevista:

O que representa a vitória da Dilma Rousseff?

A primeira observação é bastante óbvia. A eleição de Dilma significa o apoio à continuidade do governo Lula. Ela foi a candidata de uma coligação partidária que é a base de apoio do governo e pessoalmente indicada pelo presidente como sua sucessora. Mas há uma especificidade nessa vitória: o fato de ser a primeira mulher presidente do Brasil, embora já tenha ocorrido em outros países europeus e latino-americanos, para nós é uma grande novidade. Ela terá um peso muito grande sobre si. Será cobrada como presidente e como mulher.

O fato de Dilma ser mulher embute uma cobrança maior?

Sim. A política brasileira não é apenas muito machista, mas também personalista. A própria Dilma, quando candidata, sempre se referiu a isso. Lula dizia que não podia errar por ser um operário, pau-de-arara, um nordestino de origem pobre que chegou a presidente do Brasil. Não podia errar e trair a confiança de todos que votaram nele e se identificaram com ele. Dilma, por sua vez, não poderá errar pelo fato de ser a primeira mulher.

A sra. acha que o presidente, assim que passar a faixa presidencial, deve se retirar da cena política?

Acho que Lula deve ser retirar sim, inclusive por respeito à presidente eleita e às regras republicanas e democráticas. Ele não pode ser uma sombra para a presidente. Lula terá ainda algum tempo na Presidência para fazer a transição da melhor maneira e, evidentemente, discutir com ela temas cruciais que serão herdados naturalmente. Há uma lista grande: reformas política, tributária, fundiária e agrária, toda a problemática do desenvolvimento sustentável e o agronegócio, assim como a revisão do processo de nomeação de novos membros do Supremo Tribunal Federal e o enfrentamento do poder hegemônico e sem controle dos meios de comunicação de massa.

Dilma terá condições de aglutinar os partidos para a aprovação das reformas?

As reformas não foram feitas porque o presidente Lula fosse contra seu conteúdo, mas porque eram mais difíceis na correlação de forças. O Lula não tinha a maioria que o novo governo terá no Congresso. Sua personalidade também é diferente, baseada na negociação e conciliação. Dilma deverá fugir do estilo de conciliação do presidente Lula, será mais favorável ao encaminhamento das reformas. Ela tem uma excelente relação com o PT. Não tem ligações com grupos envolvidos em disputas políticas. O papel dela será extremamente importante. Mas a sua equipe, o ministério e seu conselho político deverão ter um peso especial para redirecionar, de certa forma, a relação do Executivo com o Legislativo.

O PT, que agora é maioria na Câmara, terá mais responsabilidade nessa tarefa?

O partido certamente tem a obrigação de dividir com o presidente essa responsabilidade. Mas temos de lembrar que programa de um partido é uma coisa e programa de governo, outra. E isso terá que ser muito bem avaliado. Mas confio que o partido terá esse bom-senso, ainda mais porque as lideranças partidárias sabem perfeitamente que não ganharam sozinhas a eleição. Fizeram alianças e coligações. Vale lembrar que o Brasil é uma federação, em que o peso dos Estados conta e o resultado eleitoral mostra um mapa diferenciado de adesão à candidatura vitoriosa.

Diante do resultado fraco nas eleições, qual o caminho para a oposição? PSDB e DEM devem ficar unidos?

Durante os oito anos do governo FHC, eles estiveram unidos. Essa aliança se repetiu agora, e é muito forte em São Paulo, Minas e alguns Estados do Nordeste e do Sul. Então, vejo PSDB-DEM como uma unidade, o que lamento. Acho que seria importante para o Brasil ter uma oposição crítica, que fiscalize e controle, e uma social-democracia autêntica, o que infelizmente não temos. A oposição vai partir para uma linha mais aguerrida e vai dar muito trabalho dentro e fora do Congresso. Essa oposição pode ter perdido as eleições, mas não perdeu necessariamente seu espaço na sociedade. Com raríssimas exceções, toda a chamada grande imprensa apoiou a candidatura PSDB-DEM.

Aécio Neves tem a capacidade de circular não só na oposição, mas também entre os partidos governistas Qual será o papel dele a partir de agora?

Aécio é um nome natural para 2014. É um candidato que já demonstrou que tem em primeiríssimo lugar a sua carreira pes¬soal. Haja visto seu comportamento durante todo o primeiro turno das eleições presidenciais, quando não participou da campanha de José Serra. Tanto por sua própria vontade como por seus desacertos com o Serra e a cúpula paulista do PSDB. Vejo o ex-governador Aécio como um político jovem que vai se dedicar daqui para a frente a assumir um papel de oposição a outro político jovem que se destacou muito nessas últimas eleições, que é o governador de Pernambuco, Eduardo Campos. Quer dizer, temos de um lado o neto de Miguel Arraes e de outro o neto de Tancredo Neves, como jovens políticos que têm o objetivo legítimo de se candidatar aos cargos mais elevados.

Eles representam uma nova forma de fazer política ou reproduzem a tradição de seus avós?

Isso eu não saberia dizer. Pelo que conheço de Arraes e Tancredo, nenhum de seus netos tem o mesmo estilo de fazer política, simplesmente porque o Brasil e o mundo mudaram muito. É claro que o nome da família continua forte, mas o aproveitamento é só dessa tradição.

Aécio, Eduardo Campos e a própria Dilma se destacam pela boa gestão. Estamos diante de uma nova geração de políticos com perfil mais técnico?

Se for isso, eu lamentarei muito. Porque um político, ainda mais num cargo executivo elevado, como presidente da República ou governador de Estado, não é principalmente um gestor. Ele tem que ter uma equipe que seja competente, eficiente e moderna, para melhor aproveitar os recursos materiais e humanos disponíveis. Mas o político, acima de tudo, é político. Tem o compromisso com o interesse público em torno de princípios e principalmente na definição de prioridades. Costumo dizer a meus alunos que se votar para presidente, para governador, para prefeito se resumisse na escolha do melhor gerente, não precisaríamos de uma eleição, mas de um concurso público.

Com os 20 milhões de votos obtidos no primeiro turno, Marina Silva se consolida como alternativa política para o futuro?

Não. Política é muito mais do que um nicho eleitoral. Ela tem uma história de vida maravilhosa, tem compromisso ético e agregou muito ao debate com a questão ambiental. Mas em termos de grande política, seu programa é claramente insuficiente, assim como sua agilidade política para perceber quando e como agir. Considero, por exemplo, bastante ruim, do ponto de vista político, ela não ter definido uma posição para o segundo turno. Fica muito difícil entender essa posição de neutralidade. Isso não existe na política.

É viável o retorno do presidente Lula em 2014?

Nenhum presidente saiu do governo com um apoio de 80% da população. Então, é perfeitamente legítimo que haja a proposta de uma volta. Mas a nova presidente tem o direito de tentar a reeleição. E seria uma falta de respeito com Dilma extirpar radicalmente essa hipótese.

Considerando a guerra suja travada especialmente no segundo turno e as confusões em torno da Lei da Ficha Limpa, que lições se pode tirar da campanha?

No Brasil ainda há um subdesenvolvimento político muito grande, especialmente em termos de conscientização e entendimento do que é participar politicamente. Nossa democracia participativa ainda é muito incipiente, embora tenha dado um exemplo eloquente com a campanha da Ficha Limpa. Além disso, temos de entender o peso da religiosidade na mentalidade do brasileiro. PSDB e DEM se aproveitaram sordidamente dessa religiosidade do povo brasileiro e uma parte da Igreja Católica se comportou de maneira ignóbil. Temas de foro íntimo, de moral privada e de religião não podem ser explorados politicamente nas campanhas eleitorais. O aborto, por exemplo, é uma questão de saúde pública.

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(*) Após a publicação da entrevista, a professora enviou esclarecimento importante para sua lista de emails:

"Venho informar que, ao contrário do que aparece na apresentação de minha entrevista à revista IstoÉ, não me afastei do PT, embora tenha sofrido muito com a crise de 2005. Pertenço à corrente Mensagem ao Partido, liderada por Tarso Genro, Paulo Vannuchi, Fernando Haddad, José Eduardo Cardoso,Carlos Neder, Zilah Abramo, André Singer, entre outros.

Favor divulgar,

Abraços, Maria Victoria Benevides"


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