Por Enio Squeff, no sítio Carta Maior:
Eugène Delacroix ( 1798-1863), um dos maiores pintores europeus de todos os tempos, durante boa parte da sua vida produtiva escreveu um diário que ainda hoje interessa não só a artistas e historiadores da arte. Ao escrever sobre os soldados, por exemplo, ele manifesta algumas reservas que talvez refletissem os tempos napoleônicas: não os via senão como bucha de canhão, meras vítimas de glórias duvidosas. Generalizava, para cantar um mundo de paz que se sabe quase impossível. Mas que talvez se explique. Parece comum que os artistas - quem sabe por dever de ofício - sempre projetem o inalcançável.
O grande Oscar Niemeyer teria dito há pouco que se soubesse do índice de criminalidade que se observa entre os congressistas brasileiros, talvez tivesse mudado a forma das duas casas parlamentares de Brasília para qualquer coisa parecida com um camburão. Prefiguraria uma ameaça que, quem sabe, dissuadiria parlamentares e senadores de se entregarem também ao ofício de prevaricar.
Exagerou em sua indignação cidadã - mas não extrapolou o que parece ser comum a todos parlamentos, não só hoje mas na história. Mark Twain, grande escritor americano e jornalista, comentava no fim do século XIX que os Estados Unidos tinha o melhor parlamento que o dinheiro podia comprar. Tirante as generalizações próprias dos artistas - e Mark Twain sabia tanto como Delacroix e Oscar Niemeyer o quanto isso significa - há que se incluir muitas instituições e gente na categoria dos imputáveis. Parece ser o caso da Fundação Padre Anchieta. Nada indica que seja um caso de polícia, mas ela reflete uma crise: a da cultura em si alinha-se entre elas. No fundo, talvez, seja de se perguntar como fez Lênin: quê fazer?
Não é uma pergunta fácil de ser respondida. Para a grande mídia hegemônica vale o que lhe concerne - seus shows, as matérias que eventualmente discutem a cultura, a entrevista como grande homem e a grande mulher.O mais, porém, é a sua linha de montagem. Que será sempre de seu interesse para seus lucros; e lucro não é cultura. Mas é aqui que entra a TV Cultura. O fato de ela ser pública - um próprio do Estado - parece não tê-la isentado de influências ideológicas dos governos. Uma coisa é o estado; outro o governo - quem diz isso é o "espírito das leis democráticas." Fosse de outra forma, elegeríamos ditadores - não governantes eventuais.
Esta talvez seja a contradição dos últimos anos, não só no Brasil. Graças à ideologia neoliberal, há quem aceite como perfeitamente lícito que homens e mulheres, que elegemos para cargos públicos, disponham do próprios estatais a seu bel prazer. Vendê-los em nome de uma economia de gastos que ainda está para ser comprovada, mas que já se mostrou falsa (a palavra da grande imprensa não vale: é parte interessada no negócio) talvez o futuro justifique em parte. Mas e uma TV Pública? Volta-se à questão fundamental sobre o que fazer.
Por enquanto, na dúvida, tudo se tem dado "contra o réu" e a venda dos próprios do Estado- sem qualquer consulta popular - vem sendo operada soberanamente, como se aos governos eleitos fosse dado apenas e tão somente que administrassem as vendas de estatais e fundações. Privatizar, essa a sua função precípua. Ela livra os administradores públicos do pesado encargo de, enfim, administrarem.
Da Fundação Padre Anchieta não se fala em privatização - mas tudo está se dando conforme o script: já que seu atuais administradores não conseguem ultrapassar os mirrados dois ou três pontos de audiência - entreguem-se os pontos às empresas privadas.
Há anos, houve um debate, na TV, entre o economista Bresser Pereira - na época um dos campeões da privatização - e o então secretário de estado, Mangabeira Unger. O tema da venda do patrimônio público eram favas já contadas para a grande imprensa; mesmo assim, por esses acidentes de percurso, houve o debate. Não se chegou a nada - que os debates normalmente são para isso -, para nada - mas Mangabeira Unger levantou uma questão pertinente. Apontando para Bresser Pereira, ele acusou os privatistas de assumirem cargos públicos, administrarem mal o estado e, dada a sua própria incompetência, entregarem as estatais ao setor privado, sob a alegação de que "o estado não sabe administrar." E acrescentou: "quem administra mal o estado são vocês que o governam". Não houve réplica - mas parece um bom mote para reflexões.
Como muito bem pespegou Delacroix, a criação de exércitos exige a consecução de guerras. A lógica talvez não se aplique in totum para as forças armadas. No Hino do Soldado - no tempo em que os cantávamos nas escolas - dizia-se que "a paz queremos com fervor, a guerra só nos causa dor, porém, se a pátria amada, for um dia ultrajada "et.etc. " Pelo nosso hino, ficam as ressalvas de que "a guerra só nos causa dor", mas pelo neoliberalismo, ou pelo neo-anarquismo, de direita, através das cartilhas pelas quais muitos governos e a grande imprensa ainda rezam, é mais que um hino que o estado, mais que a dor, nos causa dissabor (com o perdão da rima), principalmente se lhe for dado administrar a "coisa pública".
Este, parece o dilema não expresso explicitamente a propósito da crise da TV Cultura. Nada indica que seu quadro de funcionários piorou desde que a Fundação Padre Anchieta começou a perder pontos em audiência. Mas tudo aponta, pelo contrário, que a TV e a rádio vêm sendo mal dirigidas. Ressalva-se o corpo de funcionários, porque qualquer ouvinte da Cultura FM, pode ter críticas a muitos de seus programas - mas, no geral, é, sob o ponto de vista da divulgação da grande música, de longe, a melhor emissora do Brasil no gênero- incluídas todas as rádios estatais do País. É claro que o que está em jogo não é a qualidade da rádio e da TV, mas forma com que está sendo dirigida. Digamos que entre ouvir a TV Globo - a matriz - e a a TV Cultura que quase sempre se faz a sua filial, principalmente em matéria de política- é normal que o grande público prefira o original. Os comentaristas muito dificilmente acrescentam algo de novo, ou que não seja rigorosamente o que as outras televisões dizem.
Ao que parece, a Fundação Padre Anchieta, de tanto ser instrumentalizada, perdeu qualquer interesse. Transformou-se de órgão estatal em instrumento de governo. Ou seja, vem sendo há muito mal gerida, ou se quiserem, dirigida por uma única visão da mundo. Se na Ditadura a palavra diversidade era mal vista pelas autoridades, pelo vezo de considerar tudo subversivo - na Cultura, salvo "os soldados - os "comandantes vivem em camisas de força. Ou alguém já esqueceu que" um dos âncoras de um dos programas mais escutados (Roda Viva) foi mandado embora por ter feito uma pergunta incômoda a um então governador da época - desta época que já dura vinte anos?
Há um mal estar evidente na vida política brasileira. De um lado, a cada dia, os políticos inflam a indignação dos cidadãos: Oscar Niemeyer não clamou no deserto ao ironizar sua própria grande obra. Ocorre que não dá para se viver a bipolaridade da política brasileira - de um lado, a grande imprensa e, de outro, o resto, nos quais se incluem eventuais governantes que a mídia não aceita. A TV Cultura entrou nesta dança de contrários; virou parte dela. Ninguém perde por esperar se a solução, mais uma vez, seja a sua privatização agora escamoteada sob a forma de "aluguel". Transfere-se a responsabilidade, não para os administradores da Cultura - mas para os de sempre. Será mais uma vez a mesma fala de todos os órgãos de imprensa. E a isso somos obrigados a rotular como parte da "democracia".
Em tempo: ao contrário de muitos de seus contemporâneos como Courbet que sempre se disse um revolucionário, Delacroix, pessoalmente, era um conservador. Mas criou a pintura mais emblemática de todas as revoluções em todas as épocas "A Liberdade conduzindo o Povo". Parece haver uma contradição insanável entre cultura e liberdade. A crise da Fundação Padre Anchieta tipifica o exemplo mais acabado disso. Pior, quem sabe, para a liberdade, mas pior, bem pior para a cultura. E, portanto, para a democracia.
Eugène Delacroix ( 1798-1863), um dos maiores pintores europeus de todos os tempos, durante boa parte da sua vida produtiva escreveu um diário que ainda hoje interessa não só a artistas e historiadores da arte. Ao escrever sobre os soldados, por exemplo, ele manifesta algumas reservas que talvez refletissem os tempos napoleônicas: não os via senão como bucha de canhão, meras vítimas de glórias duvidosas. Generalizava, para cantar um mundo de paz que se sabe quase impossível. Mas que talvez se explique. Parece comum que os artistas - quem sabe por dever de ofício - sempre projetem o inalcançável.
O grande Oscar Niemeyer teria dito há pouco que se soubesse do índice de criminalidade que se observa entre os congressistas brasileiros, talvez tivesse mudado a forma das duas casas parlamentares de Brasília para qualquer coisa parecida com um camburão. Prefiguraria uma ameaça que, quem sabe, dissuadiria parlamentares e senadores de se entregarem também ao ofício de prevaricar.
Exagerou em sua indignação cidadã - mas não extrapolou o que parece ser comum a todos parlamentos, não só hoje mas na história. Mark Twain, grande escritor americano e jornalista, comentava no fim do século XIX que os Estados Unidos tinha o melhor parlamento que o dinheiro podia comprar. Tirante as generalizações próprias dos artistas - e Mark Twain sabia tanto como Delacroix e Oscar Niemeyer o quanto isso significa - há que se incluir muitas instituições e gente na categoria dos imputáveis. Parece ser o caso da Fundação Padre Anchieta. Nada indica que seja um caso de polícia, mas ela reflete uma crise: a da cultura em si alinha-se entre elas. No fundo, talvez, seja de se perguntar como fez Lênin: quê fazer?
Não é uma pergunta fácil de ser respondida. Para a grande mídia hegemônica vale o que lhe concerne - seus shows, as matérias que eventualmente discutem a cultura, a entrevista como grande homem e a grande mulher.O mais, porém, é a sua linha de montagem. Que será sempre de seu interesse para seus lucros; e lucro não é cultura. Mas é aqui que entra a TV Cultura. O fato de ela ser pública - um próprio do Estado - parece não tê-la isentado de influências ideológicas dos governos. Uma coisa é o estado; outro o governo - quem diz isso é o "espírito das leis democráticas." Fosse de outra forma, elegeríamos ditadores - não governantes eventuais.
Esta talvez seja a contradição dos últimos anos, não só no Brasil. Graças à ideologia neoliberal, há quem aceite como perfeitamente lícito que homens e mulheres, que elegemos para cargos públicos, disponham do próprios estatais a seu bel prazer. Vendê-los em nome de uma economia de gastos que ainda está para ser comprovada, mas que já se mostrou falsa (a palavra da grande imprensa não vale: é parte interessada no negócio) talvez o futuro justifique em parte. Mas e uma TV Pública? Volta-se à questão fundamental sobre o que fazer.
Por enquanto, na dúvida, tudo se tem dado "contra o réu" e a venda dos próprios do Estado- sem qualquer consulta popular - vem sendo operada soberanamente, como se aos governos eleitos fosse dado apenas e tão somente que administrassem as vendas de estatais e fundações. Privatizar, essa a sua função precípua. Ela livra os administradores públicos do pesado encargo de, enfim, administrarem.
Da Fundação Padre Anchieta não se fala em privatização - mas tudo está se dando conforme o script: já que seu atuais administradores não conseguem ultrapassar os mirrados dois ou três pontos de audiência - entreguem-se os pontos às empresas privadas.
Há anos, houve um debate, na TV, entre o economista Bresser Pereira - na época um dos campeões da privatização - e o então secretário de estado, Mangabeira Unger. O tema da venda do patrimônio público eram favas já contadas para a grande imprensa; mesmo assim, por esses acidentes de percurso, houve o debate. Não se chegou a nada - que os debates normalmente são para isso -, para nada - mas Mangabeira Unger levantou uma questão pertinente. Apontando para Bresser Pereira, ele acusou os privatistas de assumirem cargos públicos, administrarem mal o estado e, dada a sua própria incompetência, entregarem as estatais ao setor privado, sob a alegação de que "o estado não sabe administrar." E acrescentou: "quem administra mal o estado são vocês que o governam". Não houve réplica - mas parece um bom mote para reflexões.
Como muito bem pespegou Delacroix, a criação de exércitos exige a consecução de guerras. A lógica talvez não se aplique in totum para as forças armadas. No Hino do Soldado - no tempo em que os cantávamos nas escolas - dizia-se que "a paz queremos com fervor, a guerra só nos causa dor, porém, se a pátria amada, for um dia ultrajada "et.etc. " Pelo nosso hino, ficam as ressalvas de que "a guerra só nos causa dor", mas pelo neoliberalismo, ou pelo neo-anarquismo, de direita, através das cartilhas pelas quais muitos governos e a grande imprensa ainda rezam, é mais que um hino que o estado, mais que a dor, nos causa dissabor (com o perdão da rima), principalmente se lhe for dado administrar a "coisa pública".
Este, parece o dilema não expresso explicitamente a propósito da crise da TV Cultura. Nada indica que seu quadro de funcionários piorou desde que a Fundação Padre Anchieta começou a perder pontos em audiência. Mas tudo aponta, pelo contrário, que a TV e a rádio vêm sendo mal dirigidas. Ressalva-se o corpo de funcionários, porque qualquer ouvinte da Cultura FM, pode ter críticas a muitos de seus programas - mas, no geral, é, sob o ponto de vista da divulgação da grande música, de longe, a melhor emissora do Brasil no gênero- incluídas todas as rádios estatais do País. É claro que o que está em jogo não é a qualidade da rádio e da TV, mas forma com que está sendo dirigida. Digamos que entre ouvir a TV Globo - a matriz - e a a TV Cultura que quase sempre se faz a sua filial, principalmente em matéria de política- é normal que o grande público prefira o original. Os comentaristas muito dificilmente acrescentam algo de novo, ou que não seja rigorosamente o que as outras televisões dizem.
Ao que parece, a Fundação Padre Anchieta, de tanto ser instrumentalizada, perdeu qualquer interesse. Transformou-se de órgão estatal em instrumento de governo. Ou seja, vem sendo há muito mal gerida, ou se quiserem, dirigida por uma única visão da mundo. Se na Ditadura a palavra diversidade era mal vista pelas autoridades, pelo vezo de considerar tudo subversivo - na Cultura, salvo "os soldados - os "comandantes vivem em camisas de força. Ou alguém já esqueceu que" um dos âncoras de um dos programas mais escutados (Roda Viva) foi mandado embora por ter feito uma pergunta incômoda a um então governador da época - desta época que já dura vinte anos?
Há um mal estar evidente na vida política brasileira. De um lado, a cada dia, os políticos inflam a indignação dos cidadãos: Oscar Niemeyer não clamou no deserto ao ironizar sua própria grande obra. Ocorre que não dá para se viver a bipolaridade da política brasileira - de um lado, a grande imprensa e, de outro, o resto, nos quais se incluem eventuais governantes que a mídia não aceita. A TV Cultura entrou nesta dança de contrários; virou parte dela. Ninguém perde por esperar se a solução, mais uma vez, seja a sua privatização agora escamoteada sob a forma de "aluguel". Transfere-se a responsabilidade, não para os administradores da Cultura - mas para os de sempre. Será mais uma vez a mesma fala de todos os órgãos de imprensa. E a isso somos obrigados a rotular como parte da "democracia".
Em tempo: ao contrário de muitos de seus contemporâneos como Courbet que sempre se disse um revolucionário, Delacroix, pessoalmente, era um conservador. Mas criou a pintura mais emblemática de todas as revoluções em todas as épocas "A Liberdade conduzindo o Povo". Parece haver uma contradição insanável entre cultura e liberdade. A crise da Fundação Padre Anchieta tipifica o exemplo mais acabado disso. Pior, quem sabe, para a liberdade, mas pior, bem pior para a cultura. E, portanto, para a democracia.
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