Por Marco Piva
Em julho de 2009, participei das comemorações do 30º aniversário da Revolução Sandinista em Manágua. Um mar de gente inundou a Plaza de la Revolución, um dos únicos nomes de logradouro público que os governos neoliberais que mandaram no país entre 1990 e 2007 não conseguiram mudar. Além de Daniel Ortega, o presidente da República (reeleito em 2011), na tribuna se destacava um homem franzino e popular: era Tomás Borge, o único sobrevivente do grupo de fundadores da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), vanguarda político-militar que despachou a ditadura de Anastácio Somoza Debayle, em 19 de julho de 1979.
Naquela tarde ensolarada recordei dos meus tempos de juventude vividos na Nicarágua. Era a primeira vez que voltava ao país em 24 anos. Tudo havia mudado, menos as ruínas da antiga catedral, o vermelho e preto da bandeira sandinista e o semblante altivo de Tomás Borge. Agora, recebo a notícia de que ele morreu. Imediatamente recorro ao meu arquivo e localizo um breve artigo que escrevi sobre ele, publicado na revista Fórum (edição de agosto de 2009). Apesar das acusações de ordem moral que cercaram seus últimos anos de vida, Borge foi uma figura marcante, que merece ser lembrada em nome da história e da soberania da América Latina. Permitam-me a reprodução do artigo.
*****
O lendário comandante
Marco Piva, de Manágua
O comandante Tomás Borge é um daqueles mitos vivos da história latino-americana. Estatura baixa e corpo franzino, sua figura contrasta com a lista de ações ousadas que praticou contra a ditadura derrotada pela revolução em julho de 1979. Quando estava na prisão, em 1974, um oficial da Guarda Nacional de Anastácio Somoza entrou sorrindo em sua cela para dar a notícia de que Carlos Fonseca Amador, fundador da Frente Sandinista de Libertação Nacional como ele, havia morrido em combate. Como resposta, pronunciou uma frase que inspirou uma das músicas mais populares da Nicarágua: “Carlos Fonseca es de los muertos que nunca mueren”.
Borge tem se mantido fiel a Daniel Ortega, o que não aconteceu com outros comandantes do processo revolucionário. Já não anda escoltado como nos tempos que dirigiu o Ministério do Interior, quando era responsável pela segurança interna do país no auge dos ataques dos grupos contrarrevolucionários financiados pelo governo dos Estados Unidos. Discreto, tem preferido um distanciamento público, o que explica sua função atual: embaixador da Nicarágua no Perú. Mas, em conversas mais reservadas, traz a mesma eloqüência de seus tempos de “comandante de la Revolución”.
Não hesita, por exemplo, em dizer que as FARC precisam abandonar as armas. “Já passou do tempo, é preciso construir outro caminho”. Também acena para Lula, a quem elogia pela capacidade de diálogo e de inserção do Brasil como liderança emergente no cenário mundial. Lembra que o presidente brasileiro idealizou o Fórum de São Paulo, em 1990, como resposta dos partidos de esquerda ao desmoronamento do bloco socialista. Borge, que representou a FSLN, recorda um momento prosaico deste primeiro encontro do Fórum na capital paulista: a velocidade do carro que o recolheu no aeroporto de Guarulhos. Assustado com o velocímetro em disparada, perguntou ao motorista: “Por quê você está dirigindo assim?”. A resposta foi seca, segundo ele: “Ordens do chefe”. Talvez por isso enxergue em Lula uma rara agilidade em conquistar seus objetivos.
Outro líder do continente que merece sua reverência é Fidel Castro, “o maior de todos os homens de nossa América, o grande inspirador de nossas lutas”. Sem ele e a resistência de Cuba, acredita Borge, os sandinistas não teriam feito o que fizeram.
Mas, apesar de morar em Lima, o lendário comandante demonstra conhecer cada personagem político de seu país. Reserva críticas severas a ex-integrantes da FSLN que engrossam as fileiras da oposição. Um deles é o escritor Sergio Ramírez Mercado, que foi vice-presidente de Daniel Ortega. “Ele vive dizendo que nos apossamos de casas e propriedades confiscadas pela revolução, mas ganha muito dinheiro com o aluguel de suas mansões em Las Colinas (bairro nobre de Manágua), que ninguém sabe onde e como conseguiu”, acusa. Outro que está na mira de Borge é o ex-presidente do Banco Central, Edmundo Jarquín, líder do Movimento de Renovação Sandinista (MRS). “Anda por aí com o nariz empinado como qualquer representante da direita”.
A polarização política, traço característico da Nicarágua, leva o líder sandinista a um pragmatismo que supõe “pagar qualquer preço” para manter o processo revolucionário. O que isto significa? Para a oposição é o aliciamento de votos de deputados na Assembléia Nacional para promover mudanças na Constituição e permitir a reeleição de Ortega (*). Para Borge, é a responsabilidade histórica de não perder as eleições outra vez.
* Daniel Ortega foi reeleito em 2011.
Em julho de 2009, participei das comemorações do 30º aniversário da Revolução Sandinista em Manágua. Um mar de gente inundou a Plaza de la Revolución, um dos únicos nomes de logradouro público que os governos neoliberais que mandaram no país entre 1990 e 2007 não conseguiram mudar. Além de Daniel Ortega, o presidente da República (reeleito em 2011), na tribuna se destacava um homem franzino e popular: era Tomás Borge, o único sobrevivente do grupo de fundadores da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), vanguarda político-militar que despachou a ditadura de Anastácio Somoza Debayle, em 19 de julho de 1979.
Naquela tarde ensolarada recordei dos meus tempos de juventude vividos na Nicarágua. Era a primeira vez que voltava ao país em 24 anos. Tudo havia mudado, menos as ruínas da antiga catedral, o vermelho e preto da bandeira sandinista e o semblante altivo de Tomás Borge. Agora, recebo a notícia de que ele morreu. Imediatamente recorro ao meu arquivo e localizo um breve artigo que escrevi sobre ele, publicado na revista Fórum (edição de agosto de 2009). Apesar das acusações de ordem moral que cercaram seus últimos anos de vida, Borge foi uma figura marcante, que merece ser lembrada em nome da história e da soberania da América Latina. Permitam-me a reprodução do artigo.
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O lendário comandante
Marco Piva, de Manágua
O comandante Tomás Borge é um daqueles mitos vivos da história latino-americana. Estatura baixa e corpo franzino, sua figura contrasta com a lista de ações ousadas que praticou contra a ditadura derrotada pela revolução em julho de 1979. Quando estava na prisão, em 1974, um oficial da Guarda Nacional de Anastácio Somoza entrou sorrindo em sua cela para dar a notícia de que Carlos Fonseca Amador, fundador da Frente Sandinista de Libertação Nacional como ele, havia morrido em combate. Como resposta, pronunciou uma frase que inspirou uma das músicas mais populares da Nicarágua: “Carlos Fonseca es de los muertos que nunca mueren”.
Borge tem se mantido fiel a Daniel Ortega, o que não aconteceu com outros comandantes do processo revolucionário. Já não anda escoltado como nos tempos que dirigiu o Ministério do Interior, quando era responsável pela segurança interna do país no auge dos ataques dos grupos contrarrevolucionários financiados pelo governo dos Estados Unidos. Discreto, tem preferido um distanciamento público, o que explica sua função atual: embaixador da Nicarágua no Perú. Mas, em conversas mais reservadas, traz a mesma eloqüência de seus tempos de “comandante de la Revolución”.
Não hesita, por exemplo, em dizer que as FARC precisam abandonar as armas. “Já passou do tempo, é preciso construir outro caminho”. Também acena para Lula, a quem elogia pela capacidade de diálogo e de inserção do Brasil como liderança emergente no cenário mundial. Lembra que o presidente brasileiro idealizou o Fórum de São Paulo, em 1990, como resposta dos partidos de esquerda ao desmoronamento do bloco socialista. Borge, que representou a FSLN, recorda um momento prosaico deste primeiro encontro do Fórum na capital paulista: a velocidade do carro que o recolheu no aeroporto de Guarulhos. Assustado com o velocímetro em disparada, perguntou ao motorista: “Por quê você está dirigindo assim?”. A resposta foi seca, segundo ele: “Ordens do chefe”. Talvez por isso enxergue em Lula uma rara agilidade em conquistar seus objetivos.
Outro líder do continente que merece sua reverência é Fidel Castro, “o maior de todos os homens de nossa América, o grande inspirador de nossas lutas”. Sem ele e a resistência de Cuba, acredita Borge, os sandinistas não teriam feito o que fizeram.
Mas, apesar de morar em Lima, o lendário comandante demonstra conhecer cada personagem político de seu país. Reserva críticas severas a ex-integrantes da FSLN que engrossam as fileiras da oposição. Um deles é o escritor Sergio Ramírez Mercado, que foi vice-presidente de Daniel Ortega. “Ele vive dizendo que nos apossamos de casas e propriedades confiscadas pela revolução, mas ganha muito dinheiro com o aluguel de suas mansões em Las Colinas (bairro nobre de Manágua), que ninguém sabe onde e como conseguiu”, acusa. Outro que está na mira de Borge é o ex-presidente do Banco Central, Edmundo Jarquín, líder do Movimento de Renovação Sandinista (MRS). “Anda por aí com o nariz empinado como qualquer representante da direita”.
A polarização política, traço característico da Nicarágua, leva o líder sandinista a um pragmatismo que supõe “pagar qualquer preço” para manter o processo revolucionário. O que isto significa? Para a oposição é o aliciamento de votos de deputados na Assembléia Nacional para promover mudanças na Constituição e permitir a reeleição de Ortega (*). Para Borge, é a responsabilidade histórica de não perder as eleições outra vez.
* Daniel Ortega foi reeleito em 2011.
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