Por Nick Davies, do jornal britânico The Guardian, no sítio Carta Maior:
Londres - Olhemos primeiro para os pesadelos que não se tornaram realidade.
O governo não está sendo convidado a assumir o controle da imprensa. Todos as propagandas de página inteira que ligavam o lorde Brian Leveson a Robert Mugabe e Bashar Assad, toda a cobertura dos jornais The Sun e Daily Mail sobre a “imposição de uma coleira à mídia” e a ameaça de “regulação estatal da imprensa livre britânica” se provou não mais do que bobagens ditas por marqueteiros, não mais do que outro round da velha distorção que, afinal, tanto fez para a criação deste inquérito.
O relatório tampouco afirma que Fleet Street deva ser recompensada pelo repetido abuso de poder com concessão de ainda mais poder. Este, aliás, era o plano criado pelo lado conservador de Fleet Street, ainda cegamente confiante de que seriam nomeados os que tornariam a fiscalização da mídia confortabilíssima para Richard Desmond, proprietário do Express (que, quando perguntado sobre a ética que a imprensa deve seguir, respondeu “não conhecer o significado da tal palavra”), e que executivos do News International de Rupert Murdoch - que enganaram a imprensa, o público e o parlamento – ocupariam cargos nas investigações. Lorde Leveson rejeitou esse plano com uma frase só: “assim, a indústria se manteria dando nota para a própria lição de casa”.
Também, não estamos diante de uma catástrofe para o jornalismo britânico. Do ponto de vista de um repórter, o núcleo do Relatório Leveson, seu sistema de “auto-regulação independente”, não apresenta problemas óbvios.
Esse sistema desempenha três funções. Em primeiro lugar, ele lida com as reclamações. Mas o faz com um corpo organizado que nem é indicado nem responsável pela Fleet Street. A parte mais obscura da indústria reclama que essa é uma ameaça terrível à mídia livre, situação análoga à de um estuprador alegando que a polícia é uma ameaça ao amor livre. Por que devemos temer um julgamento independente? Por que não deveríamos nos envergonhar da velha Comissão de Queixas contra a Imprensa que, como diz o relatório, “falhou, não é, de modo algum, um regulador, carece de independência e provou seu alinhamento com os interesses da imprensa”? É difícil pensar em outra resposta decente ao testemunho de Kate e Gerry McCann, falsamente acusados do assassinato do próprio filho. Ou ao de Christopher Jefferis, difamado perversamente como homicida.
Em segundo, a nova regulação investigaria violações sistêmicas. Aqui, o relatório apresenta fraquezas. Não há (nem deve haver) qualquer sugestão de que o regulador detém o poder de obrigar a divulgação de documentos ou de vasculhar a mesa de um repórter. Isso diz respeito à investigação de quebras sistêmicas do código de conduta – por exemplo, entrevistar crianças sem o aval de seus pais ou fotografar a privacidade de alguém. Sem poderes policiais, o órgão regulador acaba apoiando-se no voluntarismo dos jornalistas. A história sugere que haverá os relutantes, já que as carreiras de alguns estarão em jogo.
Finalmente, e mais importante, a regulação se conduziria num novo sistema de arbitragem, mais barato e mais rápido do que as cortes civis.
Isso parece uma ótima notícia para repórteres que atualmente trabalham sob uma legislação relativa à difamação, privacidade e confidencialidade que realmente restringe a liberdade de imprensa, uma vez que estão ameaçados de danos e custos legais de uma escala tal que encoraja a supressão da verdade. Gente como Jimmy Savile acaba se dando bem nessas condições. O sistema de Leveson nos ajudaria a lidar com isso.
Há nisso tudo um pesadelo, mas ele pertence à velha guarda de Fleet Street. A perda do controle do regulador é a perda da permissão que eles têm para fazer tudo que querem.
Enquanto a atenção política foca-se nos planos de Leveson para o futuro, o real poder do relatório está no detalhamento do que essa permissão autorizou. “Partes da imprensa atuaram como se seu próprio código inexistisse. Houve muita imprudência em relação ao sensacionalismo, ignorou-se os danos que as histórias podiam causar. Desconsiderou-se qualquer rigor, alguns jornais lançaram mão de volumosos ataques extremamente pessoais àqueles que os contestavam”.
O relatório afirma que o Daily Mail e seu editor, Paul Dacre, “foram longe demais” ao acusar Hugh Grant de “vilipêndios mentirosos” em seu testemunho à investigação e questiona a decisão do diário The Sun, que noticiou a fibrose cística do filho de Gordon Brown, uma vez que “não havia qualquer interesse público que justificasse a publicação sem o consentimento do senhor e da senhora Brown”, além de reconhecer a possibilidade da informação ter sido obtida por “meios ilícitos e antiéticos”.
Ainda, o relatório detalha o comportamento dos periódicos Daily Mail, The Sun e The Telegraph que, enquanto Leveson conduzia sua sessão, optaram por publicar materiais sobre a morte de um garoto de 12 anos, decorrentes de um acidente de ônibus na Suíça, o que “inegavelmente suscita dúvidas quanto à conduta do editor”.
Isso não quer dizer que o relatório não apresente problemas para o jornalismo.
Em suas letras mais miúdas, ele parece mesmo sugerir que policiais não devem poder oferecer instruções aos repórteres. Se essa lei fosse aprovada há 10 anos, o jornal The Guardian provavelmente não teria sido capaz de expor o escândalo das escutas telefônicas. Uma seção implica que repórteres só poderão manter ocultas as identidades de suas fontes se tiverem uma prova do que foi acordado com a fonte, como um documento escrito por ela – coisa praticamente impossível se sua fonte é um criminoso descrevendo corrupção policial ou uma prostituta infantil falando de seu cafetão.
Mas o verdadeiro problema é que, quando se declara a guerra, o diabo alarga o inferno. Esse debate não passará a ser resolvido com fatos e argumentação razoável, ele será conduzido sob as já conhecidas regras: falsidade, distorção e ameaças. Algum governo se levantará contra isso? Talvez more aí o verdadeiro pesadelo.
* Tradução de André Cristi
Londres - Olhemos primeiro para os pesadelos que não se tornaram realidade.
O governo não está sendo convidado a assumir o controle da imprensa. Todos as propagandas de página inteira que ligavam o lorde Brian Leveson a Robert Mugabe e Bashar Assad, toda a cobertura dos jornais The Sun e Daily Mail sobre a “imposição de uma coleira à mídia” e a ameaça de “regulação estatal da imprensa livre britânica” se provou não mais do que bobagens ditas por marqueteiros, não mais do que outro round da velha distorção que, afinal, tanto fez para a criação deste inquérito.
O relatório tampouco afirma que Fleet Street deva ser recompensada pelo repetido abuso de poder com concessão de ainda mais poder. Este, aliás, era o plano criado pelo lado conservador de Fleet Street, ainda cegamente confiante de que seriam nomeados os que tornariam a fiscalização da mídia confortabilíssima para Richard Desmond, proprietário do Express (que, quando perguntado sobre a ética que a imprensa deve seguir, respondeu “não conhecer o significado da tal palavra”), e que executivos do News International de Rupert Murdoch - que enganaram a imprensa, o público e o parlamento – ocupariam cargos nas investigações. Lorde Leveson rejeitou esse plano com uma frase só: “assim, a indústria se manteria dando nota para a própria lição de casa”.
Também, não estamos diante de uma catástrofe para o jornalismo britânico. Do ponto de vista de um repórter, o núcleo do Relatório Leveson, seu sistema de “auto-regulação independente”, não apresenta problemas óbvios.
Esse sistema desempenha três funções. Em primeiro lugar, ele lida com as reclamações. Mas o faz com um corpo organizado que nem é indicado nem responsável pela Fleet Street. A parte mais obscura da indústria reclama que essa é uma ameaça terrível à mídia livre, situação análoga à de um estuprador alegando que a polícia é uma ameaça ao amor livre. Por que devemos temer um julgamento independente? Por que não deveríamos nos envergonhar da velha Comissão de Queixas contra a Imprensa que, como diz o relatório, “falhou, não é, de modo algum, um regulador, carece de independência e provou seu alinhamento com os interesses da imprensa”? É difícil pensar em outra resposta decente ao testemunho de Kate e Gerry McCann, falsamente acusados do assassinato do próprio filho. Ou ao de Christopher Jefferis, difamado perversamente como homicida.
Em segundo, a nova regulação investigaria violações sistêmicas. Aqui, o relatório apresenta fraquezas. Não há (nem deve haver) qualquer sugestão de que o regulador detém o poder de obrigar a divulgação de documentos ou de vasculhar a mesa de um repórter. Isso diz respeito à investigação de quebras sistêmicas do código de conduta – por exemplo, entrevistar crianças sem o aval de seus pais ou fotografar a privacidade de alguém. Sem poderes policiais, o órgão regulador acaba apoiando-se no voluntarismo dos jornalistas. A história sugere que haverá os relutantes, já que as carreiras de alguns estarão em jogo.
Finalmente, e mais importante, a regulação se conduziria num novo sistema de arbitragem, mais barato e mais rápido do que as cortes civis.
Isso parece uma ótima notícia para repórteres que atualmente trabalham sob uma legislação relativa à difamação, privacidade e confidencialidade que realmente restringe a liberdade de imprensa, uma vez que estão ameaçados de danos e custos legais de uma escala tal que encoraja a supressão da verdade. Gente como Jimmy Savile acaba se dando bem nessas condições. O sistema de Leveson nos ajudaria a lidar com isso.
Há nisso tudo um pesadelo, mas ele pertence à velha guarda de Fleet Street. A perda do controle do regulador é a perda da permissão que eles têm para fazer tudo que querem.
Enquanto a atenção política foca-se nos planos de Leveson para o futuro, o real poder do relatório está no detalhamento do que essa permissão autorizou. “Partes da imprensa atuaram como se seu próprio código inexistisse. Houve muita imprudência em relação ao sensacionalismo, ignorou-se os danos que as histórias podiam causar. Desconsiderou-se qualquer rigor, alguns jornais lançaram mão de volumosos ataques extremamente pessoais àqueles que os contestavam”.
O relatório afirma que o Daily Mail e seu editor, Paul Dacre, “foram longe demais” ao acusar Hugh Grant de “vilipêndios mentirosos” em seu testemunho à investigação e questiona a decisão do diário The Sun, que noticiou a fibrose cística do filho de Gordon Brown, uma vez que “não havia qualquer interesse público que justificasse a publicação sem o consentimento do senhor e da senhora Brown”, além de reconhecer a possibilidade da informação ter sido obtida por “meios ilícitos e antiéticos”.
Ainda, o relatório detalha o comportamento dos periódicos Daily Mail, The Sun e The Telegraph que, enquanto Leveson conduzia sua sessão, optaram por publicar materiais sobre a morte de um garoto de 12 anos, decorrentes de um acidente de ônibus na Suíça, o que “inegavelmente suscita dúvidas quanto à conduta do editor”.
Isso não quer dizer que o relatório não apresente problemas para o jornalismo.
Em suas letras mais miúdas, ele parece mesmo sugerir que policiais não devem poder oferecer instruções aos repórteres. Se essa lei fosse aprovada há 10 anos, o jornal The Guardian provavelmente não teria sido capaz de expor o escândalo das escutas telefônicas. Uma seção implica que repórteres só poderão manter ocultas as identidades de suas fontes se tiverem uma prova do que foi acordado com a fonte, como um documento escrito por ela – coisa praticamente impossível se sua fonte é um criminoso descrevendo corrupção policial ou uma prostituta infantil falando de seu cafetão.
Mas o verdadeiro problema é que, quando se declara a guerra, o diabo alarga o inferno. Esse debate não passará a ser resolvido com fatos e argumentação razoável, ele será conduzido sob as já conhecidas regras: falsidade, distorção e ameaças. Algum governo se levantará contra isso? Talvez more aí o verdadeiro pesadelo.
* Tradução de André Cristi
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